A coroa invisível de Quincas, o xerox napoleônico — por Pedro Ávila

Em tempos de reis loucos, principalmente quando estes se moldam à imagem e semelhança de suas contrapartidas gringas, neocolonizadoras, é impossível não pensar em Quincas Borba, romance de Machado de Assis, de 1891. A obra talvez tenha ficado à sombra das mais famosas do bruxo do Cosme Velho, como o próprio As memórias póstumas de Brás Cubas, da qual pode ser entendida como um spin-off. Uma pena, pois o livro contém uma grande reflexão acerca do caráter colonizado da cultura brasileira, além de uma crítica contundente à sociedade de então (não tão alheia à atual). A história de ascensão social e declínio de Rubião à pobreza e à loucura culmina com o mesmo crendo ser Napoleão III, possivelmente remetendo, por exemplo, a invenção do Rio de Janeiro como uma Paris tropical, ou a políticos brasileiros se espelhando em governantes europeus e estadunidenses. A questão da identidade brasileira é bastante espinhosa, mas difícil ignorar o caráter submisso de nossa relação com a cultura nacional. Quem nunca ouviu o discurso de que a produção artística nacional jamais poderá se comparar à estrangeira, sendo sua qualidade determinada a partir de sua semelhança ao padrão hegemônico vindo de fora? Muitas vezes parece que nosso país procura ser o xerox mais parecido possível de quem justamente o explora e o coloca na condição de país “em desenvolvimento”, ignorando que, para haver um país “desenvolvido”, é necessário um país explorado. Quincas Borba escancara todo o ridículo de um Brasil que quer ser aprovado por seus colonizadores, assim como a falácia meritocrática.

O romance gira em torno da filosofia fictícia chamada Humanitismo, tendo surgido inicialmente no trabalho anterior de Machado de Assis, As memórias póstumas de Brás Cubas. Quincas Borba cria o Humanitismo com o objetivo de ser não apenas um tratado filosófico, como também algo como uma religião. Quincas Borba seria, assim, algo como um profeta ou santo. Em uma das cartas que escreve a Rubião ele diz: “sou Santo Agostinho”. 

A filosofia humanitista é uma sátira de ideais positivistas e eugenistas do século XIX, que se apoiavam em conceitos supostamente darwinistas como “a sobrevivência do mais forte”. A filosofia-religião de Quincas seria uma caricatura dessas teorias, interpretando-as ao extremo. Assim, surge a frase “ao vencedor, as batatas”, síntese do Humanitismo, que prega que sofrimento e alegria se contrabalanceiam. Se Quincas é o profeta, Rubião é seu aprendiz, que escuta apavorado seu mestre contá-lo da morte de sua mãe. A mãe de Quincas teria sido atropelada por uma carroça apressada por um senhor com fome que mandava o cocheiro ir mais rápido. Segundo o filósofo, a morte de sua mãe não teve um peso negativo, uma vez que foi o meio para o fim de Humanitas: ela precisou morrer para que o homem se alimentasse. Rubião não compreende imediatamente, pois acredita que o homem não precisava ter atropelado ninguém para conseguir seu alimento, ainda mais não se tratando de uma questão de vida ou morte. Contudo, Quincas Borba crê que tudo que existe é Humanitas, todos os seres humanos e até os animais. Se uma parte de Humanitas morre, é para outra viver, ele diria. Assim, o sofrimento do mundo não faz diferença, uma vez que é uma necessidade para o bem estar. Numa de suas parábolas, duas aldeias brigam por uma plantação de batatas, um grupo morre para que o outro chegue às batatas. Assim surge o slogan da filosofia, “ao vencedor, as batatas”, uma extrapolação de frases feitas como “os fins justificam os meios”.

Sendo todo ser vivo Humanitas, Quincas Borba resolve nomear seu cão de estimação com seu próprio nome: Quincas Borba. Além de uma ação egoísta, como ele próprio assume, uma vez que após sua morte seu nome continuará vivendo através do cão, esse ato serve para Quincas demonstrar sua filosofia. Segundo ele, tanto humano quanto animal fazem parte de Humanitas, quase como um indivíduo coletivo. Dessa maneira, confundir sua identidade com a do cachorro seria como dar forma a seu ensinamento. Confusão explorada pela escrita de Machado com frases ambíguas como “Quincas Borba, comovido, olhou para Quincas Borba” (p. 52). Quando pensamos no título do romance, vale nos perguntarmos qual é, de fato, o Quincas Borba do título — homem ou cão? Pergunta que se torna ainda mais interessante quando notamos que o homem Quincas Borba morre logo no início do romance, sendo que o cargo de personagem principal ficará, parece, com seu suposto amigo Rubião.

Rubião é um mineiro, de Barbacena, que fica amigo do abastado filósofo, cuidando dele em seus últimos momentos de vida, provavelmente, visando receber em troca parte de sua herança. A princípio, parece que Quincas considera Rubião seu melhor amigo. Mas logo o leitor pode chegar à conclusão de que o único amigo de Quincas Borba é Quincas Borba — ele próprio e/ou seu cão de mesmo nome. Antes de morrer, o filósofo, já aparentando ter enlouquecido, deixa toda sua herança para Rubião, com a condição única de que o mineiro tome conta de seu cachorro Quincas Borba até morrer. Conhecendo-se os pormenores do destino que a herança trará a Rubião, é possível considerar que Quincas tenha planejado dar a ele sua fortuna quase como um experimento: Rubião experimentaria na pele, assim como os demais personagens, a filosofia humanitista, chegando, a certo momento, a professá-la, como Quincas Borba. 

Com essa fortuna que recebeu de herança, Rubião passa a compreender o lema “ao vencedor, as batatas”. Assim, resolve se mudar para a então capital da côrte, o Rio de Janeiro, junto de seu cão — cujo nome o persegue como um fantasma do finado xará. No meio do caminho, no trem — cenário curioso, quando se pensa nas diversas transições e transações performadas pelos personagens ao longo do romance —, conhece Palha e Sofia, de quem fica amigo rapidamente, formando o triângulo principal da narrativa. Rubião, terrivelmente apaixonado por Sofia, passa a fazer de tudo para estar próximo a ela, enquanto seu marido vai aos poucos o despindo de seu dinheiro com propostas mal explicadas de negócios e investimentos. Já no Rio, Rubião conhece Camacho, um político que anseia pelo poder e facilmente se despe de sua identidade, trocando a esmo ideais e posicionamentos de acordo com os de quem estiver no comando. O caipira ingênuo dos meios da capital, terá sua nova fortuna também explorada pelo oportunista Camacho, que o promete uma carreira na política em troca de que o mineiro o ajude investindo na publicação de seus periódicos.

Rubião ganhou a fortuna — as batatas — de Quincas Borba, que se torna seu cão, sendo transferido o título de “mestre” de Quincas para Rubião. Contudo, no mundo humanitista, tudo se contrabalanceia: ao longo do romance, Rubião vai se desfazendo de seu dinheiro, que cai nas mãos de Palha e Camacho. Personagens ascendem social e economicamente, enquanto outros descendem. Para uma tribo comer as batatas, outra morre de fome. Para Palha e Camacho subirem, Rubião cai. Ao vencedor, as batatas.

Explorado monetariamente e obcecado por um amor não correspondido, Rubião enlouquece. Sua loucura é baseada na filosofia de seu finado amigo. Ele passa a temer que a alma do humano Quincas Borba tenha migrado para o cachorro Quincas Borba. Rubião sente que o animal o observa, o julga, com os mesmos olhos do finado. Certo momento, escuta o cão falar como se fosse humano — talvez por ser, como tudo, parte de Humanitas: “— Casa-se, e diga que eu o engano, latiu-lhe Quincas Borba” (p. 176). Uma vez borradas os limites entre as personagens, Rubião também chega ao estado máximo de sua loucura: passa a acreditar que é Napoleão III. Provavelmente influenciado por suas fantasias de se tornar capitalista e político, suas leituras de romances que tratam da nobresa da França, além do caráter grandiloquente das falas do falecido Quincas Borba. Quando Rubião passa a achar que é Napoleão III, o absurdo do conceito de Humanitas é escancarado: ele se torna uma grande piada e um poço de pena para as demais personagens. O contraste é explícito: chega à pior condição de vida que já teve enquanto se crê imperador europeu.

Machado de Assis ironiza o complexo de Napoleão, ou seja, o complexo de grandeza, de suas personagens. No romance, as relações entre Brasil e França, então a nação de maior influência cultural e política, são marcadas. Isso é evidente no caso da prima de Sofia, Maria Benedita — personagem até certo ponto espelho de Rubião, por também vir do interior e ter dificuldades em se integrar à vida na côrte. Para Sofia, o mais importante é que Maria Benedita aprenda o francês, para ler os romances da época (que, inclusive, Rubião lê até delirar em sono, quase como um D. Quixote) e o piano, para poder apreciar e tocar composições francesas. Assim, o complexo de grandeza de Rubião — por sua vez espelhado em Quincas Borba, que também acredita ter outras identidades, como Santo Agostinho — é acreditar ser um Napoleão, imperador de uma poderosa nação. Contudo, ele acredita ser o neto do famoso imperador. Ou seja, Rubião acredita ser aquele que, por sua vez, acredita ser Napoleão — quase um simulacro de um simulacro. A partir do ridículo da situação desenhada por Machado, pode-se compreender a loucura do personagem como uma caricatura de um Brasil que almeja ser França. Caricatura que, combinada com a passividade ingênua de Rubião, opera também como a de um país que, maravilhado com o que não é e não pode ser, é passivamente ludibriado e explorado pelos mais poderosos que tanto inveja. Quanto mais Rubião posa como homem de poder e requinte, mais jocosa se torna sua figura. Enquanto sua sanidade se esvai, perde tudo o que possui, se mudando, ao longo da narrativa, de regiões nobres da cidade maravilhosa para moradias cada vez menos prestigiadas, terminando por ser colocado num hospício.

Em dado momento, zanzando pela rua, falando sozinho, uma multidão passa a o rodear, gritando para ele “Ó gira! Ó gira” (p. 327). O narrador machadiano (curiosamente em terceira pessoa, diferente de em Dom Casmurro e Brás Cubas, talvez corroborando com a exploração do conceito de Humanitas), descreve essa multidão quase como uma mesma massa que vai se agrupando, como se não fosse possível diferenciar um indivíduo do outro, feito as identidades embaralhadas de Quincas, Rubião e quem quer que seja: 

“Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas as idades, um fotógrafo, um estofador, três e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava à parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obséquio.” (p. 327)

Rubião é como um indivíduo em branco, suscetível às ideias alheias, ingênuo, que toma decisões de acordo com as orientações de Quincas Borba, Palha, Camacho. Ele quer ser como cada uma dessas pessoas: quer ter Sofia, a mulher de Palha, quer entrar para a política como Camacho, como queria, no início do romance, ter a fortuna de Quincas Borba. Sua passividade serve para delinear os contornos da caricatura napoleônica: um pobre-diabo sem nenhum tostão ou poder, mas que age à maneira de um rei. Sem traços marcantes de identidade, Rubião talvez estivesse destinado a perder a noção de si mesmo, como a própria massa que o rodeia, como o próprio país em que vive.

Se a filosofia de Quincas é praticamente uma doutrina, as metamorfoses pelas quais Rubião passa talvez tenham algo de religioso. Talvez seja possível traçar paralelo com a transfiguração de Jesus Cristo, quando é iluminado no alto de um Montanha (curiosamente não-identificada) e uma voz vinda dos céus o chama de “Filho”. Seria o momento em que Rubião endoidece o momento em que se torna, por assim dizer, “filho”, símbolo, da filosofia de Quincas? Afinal, se Napoleão III foi imperador da França, Jesus foi rei dos judeus.

Mas o paralelo que me parece mais claro entre Rubião e outro rei que não Napoleão: Odisseu. Como o herói da epopeia homérica quer retornar à sua terra, Ítaca, Rubião constantemente diz sentir saudades de Barbacena, tendo sua vontade de retornar sempre dissuadido por Palha, assim como o de Odisseu é impedido por Calipso. Contudo, assim como Odisseu, Rubião retorna ao fim do romance para Barbacena. Lá, sozinho com Quincas Borba, passa uma noite na rua, enquanto uma grossa chuva cai sobre eles. Assim, surge a única referência direta à Odisseia no livro: “O cão, morto de fome e de fadiga, não entendia aquela odisseia, ignorava o motivo, esquecera o lugar, não ouvia nada, senão as vozes surdas do senhor” (p. 341). Vale notar que o narrador personificar o cão Quincas Borba, dentre outros animais, sugerindo que todo ser é Humanitas, não implica apenas que um animal é tal qual um humano, como também o inverso. No final, Rubião é como um cachorro vira-lata, se assemelhando a ambos Quincas Borba, cão e homem. Portanto, “cão” no trecho citado pode-se referir tanto a Quincas Borba quanto a Rubião, assim como “senhor”, uma vez que o finado Quincas foi mestre de Rubião.

Odisseu, como Rubião teve sua identidade apagada em alguns momentos: se chamou de “Ninguém” para ludibriar Polifemo, negando sua identidade para safar a si e seus homens das garras do ciclope; se disfarçou de mendigo a fim de espiar como vinha andando Ítaca em sua ausência. Assume outras identidades de forma calculada, são atos de esperteza da parte de Odisseu, que é, afinal, o herói “plurisapiente”. Muito diferente é a micelânea de identidades pelas quais Rubião se desloca, sinais não de astúcia, mas de impotência e sandice. Odisseu conscientemente se proclama “Ninguém” enquanto Rubião de fato é um zé-ninguém — um vira-lata sem “raça”, de caráter não plenamente definido.

Na Odisseia, de Homero, Odisseu serve como herói modelo, ou seja, espelho dos ideias de sua sociedade. Apesar de não representar um ideal para o homem brasileiro, Rubião espelha um povo que vive às custas do sistema capitalista, tão inspirado nas teorias e filosofias que o Humanitismo parodia. Povo sem identidade nacional bem definida, que joga uma eterna partida de “o mestre mandou”, sempre buscando imitar referências colonizadoras, formuladas por aqueles que detém uma hegemonia cultural e econômica sobre os demais. Mas, afinal, não foi para a Europa que foram parar as “batatas” brasileiras?

Assim, no final do romance, pouco antes de morrer, talvez de loucura, talvez de febre, Rubião põe em cima de sua cabeça sua coroa invisível e impalpável — “ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada” —, espelhando o espelho de seu espelho, Napoleão. Acreditando ser um imperador como Napoleão III, um grande herói, como Odisseu, Rubião se torna de fato Quincas Borba: ao fim da narrativa, volta-se ao início: um louco filósofo moribundo em Barbacena. E nosso herói morre murmurando: “— Guardem minha coroa […] Ao vencedor…” (p. 343). A coroa de nada pode ser entendida como as batatas do lema humanitista, que se revela não como uma lei básica e natural da sobrevivência, mas como representação da cobiça e ganância desreguladas da sociedade contemporânea. Se o que sobra ao vencedor são as “batatas”, a coroa de nada, e não há vencedores nem perdedores, uma vez que somos todos Humanitas, na verdade, ficamos todos com nada. A coroa não existe, Rubião não possui poder de verdade, é apenas um explorado que acreditou que se tornaria poderoso confiando seus bens materiais a falsos messias, admirando de longe banqueiros ingleses e monarcas franceses.

Logo depois da morte de Rubião, Quincas Borba morre (como seu xará no início do livro). O rei está morto, vida longa ao rei.

 

Fonte: ASSIS, Machado de, Quincas Borba, Companhia das letras, 2012.

Imagem: colagem de Patrícia Pinheiro em que se vê Brás Cubas e Quincas Borba no filme Brás Cubas de Julio Bressane (1985).

Pequena Antologia da Pandemia — por Alan Cardoso da Silva

Reuni nesta — muito — pequena antologia poemas de alguns autores que tenho lido durante a pandemia e o isolamento social. A motivação principal na escolha dos poemas, no entanto, é o diálogo que eles estabelecem com nosso tempo. Falando já de doença e enclausuramento bem antes disso se tornar assunto tão (tristemente) banal.

Alan Cardoso da Silva.

***

 

Matheus Gúmenin Barreto (1992)

Casa
O silêncio que contém
os objetos da casa
– mesa cadeira tapete
panela livros

o silêncio que têm
no interior
colhido nas longas horas em
que olho algum
lhes pousa na superfície.

o silêncio colhido
na atribulada solidão
que as coisas de uma casa têm e são

e que, assim, fazem-na
casa.

*

Missa de 7º dia
A cama que criam absoluta
porque carregou ali quem morria
e, morto, tomou posse
        [do que
        [a cama é

– essa cama foi batida
        [ao sol
        [refrescada, posta
        [ao craquelado

        [da luz
        [de algum quintal

e perdeu seu morto
como quem perde um tostão.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919–2004)

O hospital e a praia
E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza

E eu caminhei nas praias e nos campos
O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor
Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava

E nos espaços da manhã marinha
Quase livre como um deus eu caminhava

E todo o dia vivi como uma cega

Porém no hospital eu vi o rosto
Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida.

*

No tempo dividido
E agora ó Deuses que vos direi de mim?
Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.

Affonso Ávila (1928–2012)

Quadrilátero
andar ao ruído do próprio eco
imóvel andarilho sem trilha
ensimesmado passo a passo
percorrido diâmetro da ilha
diapasão ao reto impassível do teto
onde está a ogiva a admissível janela
em vão rastrear o retrospecto
apagado à escova do quadro de giz
pé ante pé o salto em falso
do que fugiu ou falhou na sua fala
palavra retrocedida ao dicionário
na submersa semântica
o poço do poço
calabouço
parede óbice

Maria Lúcia Alvim (1932)

XII
O olho transpõe a vidraça
e alcança o olhar — também
o pensamento se esgarça
fura vidraça — além
não há nada que refaça
memória se não me vem…
o que sou tão longe passa:
ao saber de mim ninguém
em certeza só trespassa
as outras que vivo sem
(ó visão — já me ultrapassa
o querer de mim alguém)
mas lentamente se embaça
se esvai o que o olhar detém.

James Joyce (1882–1941)

Bahnhofstrasse (trad. Alípio Correia de Franca Neto)
Olhos que zombam mostram com sinais
A rua em que ando enquanto a tarde cai —

A rua é turva, e seus sinais, violáceos —
A estrela do encontrar-se e do apartar-se.

Ah, estrela má! Do sofrimento
Foi embora, o coração com alento,

E falta um velho e sábio pra entender os
Sinais, que me acompanham zombeteiros.

Paulo Henriques Britto (1951)

Dez exercícios para os cinco dedos -II
O desespero tranquilo dessas manhãs
sem sol, sem álibis nem soluções.
No máximo uma brisa, não necessariamente
fresca. (Nada, aliás, é necessariamente
nada.) Um automóvel pigarreia e passa,

interrompendo o arrazoado irrelevante
dos pássaros nas árvores. Nenhum sinal
de uma evidência capaz de abstrair
esta manhã vazia de intenções
e consequências, e absolver o dia.

*

Memento Mori — I
Nenhum sinal da solidão se vê
lá onde o amor corrói a carne a fundo.
Dentro da pele, no entanto, você
é só você contra o mundo.

Esta felicidade que abastece
seu organismo, feito um combustível,
é volátil. Tudo que sobe desce.
Tudo que dói é possível.

Alan Cardoso da Silva (1998)

Triste herança
Toda a umidade que de nós rouba o sol
cairá de uma vez só sobre a cabeça da humanidade
como no céu uma aeronave infrassônica
atropela reticentes gotículas de chuva

Estamos diante dos corpos dos homens que matamos
então diante e acima dos corpos dos homens que matamos
Um dia toda a humanidade que roubamos nós sob o sol
cairá úmida sobre nós em protesto

e será tola toda
e qualquer tentativa

de progredir nossas penas
de reverter o processo.

Poetas

Matheus Guménin Barreto (1992-) é um poeta e tradutor mato-grossense. Os poemas presentes nessa mini antologia são de seu livro “A máquina de carregar nadas” (7letras, 2017). Matheus está com livro novo, intitulado “Mesmo que seja noite” (Corsário-Satã,2020) e que você pode comprar na pré-venda aqui.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919–2004) foi uma poeta portuguesa, considerada uma das mais importantes do séc. XX. Também foi a primeira mulher portuguesa a receber o Prêmio Camões. Os poemas aqui presentes fora retirados de outra antologia, organizada por Eucanaã Ferraz, “Coral e outros poemas”(Companhia das Letras, 2018), que você pode comprar aqui.

Affonso Ávila (1928–2012) foi um poeta, pesquisador e ensaísta mineiro. Foi esposo da também poeta e ensaísta Laís Corrêa de Araújo (1929–2006) e juntos foram pais e avós de uma casa de acadêmicos e artistas. Os poemas aqui presentes foram retirados do livro “Poeta poente”(Perspectiva, 2010), que você pode comprar aqui.

Maria Lúcia Alvim (1932-) é uma poeta e pintora mineira. Os poemas aqui presentes foram retirados de seus “XX Sonetos” (Bem-te-vi, 2011), que você pode comprar aqui. Maria Lúcia cedeu um manuscrito de um livro seu, que a princípio só seria publicado postumamente, aos poetas Ricardo Domeneck e Paulo Henriques Britto, que estão editando o livro e devem publicá-lo em breve; leia mais aqui.

James Joyce (1882–1941) foi um escritor e poeta irlandês. Mais conhecido pelo grande “Ulysses” (1922). Os poemas aqui presentes foram retirados do livro “Pomas, um tostão cada” (Iluminuras, 2014), na tradução de Alípio Correia de Franca Neto. Você pode comprar o livro aqui.

Paulo Henriques Britto (1951-) é poeta, contista, tradutor e professor universitário da PUC-Rio. Os poemas aqui presentes foram retirados de seu “Trovar Claro” (Companhia das Letras, 2006), que você pode comprar aqui.

Eu (1998-) sou um poeta fluminense filho do meu pai e da minha mãe e me meti aqui de encherido. Tenho um livro de poemas que você pode comprar aqui e poemas avulsos publicados nas revistas Ruído Manifesto e Mallarmargens que você pode ler aqui e aqui.

 

***

Imagem: Wyndham Lewis, Composition 1913.