Las piernas de un pueblo sin piernas: Do dia que enterraram Diego Armando Maradona, por Jão

Antes de conhecer qualquer literatura, ou melhor, de ter noção de estar me aventurando dentro de algum tipo de literatura, seja lá o que isso significa, ou mesmo antes de ter um interesse por música mais definido na minha cabeça – eu já conhecia o futebol. Foi a primeira arte que eu tive contato. Digo isso sem rodeios, sem nenhuma poética específica, talvez com excesso de todas, e o que importa? Quando encaro dessa forma não espero que leve a crer que deposito uma visão mais romântica do que realista disso tudo. Falo com uma seriedade espiritual. É o que é, uma arte do corpo, uma manifestação da potência da vida humana em última instância. Quando penso em Maradona penso em um grande artista, o visualizo ao lado de Coltrane ou Bach, de Cézanne ou de Paul Klee, e de Fernando Pessoa, que tem em seu heterônimo mais sábio, Alberto Caeiro, a busca por uma experiência do sentir que se baste contra qualquer tirania de um pensar que intencione se separar do corpo, do instante exterior do mundo que acontece aos nossos olhos, nossos ouvidos, nossos pés e mãos: “Sou um guardador de rebanhos/O rebanho é os meus pensamentos/E os meus pensamentos são todos sensações/Penso com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com nariz e a boca//Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la/E comer um fruto é saber-lhe o sentindo”.

Eu que não sou Caeiro, penso que ele veria a realização de seu próprio sonho, da diretriz da sua vida, refletida nos passos incisivos do gênio argentino em direção ao gol de uma esquadra inglesa no histórico dia vinte e dois de Junho de mil novecentos e oitenta e seis, em que em um rompante fulminante do meio do gramado do lendário Estadio Azteca na Cidade do México, Maradona pôs-se a pensar com os pés de uma maneira que nenhum outro havia feito com tanto ímpeto, deu ao mundo o rastro de uma ideia rara que se concretiza no próprio momento em que acontece, e que me desdobro para tentar fazer caber em mim toda vez que revejo esse lance na tela de um celular. O futebol é isso, uma prática da imanência, uma poesia sem intermédios, em que cabe cada um se colocar como o que é. O jogar faz a essência de cada personagem de uma peleja, todo ato é natural, desprende o Homem de sua cisão com a Natureza ao redirecionar o desejo máximo à sobrevivência e vivência ao jogar e ao ganhar. A isso se relaciona outro trecho muito oportuno de outro poema de Caeiro: “Não acredito em Deus porque nunca o vi.//Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/Sem dúvida que viria falar comigo/E entraria pela minha porta dentro/Dizendo-me, Aqui estou!// (…) Mas se Deus é as flores e as árvores/E os montes e o sol e o luar,/Então acredito nele,/Então acredito nele a toda a hora,/E a minha vida é toda uma oração e uma missa,/E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.”, em que aqui, ao que concebe Deus como a materialidade do que é natural, o poeta permite que eu entenda que o que vejo na corrida de Maradona é também Deus (não à toa, o outro gol dessa partida é conhecido como La Mano de Dios), e o que está fazendo o craque em seu ato contínuo é romper os bloqueios da zaga da seleção inglesa e ao mesmo tempo também romper com a cisão metafísica do mundo. É, como disse o historiador Luiz Antonio Simas, “restaurar a crença na humanidade dos deuses e na divindade dos homens.”

Quando consigo visualizar toda essa ideia, que sempre esteve de algum modo presente em mim, não formulada como palavras coordenadas por um sentido, mas de forma mais primordial, sentidas pela reação do corpo desde quando moleque via partidas ao vivo ou DVDs de jogos históricos de Copas do Mundo, percebo que devo a diversos momentos espetaculares de futebol como aquele gol de Maradona que revejo nesse dia triste, não somente minha paixão eterna pelo esporte mas ao direcionamento da arte e do pensamento que busquei desenvolver. Todas as tentativas de música que de modo frustrado tentei compor, toda poesia que me dediquei a fazer, esse próprio texto que agora escrevo, tudo isso tentou alcançar algo como o que Maradona faz, não somente no que diz respeito a genialidade do fazer mas ao que é a naturalidade do próprio futebol, tanto quanto é das flores e as árvores. Devo a artistas como Diego Armando visualizar um domínio do ser em que ele se basta em sua própria ação e emoção.

No que vejo pela TV velarem este corpo, que nunca presenciei pessoalmente, e no entanto, presenciei vivo tanto quanto outros que comigo estiveram, faço das palavras de Víctor Hugo Morales, o narrador que deu voz ao segundo gol de Maradona contra a Inglaterra as minhas:

– Obrigado, Deus.

Pelo futebol.
Por Maradona.
Por estas lágrimas.
Por este Argentina 2, Inglaterra 0.

 


Jão, ou também (como está registrado na identidade surrada na carteira do sujeito) João Carlos Pinho, é carioca, graduando em Letras pela UFF, flamenguista e poeta. Tem publicado seus poemas em revistas como a Ruído Manifesto, mas você pode encontrar outros escritos seus em seu perfil do Medium.


Imagem em destaque: arte de Mulambo em homenagem a Maradona (30 de outubro de 1960 – 25 de novembro de 2020), 2020.

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