Sobre o exercício do prazer: a dialética ocidental do desejo – por João Carlos Pinho

O prazer como experienciamos se alimenta sempre de uma tensão entre presença e ausência do que é desejado, em uma dinâmica de complementaridade dessas sensações. Conseguir ter realizado o que desejamos nem sempre vai nos dar o prazer esperado porque a germinação do gozo está atrelada a essa agonia que sua ausência anterior nos concede como forma de sentir pesar o vazio da ausência – sentimento siamês ao desejo de presença – de modo que sem uma consolidação equilibrada desse sentimento de ausência o prazer da presença se atrofia. Essa premissa da vida já foi observada muitas vezes em diferentes culturas, se insere na filosofia Ocidental por Aristóteles formulando uma tese ainda mais essencial com a ideia de ‘potência’ (no grego: dynamis) como bem indica Agamben em seu texto “O que é o ato de criação?”:

Quem possui – ou tem o hábito de – uma potência pode coloca-la em ato ou não. A potência – esta é a tese genial de Aristóteles, mesmo que aparentemente óbvia – é definida essencialmente pela possibilidade do seu não exercício. O arquiteto é potente, porquanto pode não construir; a potência é uma suspensão do ato. (…) É assim que, na Metafísica, Aristóteles responde à tese dos megáricos, que afirmavam – aliás, não sem boas razões – que a potência só existe no ato. (Agamben, 2018, p. 63)

Agamben tece no breve ensaio de que modo a potência, que contém em si uma não-potência (potência-de-não), ocasiona o criar artístico. O que é interessante aqui é transferir essa lógica ao prazer, entendendo o prazer enquanto potência que tensiona o desejo e a realização do desejo, com a diferença clara de que o conceito aristotélico se reforça nas faculdades individuais do ser, enquanto o prazer, nesse caso, difundido enquanto uma realização de um desejo de algo que pode muitas vezes ser externo ao controle individual, pode estar condicionado a uma confluência de fatores do mundo. Peguemos alguns exemplos comuns de aplicação dessas forças: geralmente quando um indivíduo é rico, apesar do conforto que a posição dele lhe traz, ele geralmente precisa buscar prazer em coisas específicas que não são tão comuns a sua própria realidade. Apesar de ser fácil para esse indivíduo comprar aquele objeto óbvio de interesse geral, o desejo é afogado pela possibilidade de realização do desejo, que é praticamente automática, sem agonia. Há, portanto, um desequilíbrio entre eles, porque é tão fácil para ele conseguir aquilo que deseja que o prazer não se forma. Ele precisa ir atrás de algo que alimente seu desejo de modo que não seja tão fácil realizá-lo sempre.

De mesmo modo, podemos recorrer aos clichês do romantismo poético do século XIX, em que se encarna com veemência a figura do homem apaixonado e melancólico que se afunda no platonismo de uma paixão impossível (desejaria ele justamente por ser impossível?), para ver o desequilíbrio contrário. Nesse caso o desejo é muito maior que sua possibilidade de realização, muitas vezes nula. O desejo inclusive se alimenta dessa impossibilidade – quanto mais distante de realizá-lo mais se perde na paixão esse tipo de eu-lírico. Há exemplos reais, de quem, perdidamente apaixonado, ao conseguir de maneira surpreendente consolidar uma relação com o ser amado, logo se desiludiu com a experiência por conta do confronto entre seus sonhos, em que idealizava o outro em sua mente, com a realização daquela relação com o outro agora presente e fora do seu controle mental. Por essas razões a literatura romântica se afundou cada vez mais na agonia da distância, porque na busca das próprias idealizações sobre o mundo ou  mulheres, somente a imagem pura e distante sobra como autoilusão de que aquela idealidade é possível.

A frustração teria por figura a Presença (vejo o outro todo dia, mas isso não me satisfaz: o objeto está lá, na realidade, mas continua a fazer-me falta imaginariamente). Quando à castração, teria por figura a Intermitência (aceito deixar um pouco o outro “sem chorar”, assumo o luto da relação, sei esquecer). A Ausência é a figura da privação; desejo e preciso ao mesmo tempo. O desejo se abate sobre a carência: aí está o fato obsedante do sentimento amoroso.

RUSBROCK: (“O desejo aí está, ardente, eterno: mas Deus está acima dele, e os braços erguidos do Desejo não atingem nunca a plenitude adorada.” O discurso da Ausência é um texto de dois ideogramas: há os braços erguidos do Desejo, e há os braços estendidos da Carência. Oscilo, vacilo entre a imagem pálida dos braços erguidos e a imagem acolhedora e infantil dos braços estendidos.) (Barthes, 2018, pp. 62-63)

O artista romântico, o homem romântico, precisa iludir-se e acaba por tornar seu prazer, contraditoriamente, a própria ilusão carregada de dor, eliminando totalmente a possibilidade de um prazer real. E quando adentra numa relação com a mulher desejada se torna um neurótico, por imaginar excessivamente o desfalecimento daquela relação vindo de fatores externos quando ele mesmo o causa justamente por sua idealidade e possessão, como Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Swann no segundo livro de Em Busca do Tempo Perdido, obra monumental de Marcel Proust.

Os reflexos mais modernos dessa dinâmica são a criação dos ídolos, artistas consolidados pela difusão do seu trabalho pela indústria e pela aclamação do seu talento por parte do grande público, que têm sua vida particular tornada produto pela imprensa que vende a criação de uma imagem pessoal que deve corresponder às idealizações fomentadas no público. A imagem eternizada de Marylin Monroe é acompanhada de um sorriso mesmo que seja de conhecimento geral que sua vida tenha tido momentos muito difíceis, e que a própria necessidade criada de alimentar essa imagem corroborasse para tal, assim como a vida de inúmeras outras estrelas. No século XXI isso se torna ainda mais complicado com a tarefa da exposição saindo do monopólio da imprensa e sendo função atribuída aos próprios famosos que, através de seus smartphones, literalmente vendem a exposição de sua vida em redes sociais pelo dinheiro de patrocinadores (aqueles que não são famosos também reproduzem essa lógica por valores diferentes do monetário). Quando tal atriz ou ator famoso não corresponde aos desejos do público sobre sua vida pessoal, as críticas acontecem em tom de cobrança e desapontamento.

Weltschmerz é o termo alemão criado pelo escritor Jean Paul Richter para designar o sentimento experimentado por alguém que entende que a realidade física nunca poderá satisfazer as exigências da mente . Esse conceito aparentemente universal está condicionado por um contexto filosófico do Ocidente europeu que assume que o sujeito sempre terá naturalmente exigências a serem satisfeitas, podendo ser uma ideia obsoleta por perspectivas estranhas a essa condição. Faz parte do caminho taoísta justamente renunciar a essas exigências impossibilitadas pelo mundo, isso não significa somente abnegar ao desejo por sua não concretização, mas automaticamente igualar o desejoso e o realizado em tudo aquilo que faz parte do “fluxo natural” da própria vida, chegando ao ponto máximo enquanto unidade indistinta do Mundo, o Caminho Constante (Dào):

O que gera e cria,

Gera sem se apossar,

Age sem querer para si,

Cultiva sem dominar.

Chama-se Misteriosa Virtude.

(Tse, 2011, p. 70)

Há então, fora dos domínios do nosso pensamento cultural tendenciosamente destrutivo, possibilidades de prazer, por assim dizer, aquém do desejo. Se isso não é totalmente possível na nossa sociedade, existem exemplos de manifestação de desejo passivo, que buscam prazer fora do seu realizar, pela sua mera existência e pelo individuo se ver na possibilidade de contemplar aquele desejo. É um prazer raro que se encerra no observar e não gera (sempre) frustração por isso. Isso está manifestado por Jorge Ben na música “Oba, Lá Vem Ela”, cuja letra simples acaba seguindo uma linha de pensamento muito diferente das centenas de milhares de canções de amor e desejo produzidas ao longo do último século, inclusive pelo próprio Ben. “Oba, Lá Vem Ela” é um celebrar da observação, da  possibilidade de estar na presença de alguém ou algo que se deseja e isso já ser suficientemente bom para ativar uma sensação de vida vivida, de que naquele momento o Eu realiza-se no mundo por vislumbrar caminhos belos e não por precisar tentar trilhá-los.

Oba lá vem ela, estou de olho nela
Oba lá vem ela, estou de olho nela

Não me importo que ela não me olhe
Não diga nada e nem saiba que eu existo
Quem eu sou pois eu sei muito bem quem é ela
E fico contente só em ver ela passar

(…)

Não me importo que falem que pensem
Pois sem saber ela é minha alegria
Ela tem um perfume de uma flor que eu não sei o nome
Mas ela deve ter um nome bonito igual a ela

Oba lá vem ela estou de olho nela
Oba lá vem ela estou de olho nela

(Ben, 1970, grifos meus.)

Diferentemente da linha do romantismo, a economia das forças do desejo é saudável nesse caso porque, mesmo à distância, o prazer se fixa no olhar não possessivo e não no tato ou na visão ciosa com o qual normalmente se associa pela materialidade do sensível. A lógica do prazer na própria arte em sua forma de exibição é a mesma, não se pode possuir uma peça ou um espetáculo de dança, um show ou uma música, e, embora se tente cada vez mais durante esses eventos captar essa materialidade com filmagens oficiais ou gravações de celulares, aquele registro é somente um simulacro, uma cópia imperfeita da experiência original, que só é capaz de apresentar vestígios do corpo da obra, que pode sim dar deleite mas que não tem a mesma dimensão do espetáculo a qual se refere, até mesmo num sentido espacial – o filme é 2D (no máximo uma ilusão de 3D). Perdemos também o cheiro, a qualidade da imagem e outras qualidades que são inerentes à participação do observador no próprio ambiente da experiência, perdemos a ambiência. Um quadro se pode possuir materialmente e assim controlar o acesso ao objeto, porém também corre risco de perder força a dimensão empirista de ritual se banalizado o encontro, como um quadro que se vê todo dia na sala de casa cotidianamente, o espectador gradativamente pode abrandar o páthos pela ausência de cerimônia do encontro (o que aqui não quer dizer formalidade ou qualquer código social burguês de eventos artísticos).

Quando se trata da fruição tátil, encontramos o mesmo jogo de vontade alimentada e consumação. No sexo, o prazer não nasce de uma ininterrupta satisfação do desejo, mas de um jogo, por sua essência um jogo provocativo, em que se alimenta e cessa a satisfação do desejo a todo momento – micro-intervalos de prazer – para que ele aumente e assim o prazer seja maior quando gerado. O prazer é dado na medida em que se pode aumentar o desejo sobre ele e para isso ele precisa ser negado antes de ser concedido em maior potência. Repare isso no poema “Pote” da escritora fluminense Simone Brantes (grifos meus):

Você acha que sexo é isso:
três
ou quatro
posições
e executá-las?
Você quer
muito
muito mesmo
que eu goze?
Então vamos por partes –
não se vai com tanta sede ao pote –
Primeiro: fabricar a sede

Segundo: fabricar o pote
Terceiro: deixar que a água jorre

O corpo sente a potência no toque porque antes sente sua ausência e depois dele sente tem gravada sua memória quando este se dissipa, o desejo por ele aumenta assim, se ele é bom, então se o toque ocorre de novo ele pode gerar mais prazer ainda. O estímulo é, portanto, um fluxo de movimento alternado, uma dinâmica de dispersão do prazer pelo corpo ou por uma área específica dele que funciona por essa premissa. Isso vale não somente para o sexo em si, mas para uma massagem ou um cafuné, qualquer experiencia física afetiva. Além disso, em todos esses atos, quando se assume a posição de pessoa que toca, se indica de algum modo o desejo de ser tocado.

Assim, o tocar é, a princípio e para sempre, esse embalo, essa ondulação e esse atrito que a sucção repete, relançando e retomando o desejo de se sentir tocado e tocante, o desejo de se experimentar em contato com o fora. E até mesmo mais do que “em contato”, mas ele próprio o contato. Ou seja, também aberto ao exterior, aberto por todos os seus orifícios, minhas orelhas, meus olhos, minha boca, minhas narinas – e, claro, tanto esses canais de ingestão e digestão, quanto os de meus humores, de meus suores e de meus líquidos sexuais. Mas a pele, no entanto, esforça-se em estender em torno dessas aberturas, dessas entradas-e-saídas, um revestimento que ao mesmo tempo que os situa e os determina, desenvolve para si a capacidade de ser afetada e de desejar sê-lo. (Nancy, 2014, p. 20).

No contexto atual, da pandemia que começou em 2020 e se arrasta pelo ano de 2021, muitas pessoas acabaram tendo cortadas uma parte considerável das possibilidades de afeto vigentes em sua vida. Isso tudo aflorou uma carência desses afetos, uma sensibilidade imaginativa que substitui essa falta, uma perda de critérios emocionais para com as relações e também acentuou os contatos com (e não pela) a internet, como uma medida paliativa e sabidamente frustrante de contornar isso. O modo como as redes sociais são articuladas é feito para prender ali os usuários. O entretenimento nas redes é realizado em velocidades espantosas e se apresenta nas telas de maneira ininterrupta, fazendo  com que, por mais que quem acessa essas redes muitas vezes se sinta preso a elas e continue ali, não se sinta saciado pelo conteúdo que consome, porque esse, para além de projetar um mundo idealizado (algo que provavelmente é explicado mais a fundo em algum texto de Byung-Chul Han) não dá margem para respiro. Não permite o silêncio. A mente corre o risco de entrar em uma rotina de insaciabilidade que se estende para além das redes, mas para a vida de um modo geral, a cabeça assume um modus operandi que lida com o mundo através dos pressupostos dessa virtualidade ensurdecedora e não o contrário. A relação com o prazer se dá de uma forma cada vez mais pornográfica a essa altura do capitalismo tardio, a necessidade de alimenta-lo só aumenta de maneira desesperadora na medida em que ele é frustrado por uma hiperexposição ao que se deseja. Talvez nem a isso, porque essa saturação dos discursos, textos e imagens, das tendências e dos sentidos em geral pode até mesmo nublar de si mesmo aquilo que se deseja. O impulso mais primordial, que é buscar algo fora de si, se torna algo já não tão mais claro, se esvazia a ânsia e o individuo se torna refratário de si.

É claro que esse processo não é totalizante. Muitas pessoas estão chegando a um nível de desgaste com as redes sociais e não só isso: com as relações do mundo pautadas pelas dinâmicas dessa virtualidade, que acabam se afastando ou buscando outras formas de lidar com isso de um jeito mais pacato, o que a princípio parece ser também uma renúncia a um aspecto da vida pública (e nisso política), que se mostra cada vez mais incontornável, mas qualquer escolha que se faça exige abrir mão de algo. Nesse caso, se afastando desse mundo, o ganho que se pretende é uma outra temporalidade, o que aqui não significa somente um descanso no meio da era da informação, mas uma mudança quase ontológica de como estar no mundo, abrindo margem para que seus próprios desejos caminhem, não necessariamente para a uma angustiante realização anulativa em si mesma, mas para algo mais primordial: a possibilidade de se desenvolverem enquanto desejo antes de afluir (ou não) em um prazer. Para isso é preciso portanto, sem nunca negar como se sente, mesmo entendendo a influência das dinâmicas do mundo da qual fazemos parte nesse sentir, repensar o nosso desejo cotidiano em relação ao que chamamos de “conquistas”, aos outros que amamos e nos apaixonamos, ao que se quer acrescentar esteticamente e em amadurecimento para si mesmo, estando atentos aos princípios de que fomentam o modo como isso se desenvolve, ou seja, a tangibilidade dos nossos prazeres, verter nossas práticas cotidianas em espaços em que o silêncio e a absorção dos fatos da vida volte a se tornar possível.

 

BIBLIOGRAFIA

Alguma coisa do Byung-Chul Han que eu ainda não li, Byung-Chul Han, 20XX.
A Revolução Sexual, Wilhelm Reich, 1936.
Arquivida, Jean-Luc Nancy, 2014.
Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes, 1977.
“Oba, lá vem ela”, Jorge Ben, 1970.
O Fogo e o Relato – Ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, Giorgio Agamben, 2014.
Quase todas as noites, Simone Brantes, 2016.
Tao Te Ching, Lao Zi entre 250 e 350 A. E. C.


João Carlos Pinho, também conhecido como Jão, é um ser humano carioca de vinte e três anos que torce para o Flamengo, come macarrão e escreve poesia. Talvez alguém esteja lendo isso agora (Patuá, 2021) é o seu primeiro livro de poemas (Talvez alguém esteja lendo isso agora, de João Carlos Pinho | editorapatua). Não confie nele 1.

NOTAS:
  1. Nota do editor: acho que é o mesmo cara que escreveu o texto sobre o Maradona, mas pode ser só impressão minha.^

SOPA DE PATO #1

 

Essa é uma tentativa de uma coluna colaborativa de indicações variadas. Algumas coisas que tenhamos ouvido, lido, assistido ou sei lá o que nos últimos tempos. Uma sopa meio aleatória, mas com sorte você vai sair com alguma algo interessante pra caçar pela internet depois. Dessa vez fomos basicamente Pedro Ávila, Lucas Almeida, Patrícia Pinheiro e João Carlos Pinho.


Chapter one: Latin America (1973), de Gato Barbieri

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Discípulo de Coltrane e um dos saxofonistas mais importantes e bem sucedidos dos anos 1970, o argentino Gato Barbieri esteve lá no início do free jazz, tendo tocando em álbuns antológicos como Complete Communion (1965), de Don Cherry, e Escalator over the Hill (1971), de Carla Bley, só pra citar dois. Segundo o crítico estadunidense Robert Christgau, Gato Barbieri foi o único jazzista além de Miles Davis a conseguir traduzir o jazz de vanguarda em algo quase acessível ao grande público sem soar desonesto. E é bem isso que se ouve em Chapter one: Latin America, talvez sua obra-prima. Uma celebração aventurosa da música latino-americana, contando com músicos e instrumentos de todo o canto (Argentina, Peru, Brasil, Bolívia e por aí vai) mas com um embalo irresistível. Uma das faixas do álbum, “India” é uma versão linda de uma música escrita por José Ansunción Flores, Manuel O. Guerrero e José Fortuna, que foi interpretada por Gal Costa, dando nome ao excelente Índia, curiosamente também de 1973. Chapter one, como o título indica, o primeiro de uma série. Vale a pena ir atrás dos outros três álbuns, ou capítulos, respectivamente: Hasta Siempre (1974), Viva Emiliano Zapata (1974) e Alive in New York (1975). Os dois últimos são um pouco menos audaciosos, especialmente Viva Emiliano Zapata (o que faz do título um pouco irônico), mas nenhum perde a força celebratória dos encontros entre esses diferentes ritmos e instrumentos, fazendo jus à toda potência do caldo cultural da América Latina.

Bronca Buenos Aires (1971), de José López Ruiz

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Esse álbum narra, tanto literalmente, com palavras escritas e recitadas por José Tcherkaski no início de cada música, quanto musicalmente, a experiência de se viver num país em que o silêncio é a ordem, sendo proibida qualquer forma de manifestação ou expressão. Realizado durante um dos períodos mais assombrosos da Argentina, o regime militar de 1966 a 1973, Bronca Buenos Aires ficou indisponível por muitos anos, tendo sido proibido na época, mas dá pra encontrar no spotify uma reedição de 2013 que conta com versões traduzidas dos monólogos para inglês e francês, mas sem alterar a gravação das músicas em si. O tipo de disco esquecido que a gente tem que lembrar de ouvir de vez em quando.

Só quem viu o relâmpago à sua direita sabe (2020), de Kaatayra

Minha fonte oficial de música boa contemporânea é o Volume Morto, mas de vez em quando dou uma passada nas listas do rateyourmusic. Nessas descobri esse disco curioso do ano passado, que mistura black metal com samba e outras referências musicais brasileiras. Talvez se beneficiasse de uma produção um pouco melhor, em que desse pra escutar todos os detalhes claramente, mas o resultado final não é ruim, a mistura de estilos funciona impressionantemente bem a maior parte do tempo. Pelo que dá pra extrair do bandcamp, o projeto é praticamente todo de Caio Lemos, que toca todos os instrumentos e faz a maior parte dos vocais. É o tipo de coisa que, mesmo com defeitos vale a pena conferir. Eu devo tá na pista errada, mas me faz lembrar de Nação Zumbi misturando metal e maracatu, apesar de ser uma mistura mais simbiótica talvez, mais superposição do que justaposição. Trevoso mas acústico, é uma boa trilha sonora pro pesadelo que o Brasil vive hoje. Dá pra escutar de graça por aqui.

Aron Feldman

Em 1988 Jairo Ferreira sentenciou: Aron Feldman é um talento que provavelmente será redescoberto entre os vivos muito aparentemente mortos deste fim de década. Infelizmente, Aron Feldman (1919 – 1993)  continua hoje um ilustre desconhecido. Juntei alguns textos e entrevistas sobre/com Aron Feldman, além de alguns poucos filmes (4 de um total de aproximadamente 23, entre curtas, médias e longas em variadas bitolas e formatos) que podem ser encontrados na internet. Deste rápido levantamento chama especial atenção alguns registros sobre sua estada em Belo Horizonte, como o vídeo de Fábio Carvalho, O Mundo de Aron Feldman, e o videoclipe Cu de Comunista, da banda Divergência Socialista – em que atua. Enfim, alguns links, filmes, textos, dicas. Que o talento de Aron Feldman – também como fotógrafo – seja redescoberto nessa década tão incerta que ainda se inicia. Filmes , Textos: Catálogo Aron; De dentro de um cemitério – Paulo Emílio; jairo ferreira 1988; O Mundo de Aron Feldman por Fábio Carvalho.e mais aqui, aqui aqui aqui e aqui. Recentemente Cláudio Feldman – filho e colaborador de Aron – lançou o livro Aron Feldman: Cinema Nas Veias.

Level Five (1997), de Chris Marker

Chris Marker - Level Five (Trailer) | Dinca

O filme Level Five (1997) do Chris Marker tá no mubi.com e é uma piração interessante. Em parte é um documentário sobre a batalha de Okinawa, o último conflito da Segunda Guerra, que serviu de prelúdio pro lançamento das bombas atômicas no Japão. Mas também é uma ficção científica sobre essa mulher que está tentando terminar o videogame inspirado na batalha de Okinawa, obra inacabada de seu falecido marido. O filme faz uma brincadeira intercalando entrevistados que de fato viveram a Segunda Guerra e a personagem fictícia que fica rememorando sobre seu marido, discutindo com a câmera num formato videolog sobre a vida e suas conversas na internet. É tudo uma grande reflexão melancólica e cabeçuda sobre os traumas do século XX, tanto num nível macro como micro, assim como sobre as confusões entre realidade, ficção, memória e sonho, engatilhadas pelo existencialismo cibernético de fim de século.

Ernie Pike, de Oesterheld e Pratt

Ernie Pike - La sentinella by Hugo Pratt on artnet

Não tem necessariamente a ver com o filme de Marker, mas em Level Five é citado que o jornalista e correspondente de guerra Ernie Pyle, que ficou conhecido por seus relatos sobre soldados e momentos ordinários da guerra, morreu na batalha de Okinawa. Bem, inspirado nessas histórias, o argentino Héctor Oesterheld criou uma série de quadrinhos em 1957, Ernie Pike, primeiramente desenhada pelo gigante Hugo Pratt, mais famoso por sua obra-prima Corto Maltese. Ano passado, Ernie Pike saiu pela primeira vez no Brasil, pela editora Figura. É uma coleção de contos breves que, escolhendo tratar de figuras “irrelevantes” da Segunda Guerra, tece diversas reflexões sobre os conflitos humanos e como pessoas comuns lidam com os terrores da Guerra. Se você tiver chance de ler, leia, é excelente. Oesterheld foi um opositor do regime militar argentino, tendo se unido ao grupo guerrilheiro Montoneros. Ao longo dos anos 1970, Oesterheld e grande parte de seus filhos foram sequestrados pelas forças armadas. O corpo de Oesterheld nunca foi encontrado. Alguns quadrinhos dele vêm sendo lançados no Brasil nos últimos tempos, como a ficção científica O Eternauta, conhecida por sua crítica política, mas principalmente as obras que fez junto de Alberto Breccia, como a borgiana Mort Cinder, que trata um misterioso homem que nunca morre.

O cinema de Kelly Reichardt

Kelly Reichardt's 'Meek's Cutoff': The Camera's ...

Kelly Reichardt é uma diretora norte-americana que investiga em seus filmes a formação da identidade estadunidense, através das perspectivas de indivíduos marginalizados dentro da histórica canônica dos Estados Unidos da América. Seus filmes trabalham a jornada cotidiana desses outsiders, transmitindo um discurso forte sobre as violências e contradições de seu país sem precisar trazer de modo enfático e explícito as mesmas. Com roteiros simples e com pouca ação, para os espectadores que se permitam embarcar no realismo banal de suas construções, sua obra produz um efeito generalizado de ambiência, que os emerge em uma poética do silêncio altamente reflexiva.

Filmes recomendados: O Atalho (2010), Wendy & Lucy (2008) First Cow (2019), Certain Women (2016)

 

Ramones: a versão cartoon do freakshow cretino da vida, por Pedro Ávila

Muitos chamam os Ramones de “os pais do punk” e coisas do tipo. Claro, é possível falarmos em “proto-punk”, bandas anteriores ao período de formação do punk-rock como gênero (meados de 1976~77, com os primeiros álbuns de bandas como os Ramones nos EUA e os Sex Pistols no Reino Unido): muito se fala, nesse aspecto, em The Stooges, The New York Dolls, Velvet Underground, MC5, The Monks, dentre tantas. Mas quando se pensa na imagem genérica de um dito punk — o arruaceiro de cabelo espetado à Bob Cuspe — , tende-se a imaginá-lo ouvindo Nevermind the bollocks, here’s the Sex Pistols (1977), não o garage-rock/rock experimental/etc. dos anos 60.

Foto para cartaz promocional do filme O Massacre da Serra Elétrica 2 (1986), de Tobe Hooper (ou seria mais uma formação dos Ramones?)

E, óbvio, mas curiosamente, não é difícil imaginar nosso Bob Cuspe da vida escutando Ramones. A banda é das mais icônicas e influentes do gênero, mas curiosamente toda essa imagética punk (dá até pra pensar em mitologia) não tem tanto a ver com a música dos “pais do punk”. Essa discrepância já começa por como se apresentavam ao vivo: de jaqueta de couro e jeans rasgados, sim, mas cabeludos, lembrando mais metaleiros ou até motoqueiros (em sua autobiografia, Commando, Johnny Ramone conta sobre serem confundidos com uma Hell’s Angels da vida), do que outras bandas punk antológicas do início do gênero (pense nos cabelos espetados e piercings dos Sex Pistols ou The Clash). Semelhantemente, a letra dos Ramones, por mais raivosa e irônica que fosse, raramente era política. Inclusive, eles foram uma banda bem inconsistente ideologicamente. As imagens trazidas por suas canções (o “cancioneiro ramonesco”?) são de natureza cartunesca e cínica, traço em comum com grande parte das bandas punks, contudo, raramente esse traço era usado pela banda como uma crítica direta ao “sistema”, ou a qualquer autoridade. O próprio visual uniformizado deles, semelhante ao de grupos pré-anos 70 (pense na cabeleira e terninho dos Beatles), é diferente do de outras bandas, que buscavam uma certa individualidade. Ramone nem era o sobrenome de nenhum deles 1: os membros da banda eram quase personagens de desenho animado, sempre com as mesmas roupas, caricatos como seu som.

“Blitzkrieg Bop”, provavelmente a mais famosa de suas músicas, é ambígua e quase imagista, lembrando a condensação poética de uma Hilda Doolittle. Quem mais traçaria semelhanças entre uma blitzkrieg e um concerto de bebop? A música frenética e as pessoas dançantes são aproximadas ao brutal ataque surpresa de uma blitzkrieg e o desespero das vítimas. É uma imagem extrema, que sobrepõe a violência bélica da guerra-relâmpago a um concerto de música pop. Contudo, não chega a ter um discurso ideologicamente definido. A canção não condena a guerra nem o consumo de música pop. No mais, a canção pode servir como uma síntese do som da banda: divertido e simples como a música popular americana de sempre, mas agressivo e rápido como um ataque blitzkrieg. Os Ramones habitam as contradições.

Junkers Ju 87 sobrevoando a Polônia, Setembro–Outubro de 1939

 

Em “Oh Oh I love her so”, o eu-lírico canta como conheceu o amor de sua vida no Burger King, ao lado de uma máquina de refrigerante. A letra e a animada instrumentação tomam como referências a música pop romântica de conjuntos como The Ronettes (cuja canção “Baby I love you” eles regravaram, tendo Joey Ramone até colaborado com Ronnie Spector em “Bye bye baby”, uma canção bem água com açúcar). O vocal de Joey Ramone tem muito mais a ver com os cantores pop e r&b do que com os berros rasgados de tantos vocalistas punk imitadores de Iggy Pop. Contudo, há diferenças notáveis entre a abordagem dos Ramones e dos girl groups de outrora. A rapidez com que a banda toca é óbvia, mas a diferença principal é o tom debochado com que a tratam do romance. Uma lanchonete de fast food é o cenário do encontro amoroso. É um romance sem glamour, em que a cultura de consumo e o universo de referências pop estão presentes. Em “7-11”, os amantes se conhecem numa loja  7-Eleven, enquanto ela jogava Space Invaders no fliperama (música doppelgänger de “Oh oh O love her so”). Em outras canções, o eu-lírico pode estar entediado comendo frango enquanto zanza por uma avenida se queixando de não estar com sua paquera (“I just want to have something to do”). É até difícil afirmar se os Ramones são kitsch por sinceridade ou cinismo. Provavelmente os dois. Mas mesmo nas canções de amor, a violência se torna presente. Pode ser referente à cultura pop, como “Chain saw”, com suas referências ao filme de terror O massacre da serra-elétrica (1974), de Tobe Hooper, ou, de novo, relacionada à guerra, como no caso da infame “Today your love, tomorrow the world”, cujo título brinca com o slogan “Hoje a Europa, amanhã o mundo”, supostamente dito por Adolph Hitler. A conquista do amor comparada à conquista armada, o amor como guerra.

O conteúdo político das canções dos Ramones é mesmo um assunto espinhoso. Assim como é difícil identificar se o lado kitsch é sincero ou puro deboche, as posições políticas da banda são bem conflituosas. O próprio estilo de vestimenta e performance no palco da banda remete a um rigor militar (exigido por Johnny, o comandante) que contrasta com o caráter juvenil das músicas 2. Foram a banda que buscou com mais intensidade sintetizar o rock e o pop norte-americanos numa fórmula sem firulas, destoando do virtuosismo do prog rock e do profissionalismo burocrático das bandas mais populares da época. Extraíram das origens do rock todo seu potencial rebelde, mostraram que não era preciso de superprodução nem entender de música pra fazer música. Tem atitude mais inspiradora para um adolescente revoltado? E ainda assim, os Ramones flertavam com um certo imaginário militar.

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Capa do único álbum de estúdio das Ronettes, Presenting the Fabulous Ronettes Featuring Veronica, de 1964.

Não é segredo o quão direitista e pró-republicano o guitarrista Johnny Ramone era. Em sua autobiografia ele faz algumas listas de top 10: bandas punk, guitarristas, filmes de terror, filmes do elvis. Temas nada inusitados considerando sua carreira musical. Ah, mas ele fez um top 10 membros do Partido Republicano 3. É quase caricatural, mas também não tão inusitado considerando canções que ele próprio escreveu como “Commando”, que por muito tempo interpretei como se estivesse zombando e criticando a política intervencionista dos militares americanos até ler Johnny dizendo que é 100% honesto. A letra que ele próprio escreveu, defendendo seus ideais políticos, mais parece uma paródia desses ideais (“First rule is:/ The laws of Germany/ Second rule is: Be nice to mommy/ Third rule is: Don’t talk to commies/ Fourth rule is: Eat kosher salamis”). Com o selo da águia-careca como sua logo e seu foguete para a Rússia, os Ramones são quase uma auto-paródia inconsciente dos EUA.

Logo dos Ramones, design de Arturo Vega, diretor criativo da banda.

Mesmo o que poderia ser um hino anti-conservador é filtrado pela perspectiva pulp da banda. “KKK took my baby away”, canção escrita pelo vocalista Joey Ramone inspirado por como sua namorada, Linda, o traiu com Johnny (com quem ela se casaria). Se Johnny não tem pudor em chamar Joey de “comunista” em seu livro, Joey usa “KKK” como metáfora para o companheiro de banda (mas não de amizade). A canção é uma dor de cotovelo justaposta à um thriller policial (“Ring me ring me ring me with the F.B.I/ And find out if my baby is alive”). Com os Ramones tudo parece destituído de pretensão ou peso, como se habitassem um mundo de Looney Tunes, naturalmente deformado e colorido, intensificado pelo pop agressivo do instrumental. Uma canção dos Ramones é o coyote explodindo com bananas de dinamite, o Tom tendo seu rosto deformado por uma martelada. Que outra banda regravaria por livre e espontânea vontade a abertura do desenho do Homem-Aranha  4? Ou regravaria “I don’t wanna grow up” do Tom Waits, uma canção torta e angustiada, usando “Eu não quero crescer” como uma afirmação de princípios (já com mais de 20 anos de estrada nas costas)? 5

100 Greatest Movies Month: Predator (1987) Review – Views ...
O ex-governador da Califórnia em seus tempos áureos, sendo caçado na América Central por um alienígena, em 1987.

Essa leitura biográfica de “The KKK took my baby away”, apesar de servir como anedota curiosa, é obviamente limitadora. Não precisamos ir atrás dos detalhes biográficos das briguinhas entre Joey, Johnny e Linda para perceber que a música é estruturada e performada como uma lovesong das Ronettes. O eu-lírico reclama que sua “baby” disse que ia sair de férias mas nunca mais voltou. É o “Ela partiu” dos Ramones: “Se souber onde ela está, diga-me/ Que eu vou lá buscar”; “Ring me ring me ring with the president/ To find out where my baby went”. O próprio uso da KKK como vilões serve pelas rimas fáceis de se obter: “KayKayKay”; “away”, “holiday”, “say”. Podemos até argumentar que a música torna o grupo terrorista em uma piada, ladrões de namoradas, só uns talaricos de merda.

O gosto da banda pela temática cartunesca, a distorção da realidade provocada pela televisão, os gibis e a música pop, está associada ao gosto pelo jogo de palavra. Os Ramones são lúdicos, suas músicas brincam. Seja com os brinquedos da cultura pop ou com as palavras. Não parecem ter nenhuma motivação crítica pra cantarem que todas as crianças querem cheirar cola (“Now I wanna sniff some glue”). Como já disse, é difícil entender o que é ironia ou honestidade, ou até se esses conceitos se aplicam à música do grupo. Segundo Johnny, eles simplesmente achavam engraçado. “Beat on the brat” é muito menos sobre bater num pirralho com um taco de baseball do que é sobre as aliterações e assonâncias da letra:

É mallarmaico: eles não escrevem letras com ideias, mas com palavras. “Beat on the brat” mais parece poesia concreta. Sua repetição é quase como João Gilberto repetindo a letra de “Águas de março” à exaustão, ou mesmo a palavra em branco “Undiú”, como um mantra 6. Mas é também a repetição da qual Benjamin fala em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936), que produziu o mundo em que os Ramones cresceram e viveram (nosso mundo).

Foi Miguel Javaral quem me alertou para a aproximação entre o punk-rock dos Ramones e a pop art: um fascínio com o consumismo norte-americano que não pode ser definido nem como exaltação nem crítica. Pensar as faixas e discos dos Ramones como as reproduções serializadas de Andy Warhol, variações de uma mesma “imagem”, impassíveis de comunicarem algo profundo, pois num mundo de superfícies não tem o que ser cavado. O 2-d em que os Ramones vivem é o do papel em que imprimiam quadrinhos de terror da EC Comics, das serigrafias da pop art. Suas músicas exibem um imaginário violento, arriscando soarem como piadas doentias, assim como a série Death and disaster de Warhol. O que é mais violento, um filme de Wes Craven ou um telejornal qualquer?

Andy Warhol (1928-1987) , Marilyn Monroe (Marilyn ...
Serigrafias de Andy Warhol a partir de foto de Marilyn Monroe, que tinha acabado de morrer em circunstâncias estranhas poucas semanas antes, em 1962. Ou: visualização de um conjunto de músicas dos Ramones.

 

Capa da edição 24 de Tales from the Crypt, publicado pela EC Comics, arte de Al Feldstein.

 

Os Ramones não foram uma banda punk inclinada à política (quantas realmente foram, no fim das contas?). Mas, com o caráter repetitivo de suas músicas e letras, seu gosto pelo cartum e sua exploração da iconografia do mundo da comunicação de massa, pode nos dizer mais sobre nossa vida esquizofrênica e americanizada do que tantas canções com filosofices e jargões pseudo-políticos de outras bandas punk. Os ramones pintam com tintas de um Chuck Jones a caricatura mais repulsiva e atraente possível da cultura do capitalismo neoliberal 7. A angústia e confusão mental (“Teenage lobotomy”), o tédio do presente e o medo pelo futuro (“I wanna be well”), povoados por agentes secretos (“Havana affair”), animais fora de controle e aberrações mutantes, todos curtindo um som das Shangri-Las no rádio do carro à caminho da praia (“Rockaway beach”), enquanto se esquartejam. Seus nomes? Muitos: Suzies, Judies e, claro, Sheenas. É um mundo de redobras, em que a vida imaginária dos meios de comunicação já se confundiu com nossa realidade, do qual nem as próprias canções dos Ramones estão alheias: em “7-11”, a garotada dança o “Blitzkrieg Bop”: a primeira banda punk já era meta-punk. Eles terem feito isso tudo não intencionalmente talvez seja o maior testamento pro fato de que o valor de suas canções não está em observar de fora os fenômenos da vida e analisá-los criticamente, mas em experienciá-los de dentro, em toda sua sujeira e glória. É a criatura feita de retalhos 8 do cotidiano fragmentado, reproduzível. É o rosto de Marilyn Monroe e os acidentes de carro de Andy Warhol 9.

Mas não tema, como as pessoas apresentadas como aberrações no show de horrores em Freaks (1932), eles aceitam cada um de nós como um deles: “Gabba gabba we accept you one of us!”. Os Ramones vivem e nos convidam pra dentro do freak show, para saltarmos em seus concertos como os cretinos que somos 10.

WE’RE A HAPPY FAMILY: THE CRETINS OF THE RAMONES – Green ...
Joey Ramone ao lado de seu irmão Mike Leigh, fantasiado como Pinhead, o mascote da banda, inspirado em Schlitzie Surtees, ator em Freaks.

 

[Observação (outubro de 2021):

Gostaria de deixar claro que esse texto não é uma tentativa de reivindicar que os Ramones não são politicamente questionáveis, nem que bandas de rock não possam escrever letras críticas e anti-sistêmicas. O fato de os Ramones terem flertado com um imaginário conservador e violento, assim como os Sex Pistols terem aparecido na TV com suásticas nas camisetas, contribuiu para grupos racistas e perigosos se sentirem bem-vindos à cena punk e não nunca foi minha intenção relativizar esse tipo de boçalidade da banda. Relendo esse texto quase um ano depois, senti a necessidade de deixar claro que as canções dos Ramones, apesar de serem um caso interessante a ser estudado, já que revelam tudo que a de mais grotesco com os EUA, podem sim ter implicações desastrosas se levados a sério. Daí é sempre bom lembrar do recado dos Dead Kennedys. Agora, vale lembrar algumas músicas que deixam de lado, as quais vão explicitamente contra à direita conservadora, como: “My brain is hanging upside down (Bonzo goes to Britburg)”, que indagava porque diabos o Ronald Reagan visitou um cemitério militar alemão, no qual estavam os corpos de soldados e oficiais da SS; ou “Howling at the moon (Sha-la-la)”, cuja letra exclama: “I wanna take from the rich and give to the poor” (“Eu quero tirar dos ricos e dar aos pobres”). Segundo Johnny Ramone em sua autobiografia, o guitarrista republicano não se importou com essas músicas por achar que podiam ajudar a vender a banda aos jovens punks que tendiam a ser de esquerda (o que mostra o quanto ele se importava com seus valores). É bom frisar que foram Joey (que era judeu e de esquerda) e Dee Dee escreveram essas músicas, que existem e são parte do legado dos Ramones tanto quanto bizarrices como “Today your love, tomorrow the world”. Ouçam Crass e Chumbawamba e é isso.]

 

NOTAS:
  1. “Ramone” vem do sobrenome falso que Paul McCartney usava para se disfarçar nos registro de hotéis ^
  2. Seriam os Ramones soldadinhos de chumbo?^
  3. Reagen está em primeiro lugar, Schwarzenegger também tá no meio. Entre outros políticos atores de filmes e celebridades pop que aparecem na lista: Vincent Gallo, Charlton Heston e Ted Nugent.  ^
  4. Bom lembrar que The Who fez uma gravação da abertura do seriado do Batman. ^
  5. Ambos singles, “Spiderman theme” e “I don’t wanna grow up” ganharam video clipes em animação, sendo a arte do segundo de autoria de um tal de Daniel Clowes. ^
  6. Alguém ousado o bastante poderia comparar a forma com que João Gilberto regravou clássicos do cancioneiro brasileiro com as regravações dos Ramones de singles pop do passado. Na verdade, um texto sobre as regravações da banda em geral daria muito pano pra manga. ^
  7. Mais tarde, os Dead Kennedys criariam com suas músicas um universo cartunesco para zombar da política e cultura estadunidense de maneira mais direta. Os Ramones não exatamente criticam o grotesco dos EUA, eles mais residem nele, vivem suas contradições como sujeitos, não o observam de fora. ^
  8. Talvez seu melhor álbum, o que melhor capta a agressividade de seu som, é o ao vivo de 78 It’s alive!, título que é a exclamação do Dr. Frankenstein quando sua criatura se move, na adaptação de James Whale, de 1931. ^
  9. Em “7-11”, o benzinho do eu-lírico morre num acidente de carro.^
  10. There’s no stoppin’ the cretins from hoppin’/ You gotta keep it beatin’ for all the hoppin’ cretins.^