Críticas — por Giuliana Zamprogno


Dois dias de ida, dois dias de volta

Karioka (2014), de Takumã Kuikuro, é um registro de viagem e também um relato de espera. Um casal kuikuro e seus dois filhos viajam até a capital do Rio de Janeiro, onde passeiam, brincam e se divertem no mar. Para aqueles que ficam na aldeia, no estado do Mato Grosso, as conversas são permeadas pelas especulações do que acontece na cidade grande, pelas experiências daqueles que já estiveram lá e, entre contos e causos, também pelos receios causados pelas notícias de violência da televisão.

Pela articulação das palavras de quem espera com as imagens de quem é esperado, Karioka constrói uma ponte área narrativa em que diferentes subjetividades são atravessadas pela viagem. A inscrição desse caráter dialógico também ocorre quando o diretor opta em não ser o único narrador da história, o que poderia acontecer com o recurso da voz over. Assim, é pela presença de múltiplas vozes que o filme compõe um ambiente íntimo, familiar e comunitário, superando a estrutura por vezes asséptica do “diário de viagem” ou do “álbum de fotos em família”.

Então, quem filma não narra e nunca aparece no quadro. Ele é abraçado e as pessoas ao seu redor se dirigem a ele. E do ponto de onde ele vê, que é também por onde eu vejo, tudo é feliz. Hoje, pensando em como a pandemia afetou a dinâmica das relações sociais e familiares, parece impossível não sentir o confortável calor do sentimento compartilhado entre os personagens de Karioka. Alegria e medo integram a experiência coletiva e aqui, curiosamente, dão a sensação de segurança em conjunto.

Nós, como espectadores, temos acesso privilegiado aos dois lugares, aos dois tempos, numa situação (ou ilusão) de simultaneidade que só o cinema consegue criar. O retorno à terra natal ganha força porque é o ponto de cruzamento das expectativas de lá e de cá. Quando essas duas extremidades finalmente se unem no momento do reencontro, ideias abstratas e associações especulativas sobre os laços de parentesco ganham sua última materialidade para quem assiste.


Sob o real risco do real

Como dar forma ao absurdo com um celular na mão? Talvez essa seja uma das perguntas que mais instiguem, no redemoinho da internet e da vida hiperconectada, quando pensamos nos tipos de registros que de alguma forma conseguem captar a vida em seu caráter magicamente acidental, despretensiosamente. Em Homem vai relatar temor por barragem e flagra acidente de trânsito, alguém aponta para uma certa represa de rejeitos e comenta as alterações topográficas na região causadas pela empresa mineradora, sempre evocando seu interlocutor “Xavier”. Com um traço imaginário no ar, esse homem desenha com o dedo o caminho do que, segundo ele, irá desembocar num futuro túnel onde possam caber mais rejeitos de mineração. Nada mais atual do que um crime ambiental, ou nada mais atual do que o tremor e temor por um desastre que ainda não aconteceu.

Quando o homem com a câmera está prestes a pisar na rodovia para completar sua explicação, eis o inesperado: uma batida de carros violenta acontece bem na sua frente. O homem dá uns passos para trás, mas a câmera empunhada registra toda a ação, num plano tão casual, num enquadramento com tão poucos movimentos bruscos, como se tudo aquilo, apesar da fala extasiada (“Puta que o pariu uma batida aqui agora. Nossa senhora que porrada. Puta que o pariu. Quase que me pega, nó, puta merda. Puta que o pariu, nossa senhora”), fizesse parte da paisagem que há pouco ele intencionava mostrar. Ao som da música sertaneja que não parou, os dois condutores saem, não se cumprimentam e dão a volta em seus respectivos automóveis para medir o estrago, em uma coreografia estranhamente sincronizada. O absurdo carrega consigo um caráter de encenação.

Mas o homem com a câmera continua. Ele termina de cruzar a rodovia para confirmar sua tese do outro lado do túnel (“Aqui ó, deixa eu acabar de falar, deixa eu acabar de falar, aonde eles vão colocar ela aqui ó, eles vão fazer outro buracão aqui embaixo, ó”). Ele até consegue concluir seu intuito inicial de narração, mas o acidente exerce sobre ele uma força tão irresistível que o sentimos oscilando no emaranhado das duas narrativas (“Bicho que porrada aqui, olha. Esse povo é tão fia-da-puta, Xavier, que eles já vão reflorestando justamente pra tapar a visão. Deixa eu acabar de ver esse acidente aqui peraí”). Para além da inocência enternecida do absurdo in loco, há algo ali que se constrói a nível perceptivo. É como se esse homem estivesse no meio da encruzilhada das linhas de força do discurso, vacilando entre o tempo lento da narração (do conto, do causo) e a sedução imediata do evento (da informação, da notícia, do aqui e agora, etc.). E, pensando nos atravessamentos entre o virtual e o real, principalmente numa era de lives e outras formas de sincronicidade – isso de se estar em dois lugares ao mesmo tempo –, talvez esse vídeo nos mostre curiosamente o inverso, a ideia de que alguém, um dia, pode estar em dois tempos no mesmo lugar.

A presença do encontro, do acontecimento, mete um rasgo na tessitura da vida, como nos momentos em que a memória salta aos olhos e intercepta por alguns segundos a visão do agora. A imagem que irrompe é também um acidente e, tal qual esse homem, podemos ficar absortos e sair cambaleando. Nós não escolhemos nossos traumas; espiar de rabo de olho ou encara-los finalmente são algumas maneiras de lidar com eles, só não parece existir ignorância completa: “desver” ou “desviver” nunca é uma opção. A lembrança súbita é então um mecanismo pirata no processo de pensamento, em que diferentes momentos, selecionados por um eu do passado, nos invadem e se reincidem no presente. De alguma maneira, todos nós estamos em mais de dois tempos no mesmo lugar.


Separar é colocar espaço

Tirar um órgão é também inserir certo vácuo no corpo, mesmo que momentâneo, já que logo depois as entranhas dão jeito de preencher.

Uma primeira visão de Ob scena (Paloma Orlandini Castro, 2021) poderia começar por seu título, o espaço em branco deixado na separação da palavra ou na retirada de um dos ovários. Essa intervenção inevitavelmente altera os estatutos da sentença e do corpo, e também pode ser encarada como uma proteção necessária ou não à aproximação proposta pela personagem/realizadora.

Ob, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: prefixo latino que exprime a noção de “diante de”, “em face de”, “contra”. E que também diz respeito à atitude analítica própria do filme: dissociando as partes, para então submetê-las ao exame, a narradora encara a cirurgia sofrida na infância e elabora suas repercussões com as ferramentas lexicais da sua própria formação (ontológica, familiar). Nesse sentido, cria-se uma pequena máquina ótica para se estar diante da cena, onde também a fala e os cortes na matéria sonora conduzem e controlam a cadência dos movimentos subjetivos do filme, seja diante da cena da performance da artista com o dinheiro, ou diante da cena pornográfica com a mulher negra.

Se a repetição é um dos traços inconscientes mais presentes em Obscena (repetição da profissão dos pais, tios e avôs; repetição de impulsos e comportamentos; repetição da performance vista no livro, etc.), ela também é confrontada por sua faceta consciente dentro do próprio texto fílmico. A decomposição de imagens eróticas em traços montáveis e remontáveis, assim como todo o processo de reelaboração do arquivo e da memória, além da montagem, enfim, se fazem pelo viés da repetição.

Mas a exposição de Ob scena não acontece pela carne. Ela se dá antes no gesto da narradora que manuseia papéis antigos e documentos sobre sua vida com luvas de látex, organizando um contato tão íntimo quanto estéril. Assim, diante de si, o corpo é revestido pela sensorialidade do silicone, como em preservativos, sex toys e alguns artigos hospitalares — algo que reaparece em Mon Iris (Anabelle Abdul, 2021), na sequência. Esses dois filmes, na verdade, seguem o fluxo de seus próprios sujeitos ou objetos de investigação. Castro realmente segue o tratado médico da sua experiência, com textura de enciclopédia anatômica. Por sua vez, a dublagem de Iris reforça a profilmia pornográfica, seguindo o pacto da performance nas telas.

Dentro do esforço de reelaboração da experiência altamente subjetiva de Obscena, o contato intermediado por superfícies ou aparelhos (de todos os tipos: luvas, lupa, câmera) vai arquitetando um branco espaço de entre, um distanciamento preciso talvez para poder lidar com (e remexer) a dor: colocar o dedo na ferida, sim, sem no entanto reproduzir a incisão.

 

* As três críticas foram escritas no âmbito do Laboratório de Crítica da Revista Cinética em parceria com o IMS e também do Corpo Crítico de 2021 do FestCurtasBH.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *