Arte Pública, Hoje — por Lucas Almeida

No Brasil das décadas de 1960 e 1970 foram realizados vários filmes sobre arte. Em sua maioria de curta-metragem, influenciados pela recente onda europeia de filmes do gênero, como Van Gogh (1948) e Paul Gauguin (1950) de Alain Resnais ou Le Mystère Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot1, esses filmes estavam também em consonância com a então voga do documentário brasileiro moderno de tendência “verista” e sociológica –  focado em “registrar” as manifestações da cultura brasileira – que se desenvolveu a partir do início dos anos 1960 e se desdobrou em novas experiências na década de 1970. Dentro desse quadro, porém, alguns dos filmes sobre arte se destacam por não se encaixarem muito bem – em forma, ideia ou intenção – nem no conceito clássico de documentário sobre arte e nem na ideia tradicional de documentário.

Assim como Jean-Claude Bernardet, em Cineastas e Imagens do Povo, localiza uma outra vertente de filmes que rompem com o modelo sociológico e com a ideia de documentário como “registro do real” e optam por trabalhar a linguagem cinematográfica em busca de uma melhor problematização do tema tratado – e, por conseguinte, da realidade – , no âmbito dos filmes sobre arte é possível detectar operações similares. No artigo A Máquina Antes de Cézanne, escrito por ocasião de uma sessão de filmes sobre arte no Festival JB de 1980, Ronaldo Brito discorre sobre as implicações de uma aproximação desse tipo entre a linguagem do cinema e a das artes plásticas. Para o crítico, ao abordar a arte através do cinema é preciso ter em mente as diferenças e descontinuidades entre as duas linguagens. Sendo impossível evitar a diferença – sob o risco de uma espécie de “retorno do recalcado” –  é necessário, então, trabalhar com e a partir dessa diferença, afastando-se da “ideologia do documentário” e operando “cinematograficamente com a inteligência dos trabalhos”, internalizando na linguagem cinematográfica as suas questões2.

Brito se aproxima da ideia de André Bazin, apresentada no artigo Pintura e Cinema, de que “os próprios filmes são obras” e que “não se deve julgá-los somente com referência à pintura que eles utilizam, mas em relação à anatomia, ou antes, à histologia desse novo ser estético, que surgiu da conjunção da pintura e do cinema”3. No caso dos filmes tratados por Brito, que surgem a partir da década de 1960 no Brasil, é preciso atualizar a ideia de filmes sobre pintores/escultores para filmes sobre artes visuais e artistas, e considerar que alguns desses filmes se encontram em uma situação de completa união com o campo da arte, sendo realizados por críticos de arte e também pelos próprios artistas4- em um momento em que o registro fotográfico (e também cinematográfico) passa a ter maior protagonismo no meio da arte, sendo pensado e utilizado “como meio de veiculação, mas, também, lugar de acolhimento da expressão da obra na imagem, na ampla rede que constitui o trabalho”.5

 Letreiros de abertura de Arte Pública e Arte Hoje.

Arte Pública (Jorge Sirito e Paulo Martins, 1968) e Arte Hoje (Antonio Manuel, 1976) são ambos filmes que buscam retratar e divulgar um conjunto de artistas representativos de um momento específico da arte brasileira – contemporâneo à realização do filme. Ambos, também, têm em sua realização a mão de um artista atuante no contexto retratado. Pedro Escosteguy roteiriza e escreve o texto de Arte Pública e Antonio Manuel escreve e dirige Arte Hoje: histórias verídicas. O fato de artistas estarem envolvidos com os filmes (nesse caso, filmes documentários e não “filmes de artista”) não é mero detalhe, e explicita algumas questões em voga no meio artístico a partir da década de 1960, como a exploração de novas formas de veiculação da arte em busca de um maior contato com o público (fora do circuito tradicional) e a ocupação do campo discursivo (teórico e crítico) por parte dos próprios artistas .

Em artigo sobre Pedro Escosteguy, Arthur Freitas define Arte Pública como “(…) uma síntese da vanguarda nacional anterior ao AI-5 – um resumo sintomático de suas ideias e impasses”6. Realizado em 1967 por ocasião da IX Bienal de São Paulo – a “bienal pop” – , e na esteira da Nova Objetividade e de outros eventos e textos que proclamavam uma vanguarda brasileira engajada politicamente e compromissada com a experimentação dentro do contexto das discussões sobre as novas figurações e o “novo realismo”, Arte Pública fica a meio caminho entre um documentário e um explícito manifesto dessa vanguarda “pré AI-5”, representada pelos artistas focalizados e principalmente pelo texto de Escosteguy. Se Arthur Freitas aponta que “a ideia básica consistia em celebrar, por meio de alguns artistas pontuais, o caráter crítico e ao mesmo tempo experimental da produção artística brasileira recente, ali resumida na expressão ‘arte pública'”, o que transparece é que há uma certa tensão entre esse intuito e a sua realização fílmica. No limite, embora Arte Pública reste hoje, nas palavras de Freitas, como “o mais importante registro audiovisual já realizado sobre a vanguarda brasileira dos anos 1960”, a impressão que fica é que estamos diante não de um manifesto mas de um filme institucional da vanguarda.

Letreiro abertura de Arte Pública

O curta se divide em basicamente três partes. Primeiro, uma apresentação laudatória da Bienal de São Paulo, um “grande espetáculo de confraternização humana” que serve para apresentar ao grande público as mais novas tendências da arte, no caso da IX Bienal a “arte pública”, que “democratiza o consumo de suas experiências (…) contribuindo para a consolidação de um humanismo positivo, onde a cultura e a liberdade são bens de caráter público”. Após uma passagem pelas obras expostas na “bienal pop” e a defesa da “arte pública” como uma concepção genérica, há uma virada em que, tensionando o texto da narração com imagens de obras da Pop norte-americana, o filme sutilmente introduz a segunda parte: a apresentação dos artistas brasileiros que, na visão de Escosteguy, são os verdadeiros representantes de uma arte em que “se desmascaram os traficantes da guerra e da miséria” e “se descobre o germe que transforma os preconceitos que subvertem a realidade de uma civilização de característicos solidários”.

Na segunda parte a narração prossegue sua lógica, discorrendo sobre o “artista moderno” que trabalha e expõe suas obras, “ora no atelier, ora na fábrica, ora no campo estridente das relações urbanas”, “numa reflexão em termos de formas ou numa forma de mobilizar a reflexão do espectador em termos de participação”. Embalada por uma música lenta e melancólica (onipresente em quase todo o filme), a apresentação dos artistas se desenrola quase que num fluxo contínuo, dada a suavidade dos cortes e a fluidez da montagem. Primeiro, vemos Wesley Duke Lee em seu ateliê, rodeado de obras como Trapézio ou uma Confissão (1966) e Helicóptero (1967/1969). Depois de uma breve sequência marcada por um jogo de luzes e escuridão, talvez fazendo referência ao “happening” do João Sebastião Bar, o filme retoma sua música padrão com a apresentação de uma Vernissage de Antônio Dias e, na ordem, os artistas Glauco Rodrigues, Rubens Gerchman, Tomoshige Kusuno, Pedro Escosteguy, Carlos Vergara e Abraham Palatnik trabalhando ou exibindo seus trabalhos em seus ateliês ou residências.


F-111 de James Rosenquist na IX Bienal e Pedro Escosteguy em seu ateliê diante de Objeto Popular – Vote

Neste ponto, após a apresentação de Palatnik, a música se interrompe. Dá-se início à terceira e última parte, que ainda é a de apresentação dos artistas brasileiros, mas agora da tríade Lygia Pape, Hélio Oiticica e Lygia Clark. O que configura uma terceira parte é a característica das obras apresentadas, além da ruptura do ritmo e do ambiente até então predominante no filme. A narração agora dá ênfase à vertente da arte pública que “(…) entregue aos seus próprios recursos ou apta a se completar com a imaginação ou com o gesto do espectador (…)” e, “(…) plástica como um corpo humano, de que muitas vezes se apropria, parte para manifestações concretas, criando um novo instrumento de crítica e de afirmação”.

Ovos, Parangolés e Eu e Tu,  Arte Pública

Primeiro, são apresentados os Ovos, de Lygia Pape. Em um ambiente deserto e silencioso, no pé de uma montanha, jazem três cubos coloridos. A câmera se aproxima, na mão, silenciosa, até que sucessivamente os cubos se rompem, saindo deles três homens negros que puxam um samba a pandeiro, agogô e tamborim. O samba segue na trilha e um letreiro apresenta Lygia sentada diante dos cubos, os homens tocando samba ao fundo. Corta para outro cenário. O samba segue na trilha, agora mais lento, e num descampado vemos quatro homens vestindo parangolés e dançando ritmadamente em câmera lenta. Mais uma vez o artista entra em cena na frente de sua “obra”, sendo apresentado por um letreiro. Por fim, o samba cessa. Entra um comentário sonoro eletrônico e “futurista”, como que tirado de um filme de ficção científica. Em um ambiente escuro somos apresentados a três trabalhos de Lygia Clark, primeiro uma máscara sensorial, depois Eu e Tu (1967) e, fechando o filme, Cesariana (1968). Nesta última cena, o performer vagarosamente abre a bolsa-ventre, retira confetes de seu interior e os espalha pelo ar, simbolicamente semeando o futuro com novas formas de arte e de vida. A trilha tema do filme volta lentamente, o performer continua sua ação até o plano se congelar e subir o letreiro final: “A Arte Pública é uma convocação geral para a união de todos em torno dos temas primordiais da cultura e da liberdade”. O filme se encerra sintomaticamente de forma um tanto melancólica, com um texto utópico que – com a edição do AI-5 em dezembro de 1968 – se provaria insustentável.

Letreiro final de Arte Pública

Se Arte Pública possui toda uma carga utópica representativa do clima artístico e intelectual do período pré AI-5, de 1964 a 1968, marcado por anseios utópicos atrelados ao diálogo crítico com a realidade nacional – em meio a intensas trocas e tensões com o cenário artístico internacional – , há de se considerar – em especial a última parte dedicada ao desdobramento das experiências neoconcretas – que de fato é essa arte apresentada no filme, em suas questões formais e também políticas, que dará o tom à arte que será feita na década de 1970,7 uma arte que por um lado se “desmaterializa” e ataca com (os) novos meios e estratégias, mas que por outro se mantém combativa  – agora, não para mudar o mundo, mas para criticar e denunciar a situação política e cultural no Brasil e, também mas não menos importante, instituir um território profícuo para o desenvolvimento da arte contemporânea no país. Nesse ponto, após a arte revolucionária, viva e colorida de Arte Pública, chegamos em Arte Hoje, filme de Antonio Manuel que apresenta os desdobramentos da arte de vanguarda no Rio de Janeiro dos anos 1970, em especial através de uma geração de artistas que ficou conhecida como “geração ai-5” ou, nos dizeres de Francisco Bittencourt, “geração tranca-ruas”8 – artistas que iniciaram a década de 1970 com uma produção violenta e muitas vezes efêmera e precária que foi chamada de contra-arte e arte guerrilha por Frederico Morais.

Cildo Meireles, Arte Hoje.

Arte Hoje é um curta-metragem de 14 minutos, p&b, em que são apresentados 10 trabalhos de 10 artistas brasileiros. O filme é rápido, começa com uma série de fotos dos artistas acompanhadas de uma breve narração que descreve sinteticamente os trabalhos que iremos ver. Após essa introdução, o que vemos são dez pequenos episódios independentes introduzidos por um letreiro – que informa o nome do artista e do seu trabalho em questão. O primeiro episódio é Estômago Embrulhado, conhecida ação de Paulo Herkenhoff em que este devora jornais em frente a uma banca de rua. Na trilha, O Conto do Pintor, de Moreira da Silva. Depois vem Sal Sem Carne, de Cildo Meireles: um close no LP que gira na vitrola, a palavra PESQUISA em evidência. Na trilha, trechos do disco de Cildo. Seguem-se planos fechados da capa, algumas fotografias de indígenas e a contracapa, ambas, capa e contracapa, com a projeção de um arco de luz em rotação – reflexo do disco a girar. Com Porco na Festa, de Hermeto Pascoal, o Banquete de Rosa Correia é servido: no chão da sala de um apartamento um grupo devora com as mãos um leitão cozido. Pinturas da série Ocorrência de uma trajetória, de Raymundo Collares, são intercaladas a imagens de ônibus em movimento. Na trilha sonora, As Curvas da Estrada de Santos. Imagens de uma misteriosa Trouxa Ensanguentada, de Artur Barrio, em pontos marginais da cidade, são acompanhados na faixa sonora por Rogério Duarte falando sobre a morte, Deus e o infinito em Objeto Semi-Identificado, de Gilberto Gil. Sangue, Raça & Costumes, episódio de Alfredo Fontes, decompõe seu livro Origens em pequenas encenações, ao som de América do Sul, de Ney Matogrosso. Três passistas letargicamente desfilam os parangolés de Oiticica. Os Objetos de Sedução, de Lygia Pape, são apresentados ao som da banda sonora de seu filme Eat Me: A gula ou a luxúria. Um plano fechado alternando zoom in/zoom out focaliza um alto falante, a trilha é o trabalho: Cinco & Trinta da Tarde, de Guilherme Vaz. Por fim, TV News, de Luiz Fonseca, apresenta imagens da cidade do Rio de Janeiro filmadas através de acetatos com colagens feitas de adesivos de futebol e de propagandas da ditadura, alternando a marchinha/hino Cidade Maravilhosa e uma narração de um jogo do Flamengo. O filme acaba com a repetição – ligeiramente modificada – da frase que o inicia, agora proferida sobre os créditos finais: “São artistas. Com suas propostas radicais anunciam novas linguagens, novos comportamentos”.

Sangue, Raça e Costumes, de Alfredo Fontes e Banquete, de Rosa Correia

Iniciada na segunda metade dos anos 60, a produção de Antonio Manuel é marcada pelos anseios e dilemas de sua geração, como o empenho em produzir uma arte participante mas de viés construtivo, politicamente crítica mas comprometida com a experimentação, uma arte como “exercício experimental da liberdade” num momento em que arte e liberdade eram fortemente reprimidas pela ditadura. Expandir os limites físicos e conceituais da arte, aproximá-la da vida e do cotidiano, era o caminho do momento e intervir nos meios de comunicação de massa foi uma das estratégias possíveis para arriscar um choque ético-estético e alcançar o grande público. Trabalhando inicialmente com jornais, numa pesquisa que se desdobraria em vários projetos, passando pelos Flans, Clandestinas e o jornal-exposição Das 0 às 24 horas, Antonio Manuel chega ao cinema nos anos 1970, década em que realiza cinco curtas-metragens9. Arte Hoje é seu penúltimo filme, foi realizado por meio de um concurso para ser exibido em cinematecas e universidades10e, como todos os seus outros filmes, é realizado no limite das possibilidades técnicas e financeiras. Com película p&b, ausentes de som direto – mas com um criativo trabalho na banda sonora -, filmados e montados com um rigor matemático que acaba por controlar a crueza de uma linguagem que se mostra a nu, sem fazer concessões nem apelar a floreios e disfarces, seus filmes nos remetem ao cinema de Júlio Bressane e também de Lygia Pape, além de outras experiências do cinema brasileiro que podemos colocar sob a frágil alcunha de “marginal”.


TV News, de Luiz Fonseca

Não por acaso, a estrutura de Arte Hoje faz lembrar um cinejornal (“no jornal anda todo o presente”) – o que seu subtítulo, histórias verídicas, ironicamente endossa. Não há, porém, narração (de fato) ou cartelas informativas e o máximo de informação verbal que o filme apresenta são os nomes dos trabalhos e dos artistas, além da sua breve narração inicial – mais paratática que discursiva – que não entrega nada a mais que as imagens e os sons que veremos a seguir. Não há aqui, em se tratando de um filme sobre arte encomendado como material didático e de divulgação, a menor abertura à “ideologia do documentário”. E nesse sentido podemos traçar uma analogia com os próprios escritos de Antonio Manuel que, nas palavras do crítico Guilherme Bueno, “(…) têm o impacto imediato da comunicação, mas o fazem pelo viés de um choque surdo – seu sentido requer a ruptura do leitor com seus hábitos interpretativos arraigados, é reivindicado um leitor inconformado e inconformista”11. Tal movimento de se apropriar de uma linguagem de massa almejando a comunicação direta, mas não aquiescer em baixar a “taxa de informação” e, ao contrário, insistir na comunicação de estruturas novas que exigem a participação do espectador, vai de encontro à ideia exposta por Décio Pignatari em Teoria da Guerrilha Artística12: na vanguarda, assim como nas guerrilhas, o que importa é “a informação (surpresa) contra a redundância (expectativa)”13.

Episódio de Raymundo Collares, Arte Hoje

O que Manuel faz em Arte Hoje é “experimentar cinematograficamente” o trabalho de cada artista, como queria Ronaldo Brito. Em vez de registrar e comentar discursivamente, “traindo” o trabalho de arte e o próprio cinema, Manuel inventa a cada vez uma forma de apresentação, impregnando som e imagem de formas e sentidos (lineares ou não) em conexão direta com o trabalho enfocado, sem se preocupar, porém, em exagerar essas relações, mantendo ainda alguma fé na objetividade indicial da imagem cinematográfica – o que não é nenhuma contradição, a imagem cinematográfica também como registro.

Curiosamente, a estrutura do filme se aproxima também da ideia de organização de Ondas do Corpo – pesquisa realizada por Manuel na década de 1970 e ainda inédita em livro. Além das relações diretas com Arte Hoje, da coincidência de artistas e trabalhos focalizados, sua estrutura é pensada como uma soma de partes abertas para veiculação dos trabalhos, em que “cada artista é parte de um todo e os pontos abordados por cada um, na sua totalidade, formam um corpo”14, organizado, editado e assinado por Antonio Manuel. E nesse sentido é preciso considerar, também, o próprio filme como um trabalho de arte, um caso especial de metalinguagem no limite das intenções do artista e da instituição que o produziu. Sabendo que o filme foi encomendado para mostrar “jovens criadores da cultura brasileira”10, nada mais justo que fosse realizado por um desses “jovens criadores” e que, dando um passo além, o próprio filme fosse a materialização do “assunto” tratado, oportunidade de contato direto com a forma de arte sobre a qual o espectador incauto gostaria de se informar 15.


Estômago Embrulhado, de Paulo Herkenhoff. Arte Hoje


SOS de Rubens Gerchman, Arte Pública

Voltando ao Arte Pública, não é esse “estatuto de obra” que necessariamente faz falta ao filme, mas é o desnível entre a arte apresentada (fundada na surpresa) e a forma cinematográfica que a apresenta (redundante, condizente à expectativa de um documentário qualquer), que o limita. Não que no filme faltem momentos de singular beleza, e nem que não seja um potente registro visual da arte daquele momento. Mesmo em algumas passagens, há sim uma intencional contaminação da forma fílmica pelos sentidos amplos dos trabalhos artísticos – na já citada cena de Wesley Duke Lee, que reflete o misterioso, o lúdico e o sarcasmo presentes em sua obra – além de, com o jogo de luzes a ligar e desligar, remeter ao “happening” do João Sebastião Bar; na passagem de Gerchman, em que o detalhe de sua serigrafia SOS, ampliado, se transforma em letreiro e grito do próprio filme; nas partes dedicadas à Op Art ou mesmo na sequência dos parangolés que, apresentados em câmera lenta e em película colorida, fazem mais jus à relação do movimento, da dança e da cor na constituição de um “espaço ambiental” (no caso, fílmico), do que no filme de Antonio Manuel.

Mas tanto a trilha sonora de Arte Pública, que poderia muito bem ser muzak e que, a despeito disso, não tem nada a ver com a produção exibida – essa, muito mais ligada à música erudita de vanguarda da época e ao rock Iê Iê Iê da Jovem Guarda, sem falar na Tropicália que também apareceria no ano de 1967, -, quanto o texto relativamente rebuscado de Escosteguy, piorado pela seriedade e empolação do locutor, diluem as partes positivas do filme num todo que quase chega à desdiferenciação e que, o que é pior, acaba passando um já referido senso de melancolia – que, mais uma vez, não tem a ver com a arte da vanguarda brasileira dos anos 1960 naquilo que lhe era constitutivo, mas sim com seu destino, o desmanchar de sua utopia a partir do AI-5. Em suma, a arte de vanguarda recebe por parte de Paulo Martins e Jorge Sirito um tratamento elevado, distinto, quando era no nível do chão da rua, das quermesses e parques de diversão que aquela produção vicejava. Arte Hoje, fiel aos trabalhos que apresenta, traz na forma a contingência e a invenção, ao mesmo tempo que o precário, a virulência e o desespero que a arte naquele momento transpirava.

Décio Pignatari, no já referido Teoria da Guerrilha Artística, coloca Terra em Transe em questão indicando que Glauber Rocha “não soube criar o hibridismo entre dois veículos” – a poesia linear (“vigente há uns cinco lustros”) que guia o filme ficando em descompasso com a imagem estruturada por simultaneísmo (contemporânea). Já Bernardet, ao tratar das problemáticas entre a intenção e a linguagem de Viramundo, documentário de Geraldo Sarno, sentencia: “usamos uma linguagem ao mesmo tempo que somos usados por ela, não é possível fazer dela um instrumento neutro, vazio de significação, adquirindo apenas as significações que queremos lhe atribuir”16. Para fechar, e apelando para analogias já um tanto gastas mas que por isso mesmo não são de todo equivocadas, o descompasso que vemos nos filmes do Cinema Novo que ainda insistiam no substrato literário (“história com estória e alguma parataxe”) mesmo quando já confrontados pelos filmes “marginais” – em especial de Sganzerla, Bressane e Candeias (“história paratática sem estória17”) -, é o descompasso que sentimos entre Arte Pública e Arte Hoje. De toda forma, são ambos documentos valiosos sobre a arte brasileira das décadas de 60/70 e é uma pena que sejam, hoje, tão pouco vistos. Os filmes estão disponíveis no youtube (link nas notas)18.

Referências:

BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. 326p.

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. 197p.

BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016.

BRITO, Ronaldo. A Máquina Antes de Cézanne. in: Filme Cultura, Embrafilme n.35-36, p. 37, 1980.

BUENO, Guilherme (org). Antonio Manuel : eis o saldo : textos, depoimentos e entrevistas.  Rio de Janeiro, Funarte, 2010. 137 p.

FERREIRA, Gloria. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. 575 p.

FERREIRA, Gloria; FARIAS, Agnaldo.; ANJOS, Moacir dos.; HERKENHOFF, Paulo. INSTITUTO TOMIE OHTAKE. Meio século de arte brasileira = Half century of brazilian art. São Paulo: Instituito Tomie Ohtake, 2007-2009. 4 v. (Meio seculo de arte brasileira).

FREITAS, A. Notas sobre o amor: Pedro Escosteguy em Curitiba. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 127–143, 2017. DOI: 10.24978/mod.v1i1.734. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8662258. Acesso em: 30 nov. 2022.

VOROBOW, Bernardo (org). ADRIANO, Carlos (org). Julio Bressane : cinepoética.  São Paulo, Massao Ohno, 1995. 174 p.

NOTAS:

  1. Os filmes sobre arte foram objeto de críticos e teóricos a partir da década de 1940. Sobre o tema, são célebres os escritos de André Bazin, Henri Lemaitre e Jean Mitry. Outro dado curioso de indicar, sobre esses filmes no contexto brasileiro, é que a sessão de inauguração do Departamento de Cinema do MAM-RJ, em 1955, foi dedicada a “filmes sobre arte”, tendo sido exibido o Van Gogh de Resnais, dentre outros filmes.^
  2. Ronaldo Brito – “A Máquina Antes de Cézanne”, Filme Cultura, Embrafilme n.35-36, p. 37, 1980. ^
  3. BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 176.^
  4. Por exemplo, os críticos Wilson Coutinho e Olívio Tavares de Araújo realizam filmes – sem falar dos audiovisuais de Frederico Morais -, assim como Antonio Manuel realiza Cultura e Loucura e Arte Hoje, Raymundo Amado, poeta, realiza Apocalipopótese como artista integrante da manifestação e Pedro Escosteguy roteiriza e escreve o texto de Arte Pública.^
  5. FERREIRA, Glória. Anos 70 – arte como questão. in: Meio século de arte brasileira. São Paulo: Instituito Tomie Ohtake, 2007-2009. 4 v.^
  6. FREITAS, Arthur. Notas sobre o amor: Pedro Escosteguy em Curitiba. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 127–143, 2017. Toda a descrição e parte da análise exposta abaixo sobre Arte Pública é devedora do texto de Freitas.^
  7. nesse sentido é curioso notar que os filmes Arte Pública, Ver Ouvir e Apocalipopótese estiveram presentes na mostra Information realizada no Moma em 1970, representando a produção brasileira junto, por exemplo, dos registros cinematográficos da Situação T/T1 de Artur Barrio.^
  8. A geração tranca-ruas. In: BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016. P. 33. Artigo com entrevista de Frederico Morais, por ocasião da manifestação Do Corpo À Terra, realizada em abril de 1970 em Belo Horizonte^
  9. São eles: By Antonio Manuel, 1972. 16mm; Loucura & cultura, 1973. 35mm; Semi-Ótíca, 1975. 35mm; Arte Hoje, 1976. 16mm; Uma Parada, 1977. 16mm^
  10. A arte abrange tudo – é uma experiência vital. In: BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016. P. 184.^^
  11. BUENO, Guilherme (org). Antonio Manuel : eis o saldo : textos, depoimentos e entrevistas.  Rio de Janeiro, Funarte, 2010. Introdução, p. 15.^
  12. publicado em 1967, foi um importante ensaio para a configuração das estratégias da vanguarda brasileira na virada da década de 60Frederico Morais o tomou como inspiração para desenvolver a ideia de arte de guerrilha^
  13. PIGNATARI, Décio. Teoria da Guerrilha Artística. In: FERREIRA, Gloria. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006.^
  14. “Estabelecemos na estrutura do livro a ideia de abrir novos espaços para veiculação dos trabalhos – dividir por partes, ou seja, por nomes dos artistas e seus discursos sobre o corpo. Nesse sentido cada artista é parte de um todo e os pontos abordados por cada um, na sua totalidade, formam um corpo. Nossa intenção é fundir os sentidos individuais num corpo próprio e coletivo.” In: Ondas Do Corpo, Antonio Manuel. Inédito. ^
  15. seja na forma de documentação de ações e obras (Estômago embrulhado, Banquete, pinturas de Collares), de “performances” feitas para a câmera e para o próprio filme (Sangue, Raça e Costumes), da realização fílmica de obras que existem de outra forma fora do filme (Tv News) e, por fim, o próprio filme Arte Hoje.^
  16. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 214^
  17. PIGNATARI, Décio. História sem estória. In: VOROBOW, Bernardo; ADRIANO, Carlos (orgs.). Júlio Bressane: Cinepoética. São Paulo, Massao Ohno, 1995. 174 p.^
  18. https://www.youtube.com/watch?v=tteMewMZn14   e   https://www.youtube.com/watch?v=BFuZFyx_tMM&t=24s^

Duas pausas em Spray Jet – uma nova atração na tela? — por Lucas Almeida

Pintei um quadro só por fora das molduras
Eu joguei tinta nas paredes todo mundo achou legal
Dei cambalhotas e as madames exclamaram
“Esse Moreira é um artista genial!”
O Conto do Pintor, Moreira da Silva.

Na década de 1980 Ana Maria Magalhães dirigiu dois curtas-metragens com o intuito de “fazer uma cobertura da cultura daquela época”.1 São eles: Assaltaram a Gramática (1984) e Spray Jet (1985). Respectivamente um filme sobre poesia e outro sobre artes plásticas, ambos com um recorte muito bem definido de “atores” e práticas. O primeiro versa sobre a poesia e os poetas marginais da década de 1970, que estavam sendo publicados comercialmente pela primeira vez no início dos anos 1980. O segundo, sobre a “Geração 80” e a “volta da pintura” em voga naquele momento, representada no filme pelos jovens artistas José Leonilson, Leda Catunda e Ciro Cozzolino. Afora o contexto histórico de suposta euforia pela abertura política e uma estrutura fílmica semelhante – decupagem clássica, cenas documentais entremeadas com encenações e “performances”, cores quentes e na trilha sonora o que ficou conhecido como “rock brasil” – os dois filmes compartilham uma característica que, não por acaso, combina com a forma cinematográfica de ambos: são filmes que tratam de atividades e atores “da moda” na cultura e “em alta” no mercado da época.2 Não que sejam exatamente filmes de propaganda mas, feitos no calor do momento, se deixam contaminar pelos discursos midiáticos acerca da prática específica que cada filme enfoca, tendo, por isso, forte apelo publicitário.

Em geral, Spray Jet se divide em blocos de depoimentos individuais de cada artista, com imagens de cobertura de passeios pela cidade, ruas, lojas, parques e um museu (MASP); imagens das pinturas e da prática de cada artista; uma vernissage e algumas encenações. Dos depoimentos e das imagens pode-se tirar, em síntese, algumas ideias que eram apontadas como características da produção dos jovens artistas dos anos 1980, como a retomada da pintura e a ruptura deliberada com a arte da geração anterior, conceitual e difícil, “jogo dos paradoxos” no dizer de Leonilson; a assunção da pintura como uma prática visceral, “expressionista” e, ao mesmo tempo, prazerosa, “uma forma legal de viver”, ligada à vida íntima e cotidiana dos artistas e dos espectadores; e, por fim, a apropriação de imagens da história da arte e da indústria cultural misturadas e reconfiguradas num “citacionismo” plástico.

Embora nessa época a produção de cada um dos três artistas já apresentasse uma evidente singularidade, e por mais que o filme dê algum espaço para a manifestação de suas diferenças, há um direcionamento no sentido de construir um discurso comum, retratando a dita “volta da pintura” como um movimento, os pintores como uma geração, suas práticas como necessariamente relacionadas e embasadas nas características acima referidas. Assim, o filme se aproxima das manifestações críticas/publicitárias sobre a nova pintura, emitindo juízos que, de acordo com Basbaum (2001, p. 311), “não foram gerados em contato direto com essa nova produção, mas a partir de um conceito de pintura mais amplo, tão genérico quanto indeterminado”, apelando-se em especial para uma dimensão comportamental que supostamente estaria inscrita na produção. Por serem ideais, esses juízos se fragilizam com muita facilidade.3 Aqui, iremos nos deter em duas partes encenadas do filme em que tal discurso chega a ser confuso e contraditório.

Fotogramas de Spray Jet; Maria Gladys e Helena Ignez

Em uma das cenas ficcionais que entremeiam os depoimentos e as tomadas “documentais” de Spray Jet, vemos Maria Gladys e Helena Ignez a atuar como empregada e madame, respectivamente. Nesta cena, enquanto a empregada (des)ajeita um quadro pendurado na parede – uma pintura de José Paulo Moreira da Fonseca -, a madame reclama da ousadia do “menino” artista – provavelmente seu filho – , recolhe alguns objetos em sua sala de estar – carcaça de violão, garrafa, o que parece ser um jogo americano cheio de areia, e um ovo, todos “arte” do menino – e ordena que a empregada guarde uma parte na cozinha e jogue o resto fora. Assim o faz Maria Gladys, ou Dinalva, mas jogando-os direto da janela para a calçada. Os objetos caem, ouve-se um carro freando bruscamente e, na sequência seguinte, Leda Catunda, de dentro do carro, observa o entulho e exclama: “oba, é arte!”. Só que a sequência não acaba aí e, já sem som, é possível ver que, depois da exclamação afirmativa, a artista, com um semblante confuso, põe em cheque a sua afirmação.

Fotograma de Spray Jet; Leda Catunda

Nessa cena, temos que o artista é filho da madame, e que ele produz uma arte objetual que remete de alguma forma à ideia de ready-made, embora não possamos assegurar suas ideias e preferências artísticas. Fato é que ele não pinta, e que não há nada de expressivo em um ovo. Dinalva, no começo da sequência, (des)ajeita uma pintura, arte que a madame provavelmente aprecia e contrapõe à produção disparatada de seu filho. Como vimos, a produção do filho vai parar na calçada, jogada fora como lixo, e Leda Catunda – apresentada nos créditos de abertura como pintora e não simplesmente como artista -, menos do que ficar confusa, aparenta algum constrangimento diante de sua afirmação, quase como que após um ato falho. Bem, seria o filho da madame um jovem pintor da “Geração 80” ou um anacrônico vanguardeiro perdido na década errada?

Por mais confusa que seja essa cena, resta claro pelo desenrolar do filme que sua função é a de caracterizar comportamentalmente a nova geração de artistas, colocando-os como jovens transgressores (“que ousadia desse menino!”) que operam uma ruptura (alegre e disparatada – “oba!”) na forma de fazer e entender arte das gerações anteriores (pintura bem comportada com chassi – de extração modernista). O que podemos pensar, porém, considerando os exemplos de “nova arte” que o filme apresenta, a pintura na parede e os objetos que são jogados fora – além da confusão de Leda Catunda – é que a madame mercado, mãe do(s) artista(s) do Brasil, ainda naquele momento renega a produção “conceitual e difícil” das décadas de 1960/70, preferindo uma pintura à qualquer coisa de arte contemporânea. E podemos dar continuidade a esse entendimento quando chegamos na cena da vernissage, em que a madame também está presente – apenas não é mais representada por Helena Ignez.

Fotograma de Spray Jet; Vernissage

O que temos, portanto, não é apenas uma retomada da pintura – claro, agora uma pintura de grande formato, mal comportada, sem chassi e muitas vezes irônica – mas uma continuidade das vendas. Aqui vale fazer menção a “Lugar Nenhum: o meio de arte no Brasil”. Publicado por Paulo Venâncio Filho em 1980, o texto traz um diagnóstico do meio de arte no Brasil, que “ (…) não sabe se existe ou se não existe”, e que “(…) Quanto mais procura existir, menos consegue” (2001, p. 216). O ponto do texto é que não há no Brasil – até aquele momento, 1980 – “um meio eficaz para a sobrevivência da produção”, e isso se dá, propositalmente, pelo modo de funcionamento do mercado de arte brasileiro, instaurado na década de 1960 sob “uma ideologia conservadora, originária da elite que o detinha”, e que antagoniza com a produção restringindo-a aos limites do consumo. Como consequência, a arte brasileira não encontra em solo nacional uma verdadeira dimensão cultural, existe apenas “enquanto satisfação de consumo, simples objeto decorativo, signo de distinção social”, sendo antes disso, em certos momentos, apenas uma boa forma de investimento (2001, p. 218).

Outra característica que Venâncio aponta no texto é a pouca ou nenhuma absorção da produção contemporânea pelo mercado, que sobrevivia até então da reapropriação da arte já institucionalizada, em especial da pintura dos modernistas históricos. Ele atesta, porém, que “um dia o estoque do mercado estará esgotado, e o confronto com os trabalhos contemporâneos será inevitável. Entretanto, pode-se prever que a sua simples apropriação não deverá modificar substancialmente o meio” (2001, p. 222). É justamente isso que ocorre alguns anos depois, no início da década de 1980. O mercado brasileiro busca se aquecer rapidamente por meio do trabalho de jovens artistas que praticam pintura, servindo-se da institucionalização internacional do “retorno da pintura” para legitimar mercadologicamente a incipiente produção. A inserção da produção contemporânea no mercado foi, porém, apenas mais um artifício para se atrair capital de forma rápida. Mais uma vez, “a legitimação do trabalho através do capital vai pagar sua entrada para uma história imediata, ou seja, o consumo” (VENÂNCIO FILHO 2001, p. 216). Aqui voltamos à Madame. Não seria difícil imaginar Dinalva tirando poeira de um Leonilson.

Fotogramas de Spray Jet; artistas produzindo e Ciro Cozzolino atirando lata de tinta.

A cena final do filme se passa, emblematicamente, num grande terreno baldio, “lugar nenhum” em que os três jovens artistas pintam energicamente as suas telas e jogam “para o alto qualquer coerência”.4 Nesse ponto, Leonilson diz: “O filme vai ser um testemunho. É como se eu tivesse escrevendo uma parte de uma coisa”, e Ciro Cozzolino completa: “Eu tô achando que é um filme, e é um documento, de um instante assim, que eu não sei se é muito importante também, assim como não é muito importante que a obra permaneça”. Ao fim e ao cabo, Spray Jet resta como um documento desse momento – mais discursivo do que real – da pintura brasileira do início dos anos 1980, em que esforços confluíram no sentido de criar um movimento, legitimar uma nova produção e inseri-la no circuito, mas não de estabelecer uma estrutura institucional e mercadológica saudável e orientada para a promoção da arte contemporânea. Embora com algum trânsito pelo exterior – no filme há referência à participação de Leonilson na Bienal de Paris de 1985 -, representados por galerias e produzindo intensamente, na realidade os jovens – e também e especialmente os não jovens – artistas brasileiros da década de 1980 estavam construindo suas obras – e o próprio circuito – num terreno baldio, entre lamaçais e mamoneiras.

Fotograma de Spray Jet; artistas e suas telas

A década de 1980 foi passando e a “pintura jovem”, de tanto ser tratada como moda, rapidamente tornou-se démodé.5 Com o arrefecimento da “volta da pintura” no cenário internacional, no Brasil a “Geração 80” também foi perdendo seu apelo e se mostrando, afinal, apenas como um bom slogan. Houve um movimento por parte da crítica e, em especial, dos artistas, de se afastar desse momento e seguir na construção de suas pesquisas artísticas individualizadas. Do discurso de promoção anteriormente propagado ficou claro que não só não houve uma “volta da pintura” – que sempre persistiu em existir, isso sem falar que o neoexpressionismo alemão por exemplo datava já da década de 1960 (ARCHER, 2012, p. 160) – , como também que havia mais continuidades do que rupturas na produção da década de 1980 com a arte das décadas de 1960 e 706 – como bem demonstrou Basbaum (2001) – e que o discurso de ruptura serviu internacionalmente como uma forma de promoção mercadológica da pintura em detrimento de outras formas de arte, sendo a produção madura de boa parte dos artistas relevantes envolvidos na “Geração 80” muito mais influenciada por questões da arte experimental das décadas anteriores do que por questões da pintura “expressionista”, como defende Hal Foster em termos mais amplos (FOSTER, 2017, p. 52).7 Mas nem tudo é de todo mal, e como atestou Milton Machado em conferência de 1992:

Melhor que fiquemos, com Nietzsche, na crença de que a produção de mentiras da arte adquire sua nobreza pelo fato de que é assim que ela produz novas verdades. A essas alturas, os bons artistas da “Geração 80” já se afirmaram como tais – alguns, até merecidamente, como “os tais”; muitos conseguiram finalmente adquirir suas genuínas individualidades, resgatá-las àquela “individualidade grupal” – norma e paradoxo – que se lhes tentou colar à testa como um rótulo. Todos finalmente e felizmente muito “mal comportados”, em suas buscas profissionais de coerência, quaisquer que sejam elas. A crítica , que na época se manifestava com euforia, hoje parece ter revisto algumas daquelas posições. E seria injusto não reconhecer entre os resultados de seus esforços a emergência de um momento – não de euforia, mas – de grande dinamismo, de participação, capaz de atrair a atenção de um público anestesiado à produção e de revitalizar o mercado, e do qual todos nós , de certa maneira, nos beneficiamos (MACHADO, 2001, p. 339).

 

Referências

ARCHER, Michel. História da Arte Contemporânea. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 2.ed. p.155 – 199.

BASBAUM, Ricardo. [1988] “Pintura dos anos 80: algumas observações críticas”. In: Idem (org.). Arte contemporânea brasileira. Texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 299-317.

CHIARELLI, Tadeu. [1987] “Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte contemporânea”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 257-270.

FOSTER, Hal. O Retorno do Real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

MACHADO, Milton [1992] “Dance a noite inteira mas dance direito”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p.321-344.

MONTEIRO, Fabiana Della Coletta. Da geração 80 na arte contemporânea brasileira: profissionalização e permanência no ambiente artístico paulista. 2016. 157 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

MORAIS, Frederico. [1984] Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você? In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p.224-230.

SESC TV. Sala de Cinema: Ana Maria Magalhães. Brasil: SescTV, 2011. 1 vídeo (55 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IzNDTWTSdYo&t=2216s. Acesso em: 01 jul. 2022

SPRAY Jet. Direção: Ana Maria Magalhães. Brasil, Embrafilme, 1985. 35mm, COR, (14 min)

VENANCIO FILHO, Paulo. [1980] “Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira. Texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 216 – 223.

 

NOTAS:
  1. SESC TV. Sala de Cinema: Ana Maria Magalhães. Brasil: SescTV, 2011. 1 vídeo (55 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IzNDTWTSdYo&t=2216s.^
  2. Os ‘atores’ de Assaltaram a Gramática – Chico Alvim, Waly Salomão, Paulo Leminski, Chacal (e Ana Cristina César, que havia falecido em fins de 1983 e é homenageada numa cena em que aparece lendo um trecho do poema Samba Canção) são todos poetas que viveram e desenvolveram boa parte de sua obra nos anos 1970, e que estavam naquele começo de década sendo lançados pela Editora Brasiliense. Assaltaram a Gramática, porém, é bem mais político (e apocalíptico) do que Spray Jet. Talvez pela idade dos poetas, talvez por ser a poesia, no dizer de Décio Pignatari, a arte do anticonsumo.^
  3. Utilizo como referência principal o texto Pintura dos anos 1980: algumas observações críticas, publicado por Ricardo Basbaum em 1988, em que o autor analisa alguns textos escritos pelos críticos Roberto Pontual, Frederico Morais e Marcus de Lontra Costa para promover a pintura nos anos 1980.^
  4. Faço referência ao texto “Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você?”, em que Frederico Morais escreve: “O jovem artista dos anos 1980 não se sente absolutamente comprometido com temas, estilos, suportes ou tendências. Joga para o alto qualquer coerência” (2001, p. 227). E brinco com o fato de que, no filme, Ciro Cozzolino, no terreno baldio, joga para o alto uma lata de tinta.^
  5. Faço referência à frase de Hal Foster: “Tratado como moda, o pós-modernismo tornou-se démodé.” (2017, p. 187) ^
  6. É curioso notar que a última imagem do filme – na qual os três artistas empunham suas telas sem chassi (tecidos) – possibilita uma analogia visual direta com os parangolés de Hélio Oiticica.^
  7. “No entanto, estamos diante de um falso testemunho, pois na década de 1980 o minimalismo era descrito como redutor e retardataire para que o neoexpressionismo parecesse expansivo e de vanguarda, e desse modo as diferentes políticas culturais dos anos 1960 minimalistas e dos anos 1980 neoexpressionistas foram mal-interpretadas. Apesar de suas aparentes liberdades, o neoexpressionismo participou das regressões culturais da era Reagan-Bush, ao passo que, apesar de suas aparentes restrições, o minimalismo abriu um novo campo da arte, que a arte de ponta do presente continua a explorar (…)” (FOSTER, 2017, p. 52).^

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