1.
Pela janela, vemos uma árvore. É uma figueira de copa robusta, e no final da tarde, sob a luz do que alguns chamam de “hora dourada”, as folhas parecem vibrar com um vermelho intenso. Mas agora chove. Chove e tudo, tanto a árvore quanto a calçada que lhe suporta e a rua residencial onde fica, tudo parece coberto por um filtro preto e branco, como num filme antigo. Do lado de dentro, vemos uma sala habitada por duas pessoas. Antes de descrevê-las, porém, vou falar da sala. O centro do assoalho, que é de madeira, está coberto por um tapete com motivos que lembram algo de Monet. Na sala existem duas poltronas de couro, onde as pessoas estão sentadas. O couro das duas está desgastado nas pernas e nos braços, como se um gato tivesse afiado suas garras ali. Aquele gato, que se aninha no colo de uma das pessoas e tem manchas brancas e marrons no pêlo. Há prateleiras pregadas nas paredes, e além de livros elas ostentam objetos indefinidos, mas que podem ser caixinhas, cinzeiros, estatuetas ou brinquedos de madeira. Há livros por toda a parte, na verdade. Há livros entrincheirados no chão, livros empilhados ao lado das poltronas e livros cobrindo toda a extensão de uma mesa de centro feita de mogno com um tampo de vidro. Toda a extensão é inexato: existe uma brecha, onde as pessoas posicionaram uma bandeja com um bule de chá e três xícaras, como se esperassem por alguém. Os livros são de todos os tamanhos, desde livrinhos de bolso que vemos em bancas de jornal até livros de arte com gravuras próximas ao tamanho original. Agora vou descrever, ou tentar descrever, as pessoas. Uma das pessoas, que está sentada na poltrona mais próxima da janela, é uma mulher. Vou chamá-la de Rebeca. Rebeca tem cabelos pretos e curtos. Vemos suas orelhas sem brincos. Contra a luz e de perfil, percebemos certo traço romano que lhe delineia a testa e o nariz. O centro do seu nariz tem uma saliência mínima, porque uma vez caiu da bicicleta e o quebrou. Mas isso faz muito tempo. Ela usa, nesse momento, em que chove e o gato dorme, uma camiseta branca de tecido fino estampada com um dos únicos retratos de Franz Kafka e uma calça preta de veludo cotelê. Está descalça. Fuma um cigarro de filtro branco e beberica de uma xícara japonesa o chá de amora. Não tem mais de 28 anos. E está entediada. A outra pessoa, que está sentada na poltrona mais próxima da porta — embora a sala seja pequena e a distância entre as duas poltronas não seja grande —, segura o gato no colo e é um homem. Vou chamá-lo de João. João tem cabelos castanhos e selvagens que cobrem suas orelhas, mas não são muito compridos. Seus traços são definitivamente latinos, mas a palidez e o corte de cabelo o traem, fazendo-o parecer, por exemplo, francês. Usa uma camisa social de mangas curtas branca, calças jeans claras e botas de camurça sem cadarço. Fuma um cigarro de tabaco orgânico que enrolou. Seus olhos são escuros, muito escuros. Não tem mais de 23 anos. Ouve o ruído da chuva e está entediado.
2.
Tento escrever sobre esses personagens. Tento compor o clima, a sala e os personagens como se pintasse um quadro. Tudo aos poucos. Procuro me relacionar com eles em gestos mansos. De alguma forma, eles, mas sobretudo Rebeca, são personagens que busco há um tempo, então se os tenho agora sentados numa sala, sóbrios e entediados, é melhor agir com prudência. Não se aproxima tanto do que Salinger fez com Seymour, escrevendo um livro inteiro apenas com as descrições físicas de seu personagem, partindo delas para contar suas histórias, e sua grande história, e nos levar por seus ensaios, mas ao descrever meus personagens dessa maneira, penso que estou conduzindo uma narrativa invisível, como se nesses detalhes residissem relações que apenas uma leitura atenta pode revelar. Isso soa literário. Mas a verdade é que João e Rebeca ainda são personagens vagos, de personalidades insustentáveis, e eu mesmo não sei muito a respeito deles. Mais do que, de um texto para o outro, eu sempre trabalhar com personagens semelhantes, meus personagens são todos parecidos entre si. Isso é complexo, mas não necessariamente problemático. É uma questão de contrastes, suponho, de dinâmica literária. Por outro lado, se tenho personagens parecidos, estou dizendo justamente que essa falta de contrastes sociais, essa organização civilizatória que nos empurra dia após dia aos nossos semelhantes, é um processo entediante, que nos priva das múltiplas possibilidades advindas da interação humana. Mas não sei se acredito nisso. Não ando muito animado com as múltiplas possibilidades advindas da interação humana. Agora são 18h30 de uma quinta-feira e está quente, depois de um mês que foi o mais frio em São Paulo nos últimos cem anos. J. teve insônia à noite e agora dorme. Estou distraído, e preciso voltar para a história, uma história sobre o tédio. Estou pensando no trabalho que me espera amanhã. Hoje não fiz quase nada, e passei o dia com uma sensação estranha de desgarramento. No entanto, varri o apartamento e passei pano no chão da cozinha e do banheiro. Isso é positivo. Não, não vou transformar esse texto numa continuação do diário que interrompi. Vou voltar aos meus personagens sem história. Sei que eles são bonitos. E que estão entediados.
3.
— Você já ouviu falar do Natsume Soseki? — diz João, deixando o tabaco cair num cinzeiro de ferro que está sobre o braço da poltrona.
— Ele escreveu Eu Sou um Gato, não foi? — diz Rebeca, depois de um silêncio longo.
— Sim. — João tira do bolso traseiro da calça sua carteira, de onde retira uma nota. — De 1984 a 2004, o rosto dele estampava a nota de 1000 ienes. Meu tio esteve no Japão e me trouxe isso como um souvenir, digamos, mas nem fazia ideia quem era o escritor.
Rebeca alcança a nota que João lhe estende, e depois de examiná-la por um instante, inclusive contra a luz, como se desejasse conferir que é verdadeira, a devolve.
— Foi por causa do gato? — diz, tirando mais um cigarro do maço.
— O que? — faz João, guardando a nota na carteira e a carteira no bolso.
— Que você lembrou. Quer dizer, pensou no Soseki. Foi por causa do gato?
João a encara com a expressão de quem não entende. Então acaricia o felino em seu colo.
— Não. Acho que não — sussurra — só pensei nele. No nome dele. Soseki é um pseudônimo. O sobrenome verdadeiro era Kinnosuke, ou algo assim. Soseki é “incômodo” em japonês.
— Então deve ter sido por causa do chá — diz Rebeca, erguendo o copinho de barro.
— O que?
— Que você lembrou. Esse bule e essas xícaras de estilo oriental. Te fizeram pensar no japão e, ato contínuo, em Soseki, por causa da palavra. Enfim, essas coisas que fazemos sem perceber.
— Talvez. É possível — diz João, se espreguiçando. O gato acorda, imita o movimento de se espreguiçar e pula do colo para o chão. Por um instante circula, se esfrega nas pernas da mesa de centro, depois para quieto e boceja. Encara-os. — A verdade é que não pensei só no nome, mas num conceito de tradução que Soseki cunhou no começo do século XX.
Rebeca olha pela janela e faz um movimento mínimo de cabeça, que pode indicar que está atenta como pode significar que seu tédio já adentrou na região mais pantanosa do vazio. Mesmo assim, João prossegue:
— Soseki achava, em suas traduções do inglês, que “eu te amo” era direto demais, seco demais. Então ele criou uma expressão mais poética, que é “a lua hoje está bonita”. Se uma pessoa diz isso no japão, conta como uma declaração de amor. E se a outra corresponde dizendo, digamos, “a lua está mesmo bonita”, entende-se que é recíproco.
Rebeca empurra a fumaça do cigarro e faz uma expressão grave.
— Como alguém pode dizer que a lua não está bonita? Parece ter uma falha aí. — diz.
— Bem — suspira João —, tem dias que não dá pra ver a lua.
— De fato— faz Rebeca — Agora mesmo eu não estou vendo. Com essa chuva toda.
— No entanto — prossegue João —, tem dias que dá pra ver a lua no meio da tarde. Principalmente no inverno.
— Sempre me perguntei: quando vemos a lua de dia, isso significa que é lua nova no japão?
— Eu realmente não sei.
— Se for o caso, quer dizer então que, quando estamos aqui, podendo dizer que amamos uns aos outros em plena luz solar, os japoneses, que inventaram isso, não podem amar ninguém.
— Eles podem amar. Só não podem dizer que amam. A questão aqui é que poder contemplar com alguém uma terceira coisa, mesmo que seja a lua, e compartilhar a visão dessa beleza, é o suficiente para o amor.
— Pelo que eu me lembro — diz Rebeca, colocando os pés na poltrona, encolhendo-se —, em japonês as palavras “gostar” e “lua” são bem parecidas. Lua é “tsuki” e gostar é “suki”. Essa semelhança aparece com frequência em vários filmes japoneses. Assim como o “chorar” e o “chover” na França. “Pleurer” e “pleuvoir”.
E chove.
4.
Esse diálogo, aviso logo, é o núcleo do texto, que fica a cada instante mais misterioso para mim. Só sei que todo o resto que virá será a carne da fruta que envolve esta semente. Escrever tem muito disso: coletar várias informações e histórias que me encantam e fascinam, e aos poucos ir introduzindo-as num contexto que as suporte de forma isolada. Um contexto mais controlado que o caos dos dias e as horas incontáveis do passado e do porvir, que são o que moldam tudo. Mas Rebeca e João me são misteriosos. Como podem saber tanto de cultura japonesa? Como podem pronunciar com tanta desenvoltura palavras em japonês e em francês? E quem é esse tio de João, que viaja para o Japão e traz notas de 1000 ienes de presente? Por isso acho os contos difíceis. Preciso preparar a arena antes, preciso explicar todo o universo em que o texto opera com uma profusão de detalhes e a sobriedade de quem descreve uma fotografia para uma pessoa de olhos fechados. O que sabe, até agora, ou melhor, o que acha o leitor, até agora, de Rebeca e João? Na minha visão, João se comporta como um típico jovem que acredita a um só tempo sentir e saber demais as coisas. É uma pessoa doce, para todos os efeitos, mas também presunçosa e um pouco ingênua. O que ele estava tentando dizer? Que ama Rebeca? Talvez. Ela, por sua vez, parece ter um ar cansado, como se um dia houvesse apostado na poesia e na ternura, mas agora enxerga a estas manifestações de João com sarcasmo e arrogância, procurando por falhas no raciocínio que resultem num chiste amargo. Não é como se tivesse abandonado a ternura, a poesia ou seja lá o que for, e sim as refinado de forma pessoal, as aprofundado segundo sua própria experiência. As imagens da lua e da chuva soam comuns demais, fáceis demais para ela. Rebeca e João são pessoas comuns, portanto, pessoas complexas, com dimensões múltiplas e uma variação flutuante de disposição de espírito. Amanhã posso escrever um texto em que os papéis estejam invertidos, por exemplo, ou inexistentes, dando lugar a outros sentimentos, como a ira ou a tristeza. Esta quebra entre autor/personagem, embora não seja a ideia mais original do mundo, praticada antes por autores como o já citado J.D Salinger e Alejandro Zambra, é uma ideia que tenho almejado há um tempo, e agora que eu a pratico, sinto que não corresponde em nada com o que eu havia idealizado. Na minha projeção, o texto todo cantava num tom baixo, melancólico, e minha maior melancolia nesse momento é não alcançar esta nota. Não sei o que me falta. Experiência, talvez. Calma, quem sabe. Mas esse texto não é sobre mim, é sobre João e Rebeca. Existe uma questão vital em aberto, que são as três xícaras. A terceira xícara — a vejo limpa — indica que existe alguém para chegar. Como se fossem personagens beckettianos, João e Rebeca esperam por algo, algo que é sempre maior do que um simples alguém. Agem nesse momento como personagens esquecidos pelo autor, que lhes providenciou uma chuva que impede qualquer movimento escandaloso. Mas o que esperam? Quem esperam?
5.
Rebeca levanta. Agora está em pé ao lado da janela, olhando para fora. Chove. João observa o desenho que o tecido da camiseta dela faz ao tocar os ossos de seus ombros. Em uma das pilhas de livros, há um jornal aberto. Rebeca o alcança. É de ontem.
— Viu isso? — faz.
— O que?
Rebeca começa a ler:
— “Pescadores encontram granada de 1915 fabricada na Inglaterra às margens de rio no interior de São Paulo.”
— Meu Deus — diz João.
— “Uma granada de 1915 e que foi fabricada na Inglaterra foi encontrada por pescadores às margens do Rio Turvo, em Cardoso, na quarta-feira. De acordo com as informações da Polícia Militar, os pescadores encontraram o artefato ao limpar o local para evitar queimadas. À televisão, Marco Spada afirmou que achou que era uma pedra.” Daí tem uma citação dele: “Estava por volta das 6h30 limpando o lote para evitar queimadas. Me deparei com o objeto e, quando bati a enxada, achei que era uma pedra. Rastelando, percebi que era uma granada, imediatamente me afastei dela” — Rebeca abaixa o jornal, cruza os braços e se encosta na janela. — Me diz se escrever é ou não é a coisa mais fácil do mundo? Como é que uma granada inglesa de 1915 acaba enterrada na beira de um rio no interior do estado? Parece um exercício tchekhoviano.
— Não sei se escrever é a coisa mais fácil do mundo. Mas dar oficinas de escrita, sim, sem dúvidas. — diz João, rindo.
6.
Tempo. Preciso de tempo. Mas estou atrasado, muito atrasado, como diz o coelho. Fiz um chá de amora para me aproximar destes personagens. Depois saí para a rua. Começava a anoitecer. Não há maneira da história avançar porque não há história alguma, apenas uma situação potencialmente infinita, não por isso menos exaustiva, suspensa no tempo. Caminho pelas ruas de São Paulo, e penso no meu próximo romance, que agora está nas mãos de um novo editor. Cada romance meu é a síntese da soma de coisas que absorvo num período específico. Observo o comportamento das pessoas e frequentemente me encanto por lugares. Bares, igrejas, praças ou casas que visito. De algum modo, é um impulso de apropriação. Quando entro num desses lugares, digo: quero fazer algo com isso. Busco então emular uma fragrância que espelhe a essência daquele espaço, representada nas sensações que experimentei quando o vi pela primeira vez. Como em um sonho, tudo se mistura, e cada um dos lugares onde se passam as minhas histórias é sobreposição e arranjo de lugares diversos. A ação do próximo livro, por exemplo, está focada no centro de São Paulo, e fico satisfeito em pensar que, em pontos tão fugazes quanto os que escolhi para agir, inscrevi minha história, ergui um pequeno monumento pessoal às minhas obsessões. Caminho por estas ruas com os olhos atentos, sempre que posso. Às vezes, em dias como hoje, tenho pressa. Agora escurece e começa a garoar. Como sempre ocorre em meus textos. Dobro numerosas esquinas. Enveredo por uma rua ladeada por árvores. Os galhos projetam sombras sobre as casas, criando uma atmosfera rajada, e penso em J., na nossa relação, em seu corpo, seus gestos. Não consigo escrever objetivamente, descrever ações, me distraio muito facilmente. Encontro meu lugar em divagações e apostas, num limiar entre o ensaio e a crônica. Mas o fato é que estou nessa rua. Em frente à casa. O fato é que toco a campainha. E espero. Ouço as vozes e os passos que se aproximam. Ela abre a porta. E eles me encaram, definitivamente.
7.
— Finalmente — diz Rebeca.