Tédio – por Ian Uviedo

1.

Pela janela, vemos uma árvore. É uma figueira de copa robusta, e no final da tarde, sob a luz do que alguns chamam de “hora dourada”, as folhas parecem vibrar com um vermelho intenso. Mas agora chove. Chove e tudo, tanto a árvore quanto a calçada que lhe suporta e a rua residencial onde fica, tudo parece coberto por um filtro preto e branco, como num filme antigo. Do lado de dentro, vemos uma sala habitada por duas pessoas. Antes de descrevê-las, porém, vou falar da sala. O centro do assoalho, que é de madeira, está coberto por um tapete com motivos que lembram algo de Monet. Na sala existem duas poltronas de couro, onde as pessoas estão sentadas. O couro das duas está desgastado nas pernas e nos braços, como se um gato tivesse afiado suas garras ali. Aquele gato, que se aninha no colo de uma das pessoas e tem manchas brancas e marrons no pêlo. Há prateleiras pregadas nas paredes, e além de livros elas ostentam objetos indefinidos, mas que podem ser caixinhas, cinzeiros, estatuetas ou brinquedos de madeira. Há livros por toda a parte, na verdade. Há livros entrincheirados no chão, livros empilhados ao lado das poltronas e livros cobrindo toda a extensão de uma mesa de centro feita de mogno com um tampo de vidro. Toda a extensão é inexato: existe uma brecha, onde as pessoas posicionaram uma bandeja com um bule de chá e três xícaras, como se esperassem por alguém. Os livros são de todos os tamanhos, desde livrinhos de bolso que vemos em bancas de jornal até livros de arte com gravuras próximas ao tamanho original. Agora vou descrever, ou tentar descrever, as pessoas. Uma das pessoas, que está sentada na poltrona mais próxima da janela, é uma mulher. Vou chamá-la de Rebeca. Rebeca tem cabelos pretos e curtos. Vemos suas orelhas sem brincos. Contra a luz e de perfil, percebemos certo traço romano que lhe delineia a testa e o nariz. O centro do seu nariz tem uma saliência mínima, porque uma vez caiu da bicicleta e o quebrou. Mas isso faz muito tempo. Ela usa, nesse momento, em que chove e o gato dorme, uma camiseta branca de tecido fino estampada com um dos únicos retratos de Franz Kafka e uma calça preta de veludo cotelê. Está descalça. Fuma um cigarro de filtro branco e beberica de uma xícara japonesa o chá de amora. Não tem mais de 28 anos. E está entediada. A outra pessoa, que está sentada na poltrona mais próxima da porta — embora a sala seja pequena e a distância entre as duas poltronas não seja grande —, segura o gato no colo e é um homem. Vou chamá-lo de João. João tem cabelos castanhos e selvagens que cobrem suas orelhas, mas não são muito compridos. Seus traços são definitivamente latinos, mas a palidez e o corte de cabelo o traem, fazendo-o parecer, por exemplo, francês. Usa uma camisa social de mangas curtas branca, calças jeans claras e botas de camurça sem cadarço. Fuma um cigarro de tabaco orgânico que enrolou. Seus olhos são escuros, muito escuros. Não tem mais de 23 anos. Ouve o ruído da chuva e está entediado.

2.

Tento escrever sobre esses personagens. Tento compor o clima, a sala e os personagens como se pintasse um quadro. Tudo aos poucos. Procuro me relacionar com eles em gestos mansos. De alguma forma, eles, mas sobretudo Rebeca, são personagens que busco há um tempo, então se os tenho agora sentados numa sala, sóbrios e entediados, é melhor agir com prudência. Não se aproxima tanto do que Salinger fez com Seymour, escrevendo um livro inteiro apenas com as descrições físicas de seu personagem, partindo delas para contar suas histórias, e sua grande história, e nos levar por seus ensaios, mas ao descrever meus personagens dessa maneira, penso que estou conduzindo uma narrativa invisível, como se nesses detalhes residissem relações que apenas uma leitura atenta pode revelar. Isso soa literário. Mas a verdade é que João e Rebeca ainda são personagens vagos, de personalidades insustentáveis, e eu mesmo não sei muito a respeito deles. Mais do que, de um texto para o outro, eu sempre trabalhar com personagens semelhantes, meus personagens são todos parecidos entre si. Isso é complexo, mas não necessariamente problemático. É uma questão de contrastes, suponho, de dinâmica literária. Por outro lado, se tenho personagens parecidos, estou dizendo justamente que essa falta de contrastes sociais, essa organização civilizatória que nos empurra dia após dia aos nossos semelhantes, é um processo entediante, que nos priva das múltiplas possibilidades advindas da interação humana. Mas não sei se acredito nisso. Não ando muito animado com as múltiplas possibilidades advindas da interação humana. Agora são 18h30 de uma quinta-feira e está quente, depois de um mês que foi o mais frio em São Paulo nos últimos cem anos. J. teve insônia à noite e agora dorme. Estou distraído, e preciso voltar para a história, uma história sobre o tédio. Estou pensando no trabalho que me espera amanhã. Hoje não fiz quase nada, e passei o dia com uma sensação estranha de desgarramento. No entanto, varri o apartamento e passei pano no chão da cozinha e do banheiro. Isso é positivo. Não, não vou transformar esse texto numa continuação do diário que interrompi. Vou voltar aos meus personagens sem história. Sei que eles são bonitos. E que estão entediados.

3.

Você já ouviu falar do Natsume Soseki? — diz João, deixando o tabaco cair num cinzeiro de ferro que está sobre o braço da poltrona.

Ele escreveu Eu Sou um Gato, não foi? — diz Rebeca, depois de um silêncio longo.

Sim. — João tira do bolso traseiro da calça sua carteira, de onde retira uma nota. — De 1984 a 2004, o rosto dele estampava a nota de 1000 ienes. Meu tio esteve no Japão e me trouxe isso como um souvenir, digamos, mas nem fazia ideia quem era o escritor.

Rebeca alcança a nota que João lhe estende, e depois de examiná-la por um instante, inclusive contra a luz, como se desejasse conferir que é verdadeira, a devolve.

Foi por causa do gato? — diz, tirando mais um cigarro do maço.

O que? — faz João, guardando a nota na carteira e a carteira no bolso.

Que você lembrou. Quer dizer, pensou no Soseki. Foi por causa do gato?

João a encara com a expressão de quem não entende. Então acaricia o felino em seu colo.

Não. Acho que não — sussurra — só pensei nele. No nome dele. Soseki é um pseudônimo. O sobrenome verdadeiro era Kinnosuke, ou algo assim. Soseki é “incômodo” em japonês.

Então deve ter sido por causa do chá — diz Rebeca, erguendo o copinho de barro.

O que?

Que você lembrou. Esse bule e essas xícaras de estilo oriental. Te fizeram pensar no japão e, ato contínuo, em Soseki, por causa da palavra. Enfim, essas coisas que fazemos sem perceber.

Talvez. É possível — diz João, se espreguiçando. O gato acorda, imita o movimento de se espreguiçar e pula do colo para o chão. Por um instante circula, se esfrega nas pernas da mesa de centro, depois para quieto e boceja. Encara-os. — A verdade é que não pensei só no nome, mas num conceito de tradução que Soseki cunhou no começo do século XX.

Rebeca olha pela janela e faz um movimento mínimo de cabeça, que pode indicar que está atenta como pode significar que seu tédio já adentrou na região mais pantanosa do vazio. Mesmo assim, João prossegue:

Soseki achava, em suas traduções do inglês, que “eu te amo” era direto demais, seco demais. Então ele criou uma expressão mais poética, que é “a lua hoje está bonita”. Se uma pessoa diz isso no japão, conta como uma declaração de amor. E se a outra corresponde dizendo, digamos, “a lua está mesmo bonita”, entende-se que é recíproco.

Rebeca empurra a fumaça do cigarro e faz uma expressão grave.

Como alguém pode dizer que a lua não está bonita? Parece ter uma falha aí. — diz.

Bem — suspira João —, tem dias que não dá pra ver a lua.

De fato— faz Rebeca — Agora mesmo eu não estou vendo. Com essa chuva toda.

No entanto — prossegue João —, tem dias que dá pra ver a lua no meio da tarde. Principalmente no inverno.

Sempre me perguntei: quando vemos a lua de dia, isso significa que é lua nova no japão?

Eu realmente não sei.

Se for o caso, quer dizer então que, quando estamos aqui, podendo dizer que amamos uns aos outros em plena luz solar, os japoneses, que inventaram isso, não podem amar ninguém.

Eles podem amar. Só não podem dizer que amam. A questão aqui é que poder contemplar com alguém uma terceira coisa, mesmo que seja a lua, e compartilhar a visão dessa beleza, é o suficiente para o amor.

Pelo que eu me lembro — diz Rebeca, colocando os pés na poltrona, encolhendo-se —, em japonês as palavras “gostar” e “lua” são bem parecidas. Lua é “tsuki” e gostar é “suki”. Essa semelhança aparece com frequência em vários filmes japoneses. Assim como o “chorar” e o “chover” na França. “Pleurer” e “pleuvoir”.

E chove.

4.

Esse diálogo, aviso logo, é o núcleo do texto, que fica a cada instante mais misterioso para mim. Só sei que todo o resto que virá será a carne da fruta que envolve esta semente. Escrever tem muito disso: coletar várias informações e histórias que me encantam e fascinam, e aos poucos ir introduzindo-as num contexto que as suporte de forma isolada. Um contexto mais controlado que o caos dos dias e as horas incontáveis do passado e do porvir, que são o que moldam tudo. Mas Rebeca e João me são misteriosos. Como podem saber tanto de cultura japonesa? Como podem pronunciar com tanta desenvoltura palavras em japonês e em francês? E quem é esse tio de João, que viaja para o Japão e traz notas de 1000 ienes de presente? Por isso acho os contos difíceis. Preciso preparar a arena antes, preciso explicar todo o universo em que o texto opera com uma profusão de detalhes e a sobriedade de quem descreve uma fotografia para uma pessoa de olhos fechados. O que sabe, até agora, ou melhor, o que acha o leitor, até agora, de Rebeca e João? Na minha visão, João se comporta como um típico jovem que acredita a um só tempo sentir e saber demais as coisas. É uma pessoa doce, para todos os efeitos, mas também presunçosa e um pouco ingênua. O que ele estava tentando dizer? Que ama Rebeca? Talvez. Ela, por sua vez, parece ter um ar cansado, como se um dia houvesse apostado na poesia e na ternura, mas agora enxerga a estas manifestações de João com sarcasmo e arrogância, procurando por falhas no raciocínio que resultem num chiste amargo. Não é como se tivesse abandonado a ternura, a poesia ou seja lá o que for, e sim as refinado de forma pessoal, as aprofundado segundo sua própria experiência. As imagens da lua e da chuva soam comuns demais, fáceis demais para ela. Rebeca e João são pessoas comuns, portanto, pessoas complexas, com dimensões múltiplas e uma variação flutuante de disposição de espírito. Amanhã posso escrever um texto em que os papéis estejam invertidos, por exemplo, ou inexistentes, dando lugar a outros sentimentos, como a ira ou a tristeza. Esta quebra entre autor/personagem, embora não seja a ideia mais original do mundo, praticada antes por autores como o já citado J.D Salinger e Alejandro Zambra, é uma ideia que tenho almejado há um tempo, e agora que eu a pratico, sinto que não corresponde em nada com o que eu havia idealizado. Na minha projeção, o texto todo cantava num tom baixo, melancólico, e minha maior melancolia nesse momento é não alcançar esta nota. Não sei o que me falta. Experiência, talvez. Calma, quem sabe. Mas esse texto não é sobre mim, é sobre João e Rebeca. Existe uma questão vital em aberto, que são as três xícaras. A terceira xícara — a vejo limpa — indica que existe alguém para chegar. Como se fossem personagens beckettianos, João e Rebeca esperam por algo, algo que é sempre maior do que um simples alguém. Agem nesse momento como personagens esquecidos pelo autor, que lhes providenciou uma chuva que impede qualquer movimento escandaloso. Mas o que esperam? Quem esperam?

5.

Rebeca levanta. Agora está em pé ao lado da janela, olhando para fora. Chove. João observa o desenho que o tecido da camiseta dela faz ao tocar os ossos de seus ombros. Em uma das pilhas de livros, há um jornal aberto. Rebeca o alcança. É de ontem.

Viu isso? — faz.

O que?

Rebeca começa a ler:

— “Pescadores encontram granada de 1915 fabricada na Inglaterra às margens de rio no interior de São Paulo.”

Meu Deus — diz João.

— “Uma granada de 1915 e que foi fabricada na Inglaterra foi encontrada por pescadores às margens do Rio Turvo, em Cardoso, na quarta-feira. De acordo com as informações da Polícia Militar, os pescadores encontraram o artefato ao limpar o local para evitar queimadas. À televisão, Marco Spada afirmou que achou que era uma pedra.” Daí tem uma citação dele: “Estava por volta das 6h30 limpando o lote para evitar queimadas. Me deparei com o objeto e, quando bati a enxada, achei que era uma pedra. Rastelando, percebi que era uma granada, imediatamente me afastei dela” — Rebeca abaixa o jornal, cruza os braços e se encosta na janela. — Me diz se escrever é ou não é a coisa mais fácil do mundo? Como é que uma granada inglesa de 1915 acaba enterrada na beira de um rio no interior do estado? Parece um exercício tchekhoviano.

Não sei se escrever é a coisa mais fácil do mundo. Mas dar oficinas de escrita, sim, sem dúvidas. — diz João, rindo.

6.

Tempo. Preciso de tempo. Mas estou atrasado, muito atrasado, como diz o coelho. Fiz um chá de amora para me aproximar destes personagens. Depois saí para a rua. Começava a anoitecer. Não há maneira da história avançar porque não há história alguma, apenas uma situação potencialmente infinita, não por isso menos exaustiva, suspensa no tempo. Caminho pelas ruas de São Paulo, e penso no meu próximo romance, que agora está nas mãos de um novo editor. Cada romance meu é a síntese da soma de coisas que absorvo num período específico. Observo o comportamento das pessoas e frequentemente me encanto por lugares. Bares, igrejas, praças ou casas que visito. De algum modo, é um impulso de apropriação. Quando entro num desses lugares, digo: quero fazer algo com isso. Busco então emular uma fragrância que espelhe a essência daquele espaço, representada nas sensações que experimentei quando o vi pela primeira vez. Como em um sonho, tudo se mistura, e cada um dos lugares onde se passam as minhas histórias é sobreposição e arranjo de lugares diversos. A ação do próximo livro, por exemplo, está focada no centro de São Paulo, e fico satisfeito em pensar que, em pontos tão fugazes quanto os que escolhi para agir, inscrevi minha história, ergui um pequeno monumento pessoal às minhas obsessões. Caminho por estas ruas com os olhos atentos, sempre que posso. Às vezes, em dias como hoje, tenho pressa. Agora escurece e começa a garoar. Como sempre ocorre em meus textos. Dobro numerosas esquinas. Enveredo por uma rua ladeada por árvores. Os galhos projetam sombras sobre as casas, criando uma atmosfera rajada, e penso em J., na nossa relação, em seu corpo, seus gestos. Não consigo escrever objetivamente, descrever ações, me distraio muito facilmente. Encontro meu lugar em divagações e apostas, num limiar entre o ensaio e a crônica. Mas o fato é que estou nessa rua. Em frente à casa. O fato é que toco a campainha. E espero. Ouço as vozes e os passos que se aproximam. Ela abre a porta. E eles me encaram, definitivamente.

7.

Finalmente — diz Rebeca.

Ensaio sobre a aventura literária – por Thais Carvalho Azevedo

Começo este ensaio refazendo algumas das principais perguntas sobre a natureza da literatura que surgiram ao longo da história (algumas delas com respostas já tomadas como verdade absoluta). A ficção é um artifício intrínseco de todo ser humano, independente de sua cultura e seu tempo? E exclusivamente do humano? Possuiria ela uma função na sociedade ou no espírito do homem? Quanto dela depende de seu produtor e o quanto depende de seu receptor? O que define sua qualidade ou falta dela? A ficção pode ser considerada uma representação da realidade ou algo além disso?

Arrisco-me a dizer que pode ser interpretada como uma representação da realidade quando pensamos em seu funcionamento, não em seu conteúdo. A vida, assim como a literatura, sempre instigou no ser humano as mais diversas perguntas. Estamos aqui por algum motivo ou é tudo um grande acaso? O tempo existe realmente ou é mera alucinação? Da onde vem nossa vontade de entender nossa natureza e o mundo? O amor existe de fato ou é apenas uma invenção humana para tornar a realidade mais suportável?

Tanto na literatura quanto na vida é inquestionável o surgimento de perguntas que nos instigam sem nunca poderem ser respondidas com certeza, levando-nos muitas vezes ao desespero existencial e acadêmico. Proponho uma única possível certeza (perdoem-me a contradição) que podemos ter sobre ambas: acontecem através da exploração. A energia colocada na busca pelas respostas não pode encontrar outra saída sem ser explorar e experimentar para todos os lados e para dentro. Se andamos às cegas e, ainda assim, somos obrigados a andar, temos que usar o corpo e os outros sentidos para guiar o caminho, por mais que a existência desse caminho seja incerta.

Para muitos estudiosos a literatura teria uma função específica, seja a de organizar a nossa realidade, de nos livrar dela ou de modificá-la. Por minha vez, não acho que exista uma função. A exploração não é o motivo, a função ou a consequência da vida e da literatura, é apenas seu modo de ser. Tomando então o caráter exploratório como ponto de partida, tentarei analisar o processo de criação literária.

Pode-se dizer que a exploração começa antes mesmo da criação; uma vez que não sabemos de onde viemos e por quê, temos que inventar nosso ponto de partida. É curiosíssimo como todas as estruturas existentes -das mais simples às mais complexas- se constroem em cima de uma fundação feita de nada ou de mistério, o que nos faz questionar o sentido de tudo o que foi construído a partir daí. É como se ao tomar a consciência disso percebêssemos repentinamente que estamos num mar aberto que não nos dá pé. Essa incerteza do sentido das coisas pela falta de fundação pode nos dar dois caminhos opostos; o do medo ou da coragem. Temos medo de nos mexer para criar algo e acabar afogando no mar dos mistérios, por isso muitas vezes acabamos não criando nada, optamos por boiar, inertes. Por outro lado, se não existem o sentido e a segurança, pode-se perder o medo de errar na criação, uma vez que ela não significa nada. Talvez então a literatura tenha duas características intrínsecas: a exploração e a coragem. Eis o primeiro paradoxo: o processo criativo se dá justamente na medida em que se toma consciência do vazio que ele esconde. O escritor é tomado pela adrenalina de não ter nada a perder e de poder errar, pela sensação de liberdade plena. Daí se constroem a vida e a ficção.

Deste ponto de vista pode ser proposta uma discussão sobre a qualidade da literatura. Quanto mais desprovida de função e de motivo, maior seu potencial. É claro que existem criações literárias complexas e muito admiráveis que possuem um objetivo da parte do autor. Estas têm sua qualidade averiguada por outros pontos de vista, como o impacto social, a expressividade lírica, o trabalho com a palavra e com a língua, etc. Sugiro, entretanto, que haja sempre um componente inconsciente da coragem advinda do vazio existencial.

Colocados os pontos iniciais sobre a falta de pontos iniciais, pensemos agora sobre como se dá o processo criativo-exploratório na literatura. Quando falamos em criatividade logo penso numa das reflexões mais famosas da história: “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.” Talvez possamos reformulá-la um pouco, com minhas sinceras desculpas a Heráclito: Através da destruição e da criação, tudo se transforma. (esclarecendo aqui que nada “se perde” simplesmente. As coisas são destruídas por outras. Seja por armas, pelo tempo, pelos vermes). Já há algum tempo formei uma opinião sobre a destruição e a violência: não são de todo negativas. São, na verdade, necessárias, e até mais, inevitáveis. A criatividade requer indiscutivelmente a destruição. São as duas principais potências da Natureza e os dois lados da moeda da transformação. Seus análogos na psicanálise provam meu ponto: funcionamos na contradição (ou contradução) eterna entre Eros e Thanatos.

Tomo aqui como matéria-prima da literatura a realidade bruta em que vivemos, e nossa imaginação como o artífice que escolhe quais partes dela irá destruir, usando a coragem e a violência de combustíveis. Escrever ficção pode então ser interpretado como o processo de exploração na medida em que é preciso destruir os galhos e entulhos para que se possa construir a própria trilha.

Mas não podemos tomar a realidade que exploramos como o caos sobre o qual se faz a literatura, uma vez que ela mesma é construída de representações, divisões e organizações sociais, como uma imensa biblioteca dinâmica. Não se cria destruindo o caos, e sim destruindo os compartimentos de realidade. (Esses compartimentos talvez possam ser comparados com os “frames” dos quais Luiz Costa Lima fala em “Representação social e mímesis). A ficção desafia o real na medida em que perdemos o medo de ir com toda a força contra os muros, sem hesitar. É mágica pois funciona como uma partícula lançada na velocidade da luz que atravessa compartições e capas de livros, levando os personagens de uma extremidade da biblioteca a outra, de um universo a outro.

A questão é como fazemos para romper as compartições da realidade na busca de outros universos. Receio que esta destruição só seja possível quando quebramos a primeira barragem: a individualidade. O abismo da linguagem, já pensado por vários estudiosos, é a expressão perfeita, pois a literatura nos lança -mais que qualquer outro tipo de escrita- para fora de nosso lugar, de nosso corpo, de nós mesmos. Tomemos aqui a metáfora como uma espécie de unidade mínima de ficção: algo que se transforma -pela destruição e criação de si- naquilo que, a princípio, não deveria ser. Isso possui a semente da violência presente na ficção complexa. Tornemo-nos então, para escrever e criar, quem, a princípio, não deveríamos ser. Volta o aspecto da coragem pois temos que destruir parte do que achamos que somos, de nossa individualidade feita de retalhos sociais, genéticos e psicológicos. Perdemos o medo de descobrir que talvez não tenhamos uma essência, algo único que nos defina e que nos prende a nós mesmos. Por essa ótica, a literatura é também um exercício contra o ego.

Esses desprendimentos podem ocorrer de diversas formas. Na metamorfose dos personagens, como em Kafka, na instabilidade dos pontos de vista de Virginia Woolf, na perda (ou destruição) das estruturas de Clarice Lispector, na destruição da barragem entre realidade e ficção de Tolstoi, no desespero existencial de Milan Kundera, na queda da sociedade das aparências de José Saramago, no showing de Hemingway, no qual o narrador abdica quase que totalmente de seu lugar de fala.

Admitindo minha parcialidade, confesso que prefiro as escritas lentas, uma vez que quanto mais o tempo se estica dentro do livro, mais o narrador se aprofunda na experiência de ser o outro e, consequentemente, mais se desprende de si. Igualmente acontece com o espaço, quanto menor é o ambiente do qual os personagens dispõem, mais profundamente são obrigados a explorá-lo.

Podemos perceber grandes reflexões em algumas novelas de Dostoievski que falam sobre a morte sobre esse impulso exploratório do humano (ou do além-humano) de destruição e criação na busca pelo Outro e sobre os diferentes modos de lidar com ele, direcioná-lo e manipulá-lo, amá-lo ou odiá-lo.

Talvez soe estranho a colocação de Memórias do subsolo como um livro que tem a morte como tema. Comecemos por este, então. Falo aqui da morte figurada do personagem que atingiu os limites de sua frustração existencial e que se considera “natimorto”. Da onde vem essa sensação de morte tão latente? A sugestão é que venha da pulsão acumulada do instinto exploratório que surge quando reconhecemos nosso vazio existencial. O personagem descobriu esse vazio, escolhe o caminho do medo e, por consequência da inércia. Mas busca desesperadamente a possibilidade de transgressão e da quebra da lógica e das regras do comportamento humano. Ele percebe que não há nada por baixo das estruturas e se vê na crise de tentar transgredí-las:

“Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apóie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los?”

Há uma rejeição das concepções positivistas sobre o ser humano e sobre boa moral. Para a personagem, são fórmulas que nos transformam em seres mecanizados como meras teclas de piano e que nos encadeiam numa estrutura previsível e eternamente infértil.

Falando sobre o interior de um homem de boa moral e de boas virtudes e vantagens, ele diz:

“Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isso fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário”

Trago estas passagens para uma reflexão sobre o ser como essa tecla de piano que não pode fazer nada a não ser obedecer o que lhe é previsto pela física e pela natureza. Temos um só tom e não podemos criar nada além disso.

O que sugiro aqui, entretanto, é que a criação seja necessariamente um produto feito na transgressão de si. Pois se a música é uma criação que se dá na manipulação do tempo e do silêncio, ela precisa de várias teclas, que transgridem o tempo na medida em que conversam entre si. É isso o que falta ao protagonista para que possa liberar sua pulsão exploratória. Dostoievski nos fala sobre as causas primeiras da melancolia e da literatura. A necessidade de violência, de sofrimento e de grotesquidade do homem vem da urgência pela imprevisibilidade e pela fuga da sanidade que nos é imposta. Talvez Memórias do subsolo seja um anti-manual de como lidar com esse vazio existencial e essa percepção da falsidade das estruturas. O protagonista direciona de modo deficiente essa necessidade acumulada de destruição e fica, consequentemente, preso ao próprio ego e à autopiedade devastadora. A destruição vai para dentro da alma em vez de ir em direção aos compartimentos de realidade que desembocariam na criação.

Entretanto, percebemos que é uma pulsão imbatível: ele se perde em seus devaneios compulsivos, que podem ser considerados uma forma obstruída de ficção. Daí talvez a única verdade sobre a natureza: os seres sempre terão a necessidade de destruição e criação e ela se manifestará de uma forma ou de outra, queiramos ou não. Daí também surgem essas obsessões com pequenos detalhes que se tornam gigantes, como a vontade de esbarrar nas calçadas da cidade com um indivíduo socialmente superior: é a tentativa inconsciente de se encontrar com o diferente, misturar-se fisicamente com ele.

Quando pensamos no Sonho de um homem ridículo, o caminho é outro. O protagonista tem a mesma percepção do vazio existencial daquele de Memórias do subsolo, tudo sempre começa aí. Os caminhos tomados, entretanto, são aquilo que possibilita as diferentes formas de criação. À beira do suicídio -talvez, uma destas formas de “tornar-se outro- ele tem o imprevisto de um sono profundo e acaba tomando outro caminho: o do sonho. Este sonho pode ser interpretado de inúmeras formas. Arrisco-me no palpite de que seja uma viagem astral no espaço-tempo de volta ao paraíso. No passado sublime quando todos os seres falavam a mesma língua e se amavam igualmente, sem luxúria ou ódio, sem regras ou transgressões e, principalmente, sem barreiras, estruturas e compartimentos de realidade. O real era puro e cru. Mas tudo mudou. O homem que sonhava trouxe-lhes o fruto proibido. A língua acabou por fragmentar-se, as pessoas conheceram o ódio, o ego e a luxúria e a realidade dividiu-se inteira: surgiram as barreiras do mundo como vemos hoje, todo quebrado. Pode-se pensar que a ficção, além de destruição de compartimentos da realidade e de nós mesmos, tenha a ver com uma nostalgia desse mundo sem barreiras, com uma língua que não era violenta e não mutilava a nossa natureza inteira. Buscamos pela escrita tanto a aventura de explorar as possibilidades deste mundo quanto a volta ao mundo primitivo, sublime e silencioso, pré-humano e além-do-humano.

Aí está outra contradição (lembrando de Roland Barthes): a fruição do texto literário nasce da fricção entre a vontade de explorar para frente e a vontade de voltar para o passado. Contradição esta que não é negativa, mas produtiva e muitas vezes responsável pelo ritmo do texto, além de sua fruição.

Pode-se dizer até que, em certo aspecto, a ficção se comporta como ciclo fechado em relação à realidade. Veja bem, temos a realidade crua do sonho do homem ridículo, perfeita e fluida, natural e sem barreiras. Depois chega a realidade humana e a separa toda, formando as individualidades, burocracias e estruturas. Após isto, através da destruição das estruturas para a criação de coisas novas (sendo estas qualquer tipo de arte ou transgressão no geral) que acontece na experienciação do outro e na troca de pontos de vista, vamos em direção ao que tinha embaixo, à pureza vazia do mundo que não possui significados e significantes, o causador tanto de nosso vazio existencial quanto de nossa nostalgia de não sentir nada.

Outra contradição: temos simultaneamente medo e desejo por este vazio inalcançável que nos ameaça constantemente e foge quando tentamos aceitá-lo de uma vez por todas. Daí talvez a obsessão de Dostoievski e da psicanálise com o tema da morte. A única escapatória para o desespero dessa inconstância humana entre o vazio e o significado é a arte, irrompendo como a lava de um vulcão em erupção, que somos nós.

***
Thais Carvalho Azevedo nasceu em Botucatu, interior de São Paulo. Morou em Macaé, Ribeirão Preto e Niterói. Faz Letras na UFF, pesquisa Clarice Lispector. Gosta de pesquisar, mas ama ensinar. Quer ser professora de crianças e adolescentes. É escritora desconhecida.

Exercícios de escrita criativa, por Thais Carvalho Azevedo

 

1- Pensando sobre significantes

 

      a) Palavras com som de impacto e quebra:

Num impacto intrépido e estridente espatifa-se a vidraça em trilhões de estilhaços fragmentados. Restos de cacos quebradiços da vidraça pendem em suas bordas. O susto foi tamanho que o ar se petrificou nos pulmões dos transeuntes.

 

      b) Liberdade

A palavra liberdade é um pássaro. Li representa o bico pontudo que fura o ar e escorrega por ele com tanta fluidez como se estivesse lubrificado. Ber pode ser o corpo, um pouco mais grosso, que se arrasta em penas até a extremidade anterior. Da e De são as duas asas que se abrem e fazem a palavra voar.

 

      c) Mar e Oceano

A diferença entre os dois está no movimento. O oceano é ondulante, ondeante, onduloso (como diria Diadorim). No O estamos no pé da onda, na parte mais baixa; no Ce começamos a ser arrastados para cima; no A estamos na crista, no alto, da onde vemos tudo e onde nos sentimos mais iluminados pela luz do sol; no No descemos e batemos de volta no chão.

O Mar prefere a calmaria gigante às ondulações. O Mar está sendo visto de muito longe, por isso é enorme e estático. Estamos em um lugar muito alto e longe da praia, do alto e de longe vemos o Mar. Com o Ma, ele começa num impacto, numa linha bem definida, não parece água. Mas com o Ar, ele vai se desfazendo no horizonte, aos poucos vai desaparecendo, desdefinindo. O R nos deixa soltos, largados sozinhos, pois não podemos ver o fim.

 

2- Exercício de ficção por sorteio.

Substantivos: gato, árvore, vaso, planeta
Adjetivos: angustiado, inteligente, vítreo, doente
Verbos: corre, flameja, sonha, esvoaça

 

      a) Árvore angustiada sonha:

Era um dia incomum. Talvez porque as crianças brincavam ao sol sem adultos em volta, com os músculos dos rostinhos cansados de sorrir e de cantar; talvez porque não pareciam perceber que algo fisicamente inaceitável ocorria; talvez porque justo naquele dia estranho não havia um único adulto para ditar o que era normal e o que não era. Talvez tenha sido incomum, principalmente, porque naquele dia eu andei. Eu finalmente saí do lugar, depois de meus trezentos e quarenta e dois anos de encarceramento geológico. Pensando bem, Baobá pode ser mesmo o nome de algo que é enfeitiçado, de algo que está próximo das bruxas e dos seres antigos e poderosos. Baobá é perigoso e estrondoso como um trovão. Naquele dia percebi a força de meu nome e descobrindo meu poder eu andei. Respirei tão fundo, senti minhas cascas velhas sorrindo, minhas raízes sacolejando animadas, minhas folhas e galhos dançando como as crianças. Brinquei com elas o dia todo, o melhor dia da minha vida.

Depois disso estou aqui, acordada, nesta noite fria e deserta. Não há o orvalho que tanto amo. Tudo está seco. Estou no mesmo lugar, condenada. As crianças dentro das casas obedecem os adultos e só aceitam os fenômenos fisicamente possíveis. Tudo para mim sempre será igual. A mágica de meu nome está enterrada mais fundo que os lençóis freáticos de que me abasteço. Os sonhos de liberdade são uma maldição: se eu não soubesse que ela existe, não sofreria tanto com o desejo de possuí-la. Espero angustiada por outro sonho, que logo terá fim, como todo movimento.

 

      b) Planeta vítreo esvoaça

Ano 2340

“Notícias urgentes! Os cientistas da NASA finalmente descobriram a causa das irregularidades luminosas há três anos-luz da Terra, um pouco depois de Plutão. Um planeta que até agora havia se passado despercebido, devido à sua composição extremamente incomum. Supõe-se que há alguns bilhões de anos era uma mistura de rochas arenosas e cascalho. Entretanto, com sua atmosfera altamente inflamável, logo foi incendiado numa chuva de cometas e queimou por alguns milhões de anos. Hoje em dia, tornou-se quase que totalmente transparente e maciço, reflete alguma luz e desvia o resto do que chega ali, decompondo-a em bilhões de raios coloridos. Ele gira em torno do Sol numa velocidade nunca vista antes. Apesar da distância em relação ao Astro maior, calcula-se que a média de seus anos seja em torno de vinte e sete meses terrestres. ”

Mafrei lia a notícia no jornal digital, projetado em sua frente na mesa do café. Iria para Ventris dali há três anos como astronauta chefe contratado pela NASA. Seu coração sacolejava descontrolado tentando quebrar as paredes da caixa torácica. Por algum motivo desconhecido, seu maior medo não era o de sair da Terra pela primeira vez, nem de pousar no planeta mais rápido já conhecido, muito menos de ir ao planeta mais distante ao qual o homem já foi na História. Não podia contar para ninguém, tamanha a ridicularidade deste temor, mas tinha medo de chegar ao desconhecido mais distante e encontrar o reflexo das mesmas coisas existentes desde o mais distante passado conhecido. Tinha medo dos espelhos desde criança; via alguém que era ele mesmo, mas que não o era. Como poderia?

Como poderia ir ao desconhecido e correr o risco de enxergar a si mesmo?

 

***

Thais Carvalho Azevedo nasceu em Botucatu, interior de São Paulo. Morou em Macaé, Ribeirão Preto e Niterói. Faz Letras na UFF, pesquisa Clarice Lispector. Gosta de pesquisar, mas ama ensinar. Quer ser professora de crianças e adolescentes. É escritora desconhecida.

Minha senhora! – um conto de Maria Colares

Para onde vai a Senhora embrulhada no seu lenço rua à cima? O que é que já desvendou com
esses olhos tão atentos, e quais são os segredos que ainda não notei? De certo, com esses
passos tão firmes, caminha em direção ao destino que aprendeu a dobrar junto com as roupas
engomadas. A Senhora por acaso já reaprendeu a brincar? Depois de quantos corações
partidos a Senhora entendeu o que é a paixão? E sobre o tédio e o nojo que brotam das ruas,
há alguma esperança para eles? A Senhora que está passando com a bolsa por baixo dos arcos
do mercado, diz daí do outro lado o que é preciso para navegar. O que mais é possível fazer
ante a corrosão do espanto, cara Senhora? Dançar na chuva já não tem o mesmo gosto de
antes, e as poças incomodam mais as meias do que divertem as crianças. De que magia
estamos falando quando cantamos as recordações? Te faço perguntas por impulso, mas é
porque um oráculo assim não se vê todos os dias. Diz, amável Senhora, as respostas para os
batimentos cardíacos, que o tempo passa muito depressa, porque o passo aperta em direção ao
fim e lá ninguém nunca saberá nada.

 

 


Maria Colares é nossa correspodente de Portugal, estuda Línguas e Relações Internacionais na Universidade do Porto e vive com um pé em cada lado do Atlântico.

Foto de Paulo Pimenta.

A coroa invisível de Quincas, o xerox napoleônico — por Pedro Ávila

Em tempos de reis loucos, principalmente quando estes se moldam à imagem e semelhança de suas contrapartidas gringas, neocolonizadoras, é impossível não pensar em Quincas Borba, romance de Machado de Assis, de 1891. A obra talvez tenha ficado à sombra das mais famosas do bruxo do Cosme Velho, como o próprio As memórias póstumas de Brás Cubas, da qual pode ser entendida como um spin-off. Uma pena, pois o livro contém uma grande reflexão acerca do caráter colonizado da cultura brasileira, além de uma crítica contundente à sociedade de então (não tão alheia à atual). A história de ascensão social e declínio de Rubião à pobreza e à loucura culmina com o mesmo crendo ser Napoleão III, possivelmente remetendo, por exemplo, a invenção do Rio de Janeiro como uma Paris tropical, ou a políticos brasileiros se espelhando em governantes europeus e estadunidenses. A questão da identidade brasileira é bastante espinhosa, mas difícil ignorar o caráter submisso de nossa relação com a cultura nacional. Quem nunca ouviu o discurso de que a produção artística nacional jamais poderá se comparar à estrangeira, sendo sua qualidade determinada a partir de sua semelhança ao padrão hegemônico vindo de fora? Muitas vezes parece que nosso país procura ser o xerox mais parecido possível de quem justamente o explora e o coloca na condição de país “em desenvolvimento”, ignorando que, para haver um país “desenvolvido”, é necessário um país explorado. Quincas Borba escancara todo o ridículo de um Brasil que quer ser aprovado por seus colonizadores, assim como a falácia meritocrática.

O romance gira em torno da filosofia fictícia chamada Humanitismo, tendo surgido inicialmente no trabalho anterior de Machado de Assis, As memórias póstumas de Brás Cubas. Quincas Borba cria o Humanitismo com o objetivo de ser não apenas um tratado filosófico, como também algo como uma religião. Quincas Borba seria, assim, algo como um profeta ou santo. Em uma das cartas que escreve a Rubião ele diz: “sou Santo Agostinho”. 

A filosofia humanitista é uma sátira de ideais positivistas e eugenistas do século XIX, que se apoiavam em conceitos supostamente darwinistas como “a sobrevivência do mais forte”. A filosofia-religião de Quincas seria uma caricatura dessas teorias, interpretando-as ao extremo. Assim, surge a frase “ao vencedor, as batatas”, síntese do Humanitismo, que prega que sofrimento e alegria se contrabalanceiam. Se Quincas é o profeta, Rubião é seu aprendiz, que escuta apavorado seu mestre contá-lo da morte de sua mãe. A mãe de Quincas teria sido atropelada por uma carroça apressada por um senhor com fome que mandava o cocheiro ir mais rápido. Segundo o filósofo, a morte de sua mãe não teve um peso negativo, uma vez que foi o meio para o fim de Humanitas: ela precisou morrer para que o homem se alimentasse. Rubião não compreende imediatamente, pois acredita que o homem não precisava ter atropelado ninguém para conseguir seu alimento, ainda mais não se tratando de uma questão de vida ou morte. Contudo, Quincas Borba crê que tudo que existe é Humanitas, todos os seres humanos e até os animais. Se uma parte de Humanitas morre, é para outra viver, ele diria. Assim, o sofrimento do mundo não faz diferença, uma vez que é uma necessidade para o bem estar. Numa de suas parábolas, duas aldeias brigam por uma plantação de batatas, um grupo morre para que o outro chegue às batatas. Assim surge o slogan da filosofia, “ao vencedor, as batatas”, uma extrapolação de frases feitas como “os fins justificam os meios”.

Sendo todo ser vivo Humanitas, Quincas Borba resolve nomear seu cão de estimação com seu próprio nome: Quincas Borba. Além de uma ação egoísta, como ele próprio assume, uma vez que após sua morte seu nome continuará vivendo através do cão, esse ato serve para Quincas demonstrar sua filosofia. Segundo ele, tanto humano quanto animal fazem parte de Humanitas, quase como um indivíduo coletivo. Dessa maneira, confundir sua identidade com a do cachorro seria como dar forma a seu ensinamento. Confusão explorada pela escrita de Machado com frases ambíguas como “Quincas Borba, comovido, olhou para Quincas Borba” (p. 52). Quando pensamos no título do romance, vale nos perguntarmos qual é, de fato, o Quincas Borba do título — homem ou cão? Pergunta que se torna ainda mais interessante quando notamos que o homem Quincas Borba morre logo no início do romance, sendo que o cargo de personagem principal ficará, parece, com seu suposto amigo Rubião.

Rubião é um mineiro, de Barbacena, que fica amigo do abastado filósofo, cuidando dele em seus últimos momentos de vida, provavelmente, visando receber em troca parte de sua herança. A princípio, parece que Quincas considera Rubião seu melhor amigo. Mas logo o leitor pode chegar à conclusão de que o único amigo de Quincas Borba é Quincas Borba — ele próprio e/ou seu cão de mesmo nome. Antes de morrer, o filósofo, já aparentando ter enlouquecido, deixa toda sua herança para Rubião, com a condição única de que o mineiro tome conta de seu cachorro Quincas Borba até morrer. Conhecendo-se os pormenores do destino que a herança trará a Rubião, é possível considerar que Quincas tenha planejado dar a ele sua fortuna quase como um experimento: Rubião experimentaria na pele, assim como os demais personagens, a filosofia humanitista, chegando, a certo momento, a professá-la, como Quincas Borba. 

Com essa fortuna que recebeu de herança, Rubião passa a compreender o lema “ao vencedor, as batatas”. Assim, resolve se mudar para a então capital da côrte, o Rio de Janeiro, junto de seu cão — cujo nome o persegue como um fantasma do finado xará. No meio do caminho, no trem — cenário curioso, quando se pensa nas diversas transições e transações performadas pelos personagens ao longo do romance —, conhece Palha e Sofia, de quem fica amigo rapidamente, formando o triângulo principal da narrativa. Rubião, terrivelmente apaixonado por Sofia, passa a fazer de tudo para estar próximo a ela, enquanto seu marido vai aos poucos o despindo de seu dinheiro com propostas mal explicadas de negócios e investimentos. Já no Rio, Rubião conhece Camacho, um político que anseia pelo poder e facilmente se despe de sua identidade, trocando a esmo ideais e posicionamentos de acordo com os de quem estiver no comando. O caipira ingênuo dos meios da capital, terá sua nova fortuna também explorada pelo oportunista Camacho, que o promete uma carreira na política em troca de que o mineiro o ajude investindo na publicação de seus periódicos.

Rubião ganhou a fortuna — as batatas — de Quincas Borba, que se torna seu cão, sendo transferido o título de “mestre” de Quincas para Rubião. Contudo, no mundo humanitista, tudo se contrabalanceia: ao longo do romance, Rubião vai se desfazendo de seu dinheiro, que cai nas mãos de Palha e Camacho. Personagens ascendem social e economicamente, enquanto outros descendem. Para uma tribo comer as batatas, outra morre de fome. Para Palha e Camacho subirem, Rubião cai. Ao vencedor, as batatas.

Explorado monetariamente e obcecado por um amor não correspondido, Rubião enlouquece. Sua loucura é baseada na filosofia de seu finado amigo. Ele passa a temer que a alma do humano Quincas Borba tenha migrado para o cachorro Quincas Borba. Rubião sente que o animal o observa, o julga, com os mesmos olhos do finado. Certo momento, escuta o cão falar como se fosse humano — talvez por ser, como tudo, parte de Humanitas: “— Casa-se, e diga que eu o engano, latiu-lhe Quincas Borba” (p. 176). Uma vez borradas os limites entre as personagens, Rubião também chega ao estado máximo de sua loucura: passa a acreditar que é Napoleão III. Provavelmente influenciado por suas fantasias de se tornar capitalista e político, suas leituras de romances que tratam da nobresa da França, além do caráter grandiloquente das falas do falecido Quincas Borba. Quando Rubião passa a achar que é Napoleão III, o absurdo do conceito de Humanitas é escancarado: ele se torna uma grande piada e um poço de pena para as demais personagens. O contraste é explícito: chega à pior condição de vida que já teve enquanto se crê imperador europeu.

Machado de Assis ironiza o complexo de Napoleão, ou seja, o complexo de grandeza, de suas personagens. No romance, as relações entre Brasil e França, então a nação de maior influência cultural e política, são marcadas. Isso é evidente no caso da prima de Sofia, Maria Benedita — personagem até certo ponto espelho de Rubião, por também vir do interior e ter dificuldades em se integrar à vida na côrte. Para Sofia, o mais importante é que Maria Benedita aprenda o francês, para ler os romances da época (que, inclusive, Rubião lê até delirar em sono, quase como um D. Quixote) e o piano, para poder apreciar e tocar composições francesas. Assim, o complexo de grandeza de Rubião — por sua vez espelhado em Quincas Borba, que também acredita ter outras identidades, como Santo Agostinho — é acreditar ser um Napoleão, imperador de uma poderosa nação. Contudo, ele acredita ser o neto do famoso imperador. Ou seja, Rubião acredita ser aquele que, por sua vez, acredita ser Napoleão — quase um simulacro de um simulacro. A partir do ridículo da situação desenhada por Machado, pode-se compreender a loucura do personagem como uma caricatura de um Brasil que almeja ser França. Caricatura que, combinada com a passividade ingênua de Rubião, opera também como a de um país que, maravilhado com o que não é e não pode ser, é passivamente ludibriado e explorado pelos mais poderosos que tanto inveja. Quanto mais Rubião posa como homem de poder e requinte, mais jocosa se torna sua figura. Enquanto sua sanidade se esvai, perde tudo o que possui, se mudando, ao longo da narrativa, de regiões nobres da cidade maravilhosa para moradias cada vez menos prestigiadas, terminando por ser colocado num hospício.

Em dado momento, zanzando pela rua, falando sozinho, uma multidão passa a o rodear, gritando para ele “Ó gira! Ó gira” (p. 327). O narrador machadiano (curiosamente em terceira pessoa, diferente de em Dom Casmurro e Brás Cubas, talvez corroborando com a exploração do conceito de Humanitas), descreve essa multidão quase como uma mesma massa que vai se agrupando, como se não fosse possível diferenciar um indivíduo do outro, feito as identidades embaralhadas de Quincas, Rubião e quem quer que seja: 

“Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas as idades, um fotógrafo, um estofador, três e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava à parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obséquio.” (p. 327)

Rubião é como um indivíduo em branco, suscetível às ideias alheias, ingênuo, que toma decisões de acordo com as orientações de Quincas Borba, Palha, Camacho. Ele quer ser como cada uma dessas pessoas: quer ter Sofia, a mulher de Palha, quer entrar para a política como Camacho, como queria, no início do romance, ter a fortuna de Quincas Borba. Sua passividade serve para delinear os contornos da caricatura napoleônica: um pobre-diabo sem nenhum tostão ou poder, mas que age à maneira de um rei. Sem traços marcantes de identidade, Rubião talvez estivesse destinado a perder a noção de si mesmo, como a própria massa que o rodeia, como o próprio país em que vive.

Se a filosofia de Quincas é praticamente uma doutrina, as metamorfoses pelas quais Rubião passa talvez tenham algo de religioso. Talvez seja possível traçar paralelo com a transfiguração de Jesus Cristo, quando é iluminado no alto de um Montanha (curiosamente não-identificada) e uma voz vinda dos céus o chama de “Filho”. Seria o momento em que Rubião endoidece o momento em que se torna, por assim dizer, “filho”, símbolo, da filosofia de Quincas? Afinal, se Napoleão III foi imperador da França, Jesus foi rei dos judeus.

Mas o paralelo que me parece mais claro entre Rubião e outro rei que não Napoleão: Odisseu. Como o herói da epopeia homérica quer retornar à sua terra, Ítaca, Rubião constantemente diz sentir saudades de Barbacena, tendo sua vontade de retornar sempre dissuadido por Palha, assim como o de Odisseu é impedido por Calipso. Contudo, assim como Odisseu, Rubião retorna ao fim do romance para Barbacena. Lá, sozinho com Quincas Borba, passa uma noite na rua, enquanto uma grossa chuva cai sobre eles. Assim, surge a única referência direta à Odisseia no livro: “O cão, morto de fome e de fadiga, não entendia aquela odisseia, ignorava o motivo, esquecera o lugar, não ouvia nada, senão as vozes surdas do senhor” (p. 341). Vale notar que o narrador personificar o cão Quincas Borba, dentre outros animais, sugerindo que todo ser é Humanitas, não implica apenas que um animal é tal qual um humano, como também o inverso. No final, Rubião é como um cachorro vira-lata, se assemelhando a ambos Quincas Borba, cão e homem. Portanto, “cão” no trecho citado pode-se referir tanto a Quincas Borba quanto a Rubião, assim como “senhor”, uma vez que o finado Quincas foi mestre de Rubião.

Odisseu, como Rubião teve sua identidade apagada em alguns momentos: se chamou de “Ninguém” para ludibriar Polifemo, negando sua identidade para safar a si e seus homens das garras do ciclope; se disfarçou de mendigo a fim de espiar como vinha andando Ítaca em sua ausência. Assume outras identidades de forma calculada, são atos de esperteza da parte de Odisseu, que é, afinal, o herói “plurisapiente”. Muito diferente é a micelânea de identidades pelas quais Rubião se desloca, sinais não de astúcia, mas de impotência e sandice. Odisseu conscientemente se proclama “Ninguém” enquanto Rubião de fato é um zé-ninguém — um vira-lata sem “raça”, de caráter não plenamente definido.

Na Odisseia, de Homero, Odisseu serve como herói modelo, ou seja, espelho dos ideias de sua sociedade. Apesar de não representar um ideal para o homem brasileiro, Rubião espelha um povo que vive às custas do sistema capitalista, tão inspirado nas teorias e filosofias que o Humanitismo parodia. Povo sem identidade nacional bem definida, que joga uma eterna partida de “o mestre mandou”, sempre buscando imitar referências colonizadoras, formuladas por aqueles que detém uma hegemonia cultural e econômica sobre os demais. Mas, afinal, não foi para a Europa que foram parar as “batatas” brasileiras?

Assim, no final do romance, pouco antes de morrer, talvez de loucura, talvez de febre, Rubião põe em cima de sua cabeça sua coroa invisível e impalpável — “ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada” —, espelhando o espelho de seu espelho, Napoleão. Acreditando ser um imperador como Napoleão III, um grande herói, como Odisseu, Rubião se torna de fato Quincas Borba: ao fim da narrativa, volta-se ao início: um louco filósofo moribundo em Barbacena. E nosso herói morre murmurando: “— Guardem minha coroa […] Ao vencedor…” (p. 343). A coroa de nada pode ser entendida como as batatas do lema humanitista, que se revela não como uma lei básica e natural da sobrevivência, mas como representação da cobiça e ganância desreguladas da sociedade contemporânea. Se o que sobra ao vencedor são as “batatas”, a coroa de nada, e não há vencedores nem perdedores, uma vez que somos todos Humanitas, na verdade, ficamos todos com nada. A coroa não existe, Rubião não possui poder de verdade, é apenas um explorado que acreditou que se tornaria poderoso confiando seus bens materiais a falsos messias, admirando de longe banqueiros ingleses e monarcas franceses.

Logo depois da morte de Rubião, Quincas Borba morre (como seu xará no início do livro). O rei está morto, vida longa ao rei.

 

Fonte: ASSIS, Machado de, Quincas Borba, Companhia das letras, 2012.

Imagem: colagem de Patrícia Pinheiro em que se vê Brás Cubas e Quincas Borba no filme Brás Cubas de Julio Bressane (1985).