Críticas — por Giuliana Zamprogno


Dois dias de ida, dois dias de volta

Karioka (2014), de Takumã Kuikuro, é um registro de viagem e também um relato de espera. Um casal kuikuro e seus dois filhos viajam até a capital do Rio de Janeiro, onde passeiam, brincam e se divertem no mar. Para aqueles que ficam na aldeia, no estado do Mato Grosso, as conversas são permeadas pelas especulações do que acontece na cidade grande, pelas experiências daqueles que já estiveram lá e, entre contos e causos, também pelos receios causados pelas notícias de violência da televisão.

Pela articulação das palavras de quem espera com as imagens de quem é esperado, Karioka constrói uma ponte área narrativa em que diferentes subjetividades são atravessadas pela viagem. A inscrição desse caráter dialógico também ocorre quando o diretor opta em não ser o único narrador da história, o que poderia acontecer com o recurso da voz over. Assim, é pela presença de múltiplas vozes que o filme compõe um ambiente íntimo, familiar e comunitário, superando a estrutura por vezes asséptica do “diário de viagem” ou do “álbum de fotos em família”.

Então, quem filma não narra e nunca aparece no quadro. Ele é abraçado e as pessoas ao seu redor se dirigem a ele. E do ponto de onde ele vê, que é também por onde eu vejo, tudo é feliz. Hoje, pensando em como a pandemia afetou a dinâmica das relações sociais e familiares, parece impossível não sentir o confortável calor do sentimento compartilhado entre os personagens de Karioka. Alegria e medo integram a experiência coletiva e aqui, curiosamente, dão a sensação de segurança em conjunto.

Nós, como espectadores, temos acesso privilegiado aos dois lugares, aos dois tempos, numa situação (ou ilusão) de simultaneidade que só o cinema consegue criar. O retorno à terra natal ganha força porque é o ponto de cruzamento das expectativas de lá e de cá. Quando essas duas extremidades finalmente se unem no momento do reencontro, ideias abstratas e associações especulativas sobre os laços de parentesco ganham sua última materialidade para quem assiste.


Sob o real risco do real

Como dar forma ao absurdo com um celular na mão? Talvez essa seja uma das perguntas que mais instiguem, no redemoinho da internet e da vida hiperconectada, quando pensamos nos tipos de registros que de alguma forma conseguem captar a vida em seu caráter magicamente acidental, despretensiosamente. Em Homem vai relatar temor por barragem e flagra acidente de trânsito, alguém aponta para uma certa represa de rejeitos e comenta as alterações topográficas na região causadas pela empresa mineradora, sempre evocando seu interlocutor “Xavier”. Com um traço imaginário no ar, esse homem desenha com o dedo o caminho do que, segundo ele, irá desembocar num futuro túnel onde possam caber mais rejeitos de mineração. Nada mais atual do que um crime ambiental, ou nada mais atual do que o tremor e temor por um desastre que ainda não aconteceu.

Quando o homem com a câmera está prestes a pisar na rodovia para completar sua explicação, eis o inesperado: uma batida de carros violenta acontece bem na sua frente. O homem dá uns passos para trás, mas a câmera empunhada registra toda a ação, num plano tão casual, num enquadramento com tão poucos movimentos bruscos, como se tudo aquilo, apesar da fala extasiada (“Puta que o pariu uma batida aqui agora. Nossa senhora que porrada. Puta que o pariu. Quase que me pega, nó, puta merda. Puta que o pariu, nossa senhora”), fizesse parte da paisagem que há pouco ele intencionava mostrar. Ao som da música sertaneja que não parou, os dois condutores saem, não se cumprimentam e dão a volta em seus respectivos automóveis para medir o estrago, em uma coreografia estranhamente sincronizada. O absurdo carrega consigo um caráter de encenação.

Mas o homem com a câmera continua. Ele termina de cruzar a rodovia para confirmar sua tese do outro lado do túnel (“Aqui ó, deixa eu acabar de falar, deixa eu acabar de falar, aonde eles vão colocar ela aqui ó, eles vão fazer outro buracão aqui embaixo, ó”). Ele até consegue concluir seu intuito inicial de narração, mas o acidente exerce sobre ele uma força tão irresistível que o sentimos oscilando no emaranhado das duas narrativas (“Bicho que porrada aqui, olha. Esse povo é tão fia-da-puta, Xavier, que eles já vão reflorestando justamente pra tapar a visão. Deixa eu acabar de ver esse acidente aqui peraí”). Para além da inocência enternecida do absurdo in loco, há algo ali que se constrói a nível perceptivo. É como se esse homem estivesse no meio da encruzilhada das linhas de força do discurso, vacilando entre o tempo lento da narração (do conto, do causo) e a sedução imediata do evento (da informação, da notícia, do aqui e agora, etc.). E, pensando nos atravessamentos entre o virtual e o real, principalmente numa era de lives e outras formas de sincronicidade – isso de se estar em dois lugares ao mesmo tempo –, talvez esse vídeo nos mostre curiosamente o inverso, a ideia de que alguém, um dia, pode estar em dois tempos no mesmo lugar.

A presença do encontro, do acontecimento, mete um rasgo na tessitura da vida, como nos momentos em que a memória salta aos olhos e intercepta por alguns segundos a visão do agora. A imagem que irrompe é também um acidente e, tal qual esse homem, podemos ficar absortos e sair cambaleando. Nós não escolhemos nossos traumas; espiar de rabo de olho ou encara-los finalmente são algumas maneiras de lidar com eles, só não parece existir ignorância completa: “desver” ou “desviver” nunca é uma opção. A lembrança súbita é então um mecanismo pirata no processo de pensamento, em que diferentes momentos, selecionados por um eu do passado, nos invadem e se reincidem no presente. De alguma maneira, todos nós estamos em mais de dois tempos no mesmo lugar.


Separar é colocar espaço

Tirar um órgão é também inserir certo vácuo no corpo, mesmo que momentâneo, já que logo depois as entranhas dão jeito de preencher.

Uma primeira visão de Ob scena (Paloma Orlandini Castro, 2021) poderia começar por seu título, o espaço em branco deixado na separação da palavra ou na retirada de um dos ovários. Essa intervenção inevitavelmente altera os estatutos da sentença e do corpo, e também pode ser encarada como uma proteção necessária ou não à aproximação proposta pela personagem/realizadora.

Ob, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: prefixo latino que exprime a noção de “diante de”, “em face de”, “contra”. E que também diz respeito à atitude analítica própria do filme: dissociando as partes, para então submetê-las ao exame, a narradora encara a cirurgia sofrida na infância e elabora suas repercussões com as ferramentas lexicais da sua própria formação (ontológica, familiar). Nesse sentido, cria-se uma pequena máquina ótica para se estar diante da cena, onde também a fala e os cortes na matéria sonora conduzem e controlam a cadência dos movimentos subjetivos do filme, seja diante da cena da performance da artista com o dinheiro, ou diante da cena pornográfica com a mulher negra.

Se a repetição é um dos traços inconscientes mais presentes em Obscena (repetição da profissão dos pais, tios e avôs; repetição de impulsos e comportamentos; repetição da performance vista no livro, etc.), ela também é confrontada por sua faceta consciente dentro do próprio texto fílmico. A decomposição de imagens eróticas em traços montáveis e remontáveis, assim como todo o processo de reelaboração do arquivo e da memória, além da montagem, enfim, se fazem pelo viés da repetição.

Mas a exposição de Ob scena não acontece pela carne. Ela se dá antes no gesto da narradora que manuseia papéis antigos e documentos sobre sua vida com luvas de látex, organizando um contato tão íntimo quanto estéril. Assim, diante de si, o corpo é revestido pela sensorialidade do silicone, como em preservativos, sex toys e alguns artigos hospitalares — algo que reaparece em Mon Iris (Anabelle Abdul, 2021), na sequência. Esses dois filmes, na verdade, seguem o fluxo de seus próprios sujeitos ou objetos de investigação. Castro realmente segue o tratado médico da sua experiência, com textura de enciclopédia anatômica. Por sua vez, a dublagem de Iris reforça a profilmia pornográfica, seguindo o pacto da performance nas telas.

Dentro do esforço de reelaboração da experiência altamente subjetiva de Obscena, o contato intermediado por superfícies ou aparelhos (de todos os tipos: luvas, lupa, câmera) vai arquitetando um branco espaço de entre, um distanciamento preciso talvez para poder lidar com (e remexer) a dor: colocar o dedo na ferida, sim, sem no entanto reproduzir a incisão.

 

* As três críticas foram escritas no âmbito do Laboratório de Crítica da Revista Cinética em parceria com o IMS e também do Corpo Crítico de 2021 do FestCurtasBH.

Arte Pública, Hoje — por Lucas Almeida

No Brasil das décadas de 1960 e 1970 foram realizados vários filmes sobre arte. Em sua maioria de curta-metragem, influenciados pela recente onda europeia de filmes do gênero, como Van Gogh (1948) e Paul Gauguin (1950) de Alain Resnais ou Le Mystère Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot1, esses filmes estavam também em consonância com a então voga do documentário brasileiro moderno de tendência “verista” e sociológica –  focado em “registrar” as manifestações da cultura brasileira – que se desenvolveu a partir do início dos anos 1960 e se desdobrou em novas experiências na década de 1970. Dentro desse quadro, porém, alguns dos filmes sobre arte se destacam por não se encaixarem muito bem – em forma, ideia ou intenção – nem no conceito clássico de documentário sobre arte e nem na ideia tradicional de documentário.

Assim como Jean-Claude Bernardet, em Cineastas e Imagens do Povo, localiza uma outra vertente de filmes que rompem com o modelo sociológico e com a ideia de documentário como “registro do real” e optam por trabalhar a linguagem cinematográfica em busca de uma melhor problematização do tema tratado – e, por conseguinte, da realidade – , no âmbito dos filmes sobre arte é possível detectar operações similares. No artigo A Máquina Antes de Cézanne, escrito por ocasião de uma sessão de filmes sobre arte no Festival JB de 1980, Ronaldo Brito discorre sobre as implicações de uma aproximação desse tipo entre a linguagem do cinema e a das artes plásticas. Para o crítico, ao abordar a arte através do cinema é preciso ter em mente as diferenças e descontinuidades entre as duas linguagens. Sendo impossível evitar a diferença – sob o risco de uma espécie de “retorno do recalcado” –  é necessário, então, trabalhar com e a partir dessa diferença, afastando-se da “ideologia do documentário” e operando “cinematograficamente com a inteligência dos trabalhos”, internalizando na linguagem cinematográfica as suas questões2.

Brito se aproxima da ideia de André Bazin, apresentada no artigo Pintura e Cinema, de que “os próprios filmes são obras” e que “não se deve julgá-los somente com referência à pintura que eles utilizam, mas em relação à anatomia, ou antes, à histologia desse novo ser estético, que surgiu da conjunção da pintura e do cinema”3. No caso dos filmes tratados por Brito, que surgem a partir da década de 1960 no Brasil, é preciso atualizar a ideia de filmes sobre pintores/escultores para filmes sobre artes visuais e artistas, e considerar que alguns desses filmes se encontram em uma situação de completa união com o campo da arte, sendo realizados por críticos de arte e também pelos próprios artistas4- em um momento em que o registro fotográfico (e também cinematográfico) passa a ter maior protagonismo no meio da arte, sendo pensado e utilizado “como meio de veiculação, mas, também, lugar de acolhimento da expressão da obra na imagem, na ampla rede que constitui o trabalho”.5

 Letreiros de abertura de Arte Pública e Arte Hoje.

Arte Pública (Jorge Sirito e Paulo Martins, 1968) e Arte Hoje (Antonio Manuel, 1976) são ambos filmes que buscam retratar e divulgar um conjunto de artistas representativos de um momento específico da arte brasileira – contemporâneo à realização do filme. Ambos, também, têm em sua realização a mão de um artista atuante no contexto retratado. Pedro Escosteguy roteiriza e escreve o texto de Arte Pública e Antonio Manuel escreve e dirige Arte Hoje: histórias verídicas. O fato de artistas estarem envolvidos com os filmes (nesse caso, filmes documentários e não “filmes de artista”) não é mero detalhe, e explicita algumas questões em voga no meio artístico a partir da década de 1960, como a exploração de novas formas de veiculação da arte em busca de um maior contato com o público (fora do circuito tradicional) e a ocupação do campo discursivo (teórico e crítico) por parte dos próprios artistas .

Em artigo sobre Pedro Escosteguy, Arthur Freitas define Arte Pública como “(…) uma síntese da vanguarda nacional anterior ao AI-5 – um resumo sintomático de suas ideias e impasses”6. Realizado em 1967 por ocasião da IX Bienal de São Paulo – a “bienal pop” – , e na esteira da Nova Objetividade e de outros eventos e textos que proclamavam uma vanguarda brasileira engajada politicamente e compromissada com a experimentação dentro do contexto das discussões sobre as novas figurações e o “novo realismo”, Arte Pública fica a meio caminho entre um documentário e um explícito manifesto dessa vanguarda “pré AI-5”, representada pelos artistas focalizados e principalmente pelo texto de Escosteguy. Se Arthur Freitas aponta que “a ideia básica consistia em celebrar, por meio de alguns artistas pontuais, o caráter crítico e ao mesmo tempo experimental da produção artística brasileira recente, ali resumida na expressão ‘arte pública'”, o que transparece é que há uma certa tensão entre esse intuito e a sua realização fílmica. No limite, embora Arte Pública reste hoje, nas palavras de Freitas, como “o mais importante registro audiovisual já realizado sobre a vanguarda brasileira dos anos 1960”, a impressão que fica é que estamos diante não de um manifesto mas de um filme institucional da vanguarda.

Letreiro abertura de Arte Pública

O curta se divide em basicamente três partes. Primeiro, uma apresentação laudatória da Bienal de São Paulo, um “grande espetáculo de confraternização humana” que serve para apresentar ao grande público as mais novas tendências da arte, no caso da IX Bienal a “arte pública”, que “democratiza o consumo de suas experiências (…) contribuindo para a consolidação de um humanismo positivo, onde a cultura e a liberdade são bens de caráter público”. Após uma passagem pelas obras expostas na “bienal pop” e a defesa da “arte pública” como uma concepção genérica, há uma virada em que, tensionando o texto da narração com imagens de obras da Pop norte-americana, o filme sutilmente introduz a segunda parte: a apresentação dos artistas brasileiros que, na visão de Escosteguy, são os verdadeiros representantes de uma arte em que “se desmascaram os traficantes da guerra e da miséria” e “se descobre o germe que transforma os preconceitos que subvertem a realidade de uma civilização de característicos solidários”.

Na segunda parte a narração prossegue sua lógica, discorrendo sobre o “artista moderno” que trabalha e expõe suas obras, “ora no atelier, ora na fábrica, ora no campo estridente das relações urbanas”, “numa reflexão em termos de formas ou numa forma de mobilizar a reflexão do espectador em termos de participação”. Embalada por uma música lenta e melancólica (onipresente em quase todo o filme), a apresentação dos artistas se desenrola quase que num fluxo contínuo, dada a suavidade dos cortes e a fluidez da montagem. Primeiro, vemos Wesley Duke Lee em seu ateliê, rodeado de obras como Trapézio ou uma Confissão (1966) e Helicóptero (1967/1969). Depois de uma breve sequência marcada por um jogo de luzes e escuridão, talvez fazendo referência ao “happening” do João Sebastião Bar, o filme retoma sua música padrão com a apresentação de uma Vernissage de Antônio Dias e, na ordem, os artistas Glauco Rodrigues, Rubens Gerchman, Tomoshige Kusuno, Pedro Escosteguy, Carlos Vergara e Abraham Palatnik trabalhando ou exibindo seus trabalhos em seus ateliês ou residências.


F-111 de James Rosenquist na IX Bienal e Pedro Escosteguy em seu ateliê diante de Objeto Popular – Vote

Neste ponto, após a apresentação de Palatnik, a música se interrompe. Dá-se início à terceira e última parte, que ainda é a de apresentação dos artistas brasileiros, mas agora da tríade Lygia Pape, Hélio Oiticica e Lygia Clark. O que configura uma terceira parte é a característica das obras apresentadas, além da ruptura do ritmo e do ambiente até então predominante no filme. A narração agora dá ênfase à vertente da arte pública que “(…) entregue aos seus próprios recursos ou apta a se completar com a imaginação ou com o gesto do espectador (…)” e, “(…) plástica como um corpo humano, de que muitas vezes se apropria, parte para manifestações concretas, criando um novo instrumento de crítica e de afirmação”.

Ovos, Parangolés e Eu e Tu,  Arte Pública

Primeiro, são apresentados os Ovos, de Lygia Pape. Em um ambiente deserto e silencioso, no pé de uma montanha, jazem três cubos coloridos. A câmera se aproxima, na mão, silenciosa, até que sucessivamente os cubos se rompem, saindo deles três homens negros que puxam um samba a pandeiro, agogô e tamborim. O samba segue na trilha e um letreiro apresenta Lygia sentada diante dos cubos, os homens tocando samba ao fundo. Corta para outro cenário. O samba segue na trilha, agora mais lento, e num descampado vemos quatro homens vestindo parangolés e dançando ritmadamente em câmera lenta. Mais uma vez o artista entra em cena na frente de sua “obra”, sendo apresentado por um letreiro. Por fim, o samba cessa. Entra um comentário sonoro eletrônico e “futurista”, como que tirado de um filme de ficção científica. Em um ambiente escuro somos apresentados a três trabalhos de Lygia Clark, primeiro uma máscara sensorial, depois Eu e Tu (1967) e, fechando o filme, Cesariana (1968). Nesta última cena, o performer vagarosamente abre a bolsa-ventre, retira confetes de seu interior e os espalha pelo ar, simbolicamente semeando o futuro com novas formas de arte e de vida. A trilha tema do filme volta lentamente, o performer continua sua ação até o plano se congelar e subir o letreiro final: “A Arte Pública é uma convocação geral para a união de todos em torno dos temas primordiais da cultura e da liberdade”. O filme se encerra sintomaticamente de forma um tanto melancólica, com um texto utópico que – com a edição do AI-5 em dezembro de 1968 – se provaria insustentável.

Letreiro final de Arte Pública

Se Arte Pública possui toda uma carga utópica representativa do clima artístico e intelectual do período pré AI-5, de 1964 a 1968, marcado por anseios utópicos atrelados ao diálogo crítico com a realidade nacional – em meio a intensas trocas e tensões com o cenário artístico internacional – , há de se considerar – em especial a última parte dedicada ao desdobramento das experiências neoconcretas – que de fato é essa arte apresentada no filme, em suas questões formais e também políticas, que dará o tom à arte que será feita na década de 1970,7 uma arte que por um lado se “desmaterializa” e ataca com (os) novos meios e estratégias, mas que por outro se mantém combativa  – agora, não para mudar o mundo, mas para criticar e denunciar a situação política e cultural no Brasil e, também mas não menos importante, instituir um território profícuo para o desenvolvimento da arte contemporânea no país. Nesse ponto, após a arte revolucionária, viva e colorida de Arte Pública, chegamos em Arte Hoje, filme de Antonio Manuel que apresenta os desdobramentos da arte de vanguarda no Rio de Janeiro dos anos 1970, em especial através de uma geração de artistas que ficou conhecida como “geração ai-5” ou, nos dizeres de Francisco Bittencourt, “geração tranca-ruas”8 – artistas que iniciaram a década de 1970 com uma produção violenta e muitas vezes efêmera e precária que foi chamada de contra-arte e arte guerrilha por Frederico Morais.

Cildo Meireles, Arte Hoje.

Arte Hoje é um curta-metragem de 14 minutos, p&b, em que são apresentados 10 trabalhos de 10 artistas brasileiros. O filme é rápido, começa com uma série de fotos dos artistas acompanhadas de uma breve narração que descreve sinteticamente os trabalhos que iremos ver. Após essa introdução, o que vemos são dez pequenos episódios independentes introduzidos por um letreiro – que informa o nome do artista e do seu trabalho em questão. O primeiro episódio é Estômago Embrulhado, conhecida ação de Paulo Herkenhoff em que este devora jornais em frente a uma banca de rua. Na trilha, O Conto do Pintor, de Moreira da Silva. Depois vem Sal Sem Carne, de Cildo Meireles: um close no LP que gira na vitrola, a palavra PESQUISA em evidência. Na trilha, trechos do disco de Cildo. Seguem-se planos fechados da capa, algumas fotografias de indígenas e a contracapa, ambas, capa e contracapa, com a projeção de um arco de luz em rotação – reflexo do disco a girar. Com Porco na Festa, de Hermeto Pascoal, o Banquete de Rosa Correia é servido: no chão da sala de um apartamento um grupo devora com as mãos um leitão cozido. Pinturas da série Ocorrência de uma trajetória, de Raymundo Collares, são intercaladas a imagens de ônibus em movimento. Na trilha sonora, As Curvas da Estrada de Santos. Imagens de uma misteriosa Trouxa Ensanguentada, de Artur Barrio, em pontos marginais da cidade, são acompanhados na faixa sonora por Rogério Duarte falando sobre a morte, Deus e o infinito em Objeto Semi-Identificado, de Gilberto Gil. Sangue, Raça & Costumes, episódio de Alfredo Fontes, decompõe seu livro Origens em pequenas encenações, ao som de América do Sul, de Ney Matogrosso. Três passistas letargicamente desfilam os parangolés de Oiticica. Os Objetos de Sedução, de Lygia Pape, são apresentados ao som da banda sonora de seu filme Eat Me: A gula ou a luxúria. Um plano fechado alternando zoom in/zoom out focaliza um alto falante, a trilha é o trabalho: Cinco & Trinta da Tarde, de Guilherme Vaz. Por fim, TV News, de Luiz Fonseca, apresenta imagens da cidade do Rio de Janeiro filmadas através de acetatos com colagens feitas de adesivos de futebol e de propagandas da ditadura, alternando a marchinha/hino Cidade Maravilhosa e uma narração de um jogo do Flamengo. O filme acaba com a repetição – ligeiramente modificada – da frase que o inicia, agora proferida sobre os créditos finais: “São artistas. Com suas propostas radicais anunciam novas linguagens, novos comportamentos”.

Sangue, Raça e Costumes, de Alfredo Fontes e Banquete, de Rosa Correia

Iniciada na segunda metade dos anos 60, a produção de Antonio Manuel é marcada pelos anseios e dilemas de sua geração, como o empenho em produzir uma arte participante mas de viés construtivo, politicamente crítica mas comprometida com a experimentação, uma arte como “exercício experimental da liberdade” num momento em que arte e liberdade eram fortemente reprimidas pela ditadura. Expandir os limites físicos e conceituais da arte, aproximá-la da vida e do cotidiano, era o caminho do momento e intervir nos meios de comunicação de massa foi uma das estratégias possíveis para arriscar um choque ético-estético e alcançar o grande público. Trabalhando inicialmente com jornais, numa pesquisa que se desdobraria em vários projetos, passando pelos Flans, Clandestinas e o jornal-exposição Das 0 às 24 horas, Antonio Manuel chega ao cinema nos anos 1970, década em que realiza cinco curtas-metragens9. Arte Hoje é seu penúltimo filme, foi realizado por meio de um concurso para ser exibido em cinematecas e universidades10e, como todos os seus outros filmes, é realizado no limite das possibilidades técnicas e financeiras. Com película p&b, ausentes de som direto – mas com um criativo trabalho na banda sonora -, filmados e montados com um rigor matemático que acaba por controlar a crueza de uma linguagem que se mostra a nu, sem fazer concessões nem apelar a floreios e disfarces, seus filmes nos remetem ao cinema de Júlio Bressane e também de Lygia Pape, além de outras experiências do cinema brasileiro que podemos colocar sob a frágil alcunha de “marginal”.


TV News, de Luiz Fonseca

Não por acaso, a estrutura de Arte Hoje faz lembrar um cinejornal (“no jornal anda todo o presente”) – o que seu subtítulo, histórias verídicas, ironicamente endossa. Não há, porém, narração (de fato) ou cartelas informativas e o máximo de informação verbal que o filme apresenta são os nomes dos trabalhos e dos artistas, além da sua breve narração inicial – mais paratática que discursiva – que não entrega nada a mais que as imagens e os sons que veremos a seguir. Não há aqui, em se tratando de um filme sobre arte encomendado como material didático e de divulgação, a menor abertura à “ideologia do documentário”. E nesse sentido podemos traçar uma analogia com os próprios escritos de Antonio Manuel que, nas palavras do crítico Guilherme Bueno, “(…) têm o impacto imediato da comunicação, mas o fazem pelo viés de um choque surdo – seu sentido requer a ruptura do leitor com seus hábitos interpretativos arraigados, é reivindicado um leitor inconformado e inconformista”11. Tal movimento de se apropriar de uma linguagem de massa almejando a comunicação direta, mas não aquiescer em baixar a “taxa de informação” e, ao contrário, insistir na comunicação de estruturas novas que exigem a participação do espectador, vai de encontro à ideia exposta por Décio Pignatari em Teoria da Guerrilha Artística12: na vanguarda, assim como nas guerrilhas, o que importa é “a informação (surpresa) contra a redundância (expectativa)”13.

Episódio de Raymundo Collares, Arte Hoje

O que Manuel faz em Arte Hoje é “experimentar cinematograficamente” o trabalho de cada artista, como queria Ronaldo Brito. Em vez de registrar e comentar discursivamente, “traindo” o trabalho de arte e o próprio cinema, Manuel inventa a cada vez uma forma de apresentação, impregnando som e imagem de formas e sentidos (lineares ou não) em conexão direta com o trabalho enfocado, sem se preocupar, porém, em exagerar essas relações, mantendo ainda alguma fé na objetividade indicial da imagem cinematográfica – o que não é nenhuma contradição, a imagem cinematográfica também como registro.

Curiosamente, a estrutura do filme se aproxima também da ideia de organização de Ondas do Corpo – pesquisa realizada por Manuel na década de 1970 e ainda inédita em livro. Além das relações diretas com Arte Hoje, da coincidência de artistas e trabalhos focalizados, sua estrutura é pensada como uma soma de partes abertas para veiculação dos trabalhos, em que “cada artista é parte de um todo e os pontos abordados por cada um, na sua totalidade, formam um corpo”14, organizado, editado e assinado por Antonio Manuel. E nesse sentido é preciso considerar, também, o próprio filme como um trabalho de arte, um caso especial de metalinguagem no limite das intenções do artista e da instituição que o produziu. Sabendo que o filme foi encomendado para mostrar “jovens criadores da cultura brasileira”10, nada mais justo que fosse realizado por um desses “jovens criadores” e que, dando um passo além, o próprio filme fosse a materialização do “assunto” tratado, oportunidade de contato direto com a forma de arte sobre a qual o espectador incauto gostaria de se informar 15.


Estômago Embrulhado, de Paulo Herkenhoff. Arte Hoje


SOS de Rubens Gerchman, Arte Pública

Voltando ao Arte Pública, não é esse “estatuto de obra” que necessariamente faz falta ao filme, mas é o desnível entre a arte apresentada (fundada na surpresa) e a forma cinematográfica que a apresenta (redundante, condizente à expectativa de um documentário qualquer), que o limita. Não que no filme faltem momentos de singular beleza, e nem que não seja um potente registro visual da arte daquele momento. Mesmo em algumas passagens, há sim uma intencional contaminação da forma fílmica pelos sentidos amplos dos trabalhos artísticos – na já citada cena de Wesley Duke Lee, que reflete o misterioso, o lúdico e o sarcasmo presentes em sua obra – além de, com o jogo de luzes a ligar e desligar, remeter ao “happening” do João Sebastião Bar; na passagem de Gerchman, em que o detalhe de sua serigrafia SOS, ampliado, se transforma em letreiro e grito do próprio filme; nas partes dedicadas à Op Art ou mesmo na sequência dos parangolés que, apresentados em câmera lenta e em película colorida, fazem mais jus à relação do movimento, da dança e da cor na constituição de um “espaço ambiental” (no caso, fílmico), do que no filme de Antonio Manuel.

Mas tanto a trilha sonora de Arte Pública, que poderia muito bem ser muzak e que, a despeito disso, não tem nada a ver com a produção exibida – essa, muito mais ligada à música erudita de vanguarda da época e ao rock Iê Iê Iê da Jovem Guarda, sem falar na Tropicália que também apareceria no ano de 1967, -, quanto o texto relativamente rebuscado de Escosteguy, piorado pela seriedade e empolação do locutor, diluem as partes positivas do filme num todo que quase chega à desdiferenciação e que, o que é pior, acaba passando um já referido senso de melancolia – que, mais uma vez, não tem a ver com a arte da vanguarda brasileira dos anos 1960 naquilo que lhe era constitutivo, mas sim com seu destino, o desmanchar de sua utopia a partir do AI-5. Em suma, a arte de vanguarda recebe por parte de Paulo Martins e Jorge Sirito um tratamento elevado, distinto, quando era no nível do chão da rua, das quermesses e parques de diversão que aquela produção vicejava. Arte Hoje, fiel aos trabalhos que apresenta, traz na forma a contingência e a invenção, ao mesmo tempo que o precário, a virulência e o desespero que a arte naquele momento transpirava.

Décio Pignatari, no já referido Teoria da Guerrilha Artística, coloca Terra em Transe em questão indicando que Glauber Rocha “não soube criar o hibridismo entre dois veículos” – a poesia linear (“vigente há uns cinco lustros”) que guia o filme ficando em descompasso com a imagem estruturada por simultaneísmo (contemporânea). Já Bernardet, ao tratar das problemáticas entre a intenção e a linguagem de Viramundo, documentário de Geraldo Sarno, sentencia: “usamos uma linguagem ao mesmo tempo que somos usados por ela, não é possível fazer dela um instrumento neutro, vazio de significação, adquirindo apenas as significações que queremos lhe atribuir”16. Para fechar, e apelando para analogias já um tanto gastas mas que por isso mesmo não são de todo equivocadas, o descompasso que vemos nos filmes do Cinema Novo que ainda insistiam no substrato literário (“história com estória e alguma parataxe”) mesmo quando já confrontados pelos filmes “marginais” – em especial de Sganzerla, Bressane e Candeias (“história paratática sem estória17”) -, é o descompasso que sentimos entre Arte Pública e Arte Hoje. De toda forma, são ambos documentos valiosos sobre a arte brasileira das décadas de 60/70 e é uma pena que sejam, hoje, tão pouco vistos. Os filmes estão disponíveis no youtube (link nas notas)18.

Referências:

BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. 326p.

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. 197p.

BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016.

BRITO, Ronaldo. A Máquina Antes de Cézanne. in: Filme Cultura, Embrafilme n.35-36, p. 37, 1980.

BUENO, Guilherme (org). Antonio Manuel : eis o saldo : textos, depoimentos e entrevistas.  Rio de Janeiro, Funarte, 2010. 137 p.

FERREIRA, Gloria. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. 575 p.

FERREIRA, Gloria; FARIAS, Agnaldo.; ANJOS, Moacir dos.; HERKENHOFF, Paulo. INSTITUTO TOMIE OHTAKE. Meio século de arte brasileira = Half century of brazilian art. São Paulo: Instituito Tomie Ohtake, 2007-2009. 4 v. (Meio seculo de arte brasileira).

FREITAS, A. Notas sobre o amor: Pedro Escosteguy em Curitiba. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 127–143, 2017. DOI: 10.24978/mod.v1i1.734. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8662258. Acesso em: 30 nov. 2022.

VOROBOW, Bernardo (org). ADRIANO, Carlos (org). Julio Bressane : cinepoética.  São Paulo, Massao Ohno, 1995. 174 p.

NOTAS:

  1. Os filmes sobre arte foram objeto de críticos e teóricos a partir da década de 1940. Sobre o tema, são célebres os escritos de André Bazin, Henri Lemaitre e Jean Mitry. Outro dado curioso de indicar, sobre esses filmes no contexto brasileiro, é que a sessão de inauguração do Departamento de Cinema do MAM-RJ, em 1955, foi dedicada a “filmes sobre arte”, tendo sido exibido o Van Gogh de Resnais, dentre outros filmes.^
  2. Ronaldo Brito – “A Máquina Antes de Cézanne”, Filme Cultura, Embrafilme n.35-36, p. 37, 1980. ^
  3. BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 176.^
  4. Por exemplo, os críticos Wilson Coutinho e Olívio Tavares de Araújo realizam filmes – sem falar dos audiovisuais de Frederico Morais -, assim como Antonio Manuel realiza Cultura e Loucura e Arte Hoje, Raymundo Amado, poeta, realiza Apocalipopótese como artista integrante da manifestação e Pedro Escosteguy roteiriza e escreve o texto de Arte Pública.^
  5. FERREIRA, Glória. Anos 70 – arte como questão. in: Meio século de arte brasileira. São Paulo: Instituito Tomie Ohtake, 2007-2009. 4 v.^
  6. FREITAS, Arthur. Notas sobre o amor: Pedro Escosteguy em Curitiba. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 127–143, 2017. Toda a descrição e parte da análise exposta abaixo sobre Arte Pública é devedora do texto de Freitas.^
  7. nesse sentido é curioso notar que os filmes Arte Pública, Ver Ouvir e Apocalipopótese estiveram presentes na mostra Information realizada no Moma em 1970, representando a produção brasileira junto, por exemplo, dos registros cinematográficos da Situação T/T1 de Artur Barrio.^
  8. A geração tranca-ruas. In: BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016. P. 33. Artigo com entrevista de Frederico Morais, por ocasião da manifestação Do Corpo À Terra, realizada em abril de 1970 em Belo Horizonte^
  9. São eles: By Antonio Manuel, 1972. 16mm; Loucura & cultura, 1973. 35mm; Semi-Ótíca, 1975. 35mm; Arte Hoje, 1976. 16mm; Uma Parada, 1977. 16mm^
  10. A arte abrange tudo – é uma experiência vital. In: BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016. P. 184.^^
  11. BUENO, Guilherme (org). Antonio Manuel : eis o saldo : textos, depoimentos e entrevistas.  Rio de Janeiro, Funarte, 2010. Introdução, p. 15.^
  12. publicado em 1967, foi um importante ensaio para a configuração das estratégias da vanguarda brasileira na virada da década de 60Frederico Morais o tomou como inspiração para desenvolver a ideia de arte de guerrilha^
  13. PIGNATARI, Décio. Teoria da Guerrilha Artística. In: FERREIRA, Gloria. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006.^
  14. “Estabelecemos na estrutura do livro a ideia de abrir novos espaços para veiculação dos trabalhos – dividir por partes, ou seja, por nomes dos artistas e seus discursos sobre o corpo. Nesse sentido cada artista é parte de um todo e os pontos abordados por cada um, na sua totalidade, formam um corpo. Nossa intenção é fundir os sentidos individuais num corpo próprio e coletivo.” In: Ondas Do Corpo, Antonio Manuel. Inédito. ^
  15. seja na forma de documentação de ações e obras (Estômago embrulhado, Banquete, pinturas de Collares), de “performances” feitas para a câmera e para o próprio filme (Sangue, Raça e Costumes), da realização fílmica de obras que existem de outra forma fora do filme (Tv News) e, por fim, o próprio filme Arte Hoje.^
  16. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 214^
  17. PIGNATARI, Décio. História sem estória. In: VOROBOW, Bernardo; ADRIANO, Carlos (orgs.). Júlio Bressane: Cinepoética. São Paulo, Massao Ohno, 1995. 174 p.^
  18. https://www.youtube.com/watch?v=tteMewMZn14   e   https://www.youtube.com/watch?v=BFuZFyx_tMM&t=24s^

Duas pausas em Spray Jet – uma nova atração na tela? — por Lucas Almeida

Pintei um quadro só por fora das molduras
Eu joguei tinta nas paredes todo mundo achou legal
Dei cambalhotas e as madames exclamaram
“Esse Moreira é um artista genial!”
O Conto do Pintor, Moreira da Silva.

Na década de 1980 Ana Maria Magalhães dirigiu dois curtas-metragens com o intuito de “fazer uma cobertura da cultura daquela época”.1 São eles: Assaltaram a Gramática (1984) e Spray Jet (1985). Respectivamente um filme sobre poesia e outro sobre artes plásticas, ambos com um recorte muito bem definido de “atores” e práticas. O primeiro versa sobre a poesia e os poetas marginais da década de 1970, que estavam sendo publicados comercialmente pela primeira vez no início dos anos 1980. O segundo, sobre a “Geração 80” e a “volta da pintura” em voga naquele momento, representada no filme pelos jovens artistas José Leonilson, Leda Catunda e Ciro Cozzolino. Afora o contexto histórico de suposta euforia pela abertura política e uma estrutura fílmica semelhante – decupagem clássica, cenas documentais entremeadas com encenações e “performances”, cores quentes e na trilha sonora o que ficou conhecido como “rock brasil” – os dois filmes compartilham uma característica que, não por acaso, combina com a forma cinematográfica de ambos: são filmes que tratam de atividades e atores “da moda” na cultura e “em alta” no mercado da época.2 Não que sejam exatamente filmes de propaganda mas, feitos no calor do momento, se deixam contaminar pelos discursos midiáticos acerca da prática específica que cada filme enfoca, tendo, por isso, forte apelo publicitário.

Em geral, Spray Jet se divide em blocos de depoimentos individuais de cada artista, com imagens de cobertura de passeios pela cidade, ruas, lojas, parques e um museu (MASP); imagens das pinturas e da prática de cada artista; uma vernissage e algumas encenações. Dos depoimentos e das imagens pode-se tirar, em síntese, algumas ideias que eram apontadas como características da produção dos jovens artistas dos anos 1980, como a retomada da pintura e a ruptura deliberada com a arte da geração anterior, conceitual e difícil, “jogo dos paradoxos” no dizer de Leonilson; a assunção da pintura como uma prática visceral, “expressionista” e, ao mesmo tempo, prazerosa, “uma forma legal de viver”, ligada à vida íntima e cotidiana dos artistas e dos espectadores; e, por fim, a apropriação de imagens da história da arte e da indústria cultural misturadas e reconfiguradas num “citacionismo” plástico.

Embora nessa época a produção de cada um dos três artistas já apresentasse uma evidente singularidade, e por mais que o filme dê algum espaço para a manifestação de suas diferenças, há um direcionamento no sentido de construir um discurso comum, retratando a dita “volta da pintura” como um movimento, os pintores como uma geração, suas práticas como necessariamente relacionadas e embasadas nas características acima referidas. Assim, o filme se aproxima das manifestações críticas/publicitárias sobre a nova pintura, emitindo juízos que, de acordo com Basbaum (2001, p. 311), “não foram gerados em contato direto com essa nova produção, mas a partir de um conceito de pintura mais amplo, tão genérico quanto indeterminado”, apelando-se em especial para uma dimensão comportamental que supostamente estaria inscrita na produção. Por serem ideais, esses juízos se fragilizam com muita facilidade.3 Aqui, iremos nos deter em duas partes encenadas do filme em que tal discurso chega a ser confuso e contraditório.

Fotogramas de Spray Jet; Maria Gladys e Helena Ignez

Em uma das cenas ficcionais que entremeiam os depoimentos e as tomadas “documentais” de Spray Jet, vemos Maria Gladys e Helena Ignez a atuar como empregada e madame, respectivamente. Nesta cena, enquanto a empregada (des)ajeita um quadro pendurado na parede – uma pintura de José Paulo Moreira da Fonseca -, a madame reclama da ousadia do “menino” artista – provavelmente seu filho – , recolhe alguns objetos em sua sala de estar – carcaça de violão, garrafa, o que parece ser um jogo americano cheio de areia, e um ovo, todos “arte” do menino – e ordena que a empregada guarde uma parte na cozinha e jogue o resto fora. Assim o faz Maria Gladys, ou Dinalva, mas jogando-os direto da janela para a calçada. Os objetos caem, ouve-se um carro freando bruscamente e, na sequência seguinte, Leda Catunda, de dentro do carro, observa o entulho e exclama: “oba, é arte!”. Só que a sequência não acaba aí e, já sem som, é possível ver que, depois da exclamação afirmativa, a artista, com um semblante confuso, põe em cheque a sua afirmação.

Fotograma de Spray Jet; Leda Catunda

Nessa cena, temos que o artista é filho da madame, e que ele produz uma arte objetual que remete de alguma forma à ideia de ready-made, embora não possamos assegurar suas ideias e preferências artísticas. Fato é que ele não pinta, e que não há nada de expressivo em um ovo. Dinalva, no começo da sequência, (des)ajeita uma pintura, arte que a madame provavelmente aprecia e contrapõe à produção disparatada de seu filho. Como vimos, a produção do filho vai parar na calçada, jogada fora como lixo, e Leda Catunda – apresentada nos créditos de abertura como pintora e não simplesmente como artista -, menos do que ficar confusa, aparenta algum constrangimento diante de sua afirmação, quase como que após um ato falho. Bem, seria o filho da madame um jovem pintor da “Geração 80” ou um anacrônico vanguardeiro perdido na década errada?

Por mais confusa que seja essa cena, resta claro pelo desenrolar do filme que sua função é a de caracterizar comportamentalmente a nova geração de artistas, colocando-os como jovens transgressores (“que ousadia desse menino!”) que operam uma ruptura (alegre e disparatada – “oba!”) na forma de fazer e entender arte das gerações anteriores (pintura bem comportada com chassi – de extração modernista). O que podemos pensar, porém, considerando os exemplos de “nova arte” que o filme apresenta, a pintura na parede e os objetos que são jogados fora – além da confusão de Leda Catunda – é que a madame mercado, mãe do(s) artista(s) do Brasil, ainda naquele momento renega a produção “conceitual e difícil” das décadas de 1960/70, preferindo uma pintura à qualquer coisa de arte contemporânea. E podemos dar continuidade a esse entendimento quando chegamos na cena da vernissage, em que a madame também está presente – apenas não é mais representada por Helena Ignez.

Fotograma de Spray Jet; Vernissage

O que temos, portanto, não é apenas uma retomada da pintura – claro, agora uma pintura de grande formato, mal comportada, sem chassi e muitas vezes irônica – mas uma continuidade das vendas. Aqui vale fazer menção a “Lugar Nenhum: o meio de arte no Brasil”. Publicado por Paulo Venâncio Filho em 1980, o texto traz um diagnóstico do meio de arte no Brasil, que “ (…) não sabe se existe ou se não existe”, e que “(…) Quanto mais procura existir, menos consegue” (2001, p. 216). O ponto do texto é que não há no Brasil – até aquele momento, 1980 – “um meio eficaz para a sobrevivência da produção”, e isso se dá, propositalmente, pelo modo de funcionamento do mercado de arte brasileiro, instaurado na década de 1960 sob “uma ideologia conservadora, originária da elite que o detinha”, e que antagoniza com a produção restringindo-a aos limites do consumo. Como consequência, a arte brasileira não encontra em solo nacional uma verdadeira dimensão cultural, existe apenas “enquanto satisfação de consumo, simples objeto decorativo, signo de distinção social”, sendo antes disso, em certos momentos, apenas uma boa forma de investimento (2001, p. 218).

Outra característica que Venâncio aponta no texto é a pouca ou nenhuma absorção da produção contemporânea pelo mercado, que sobrevivia até então da reapropriação da arte já institucionalizada, em especial da pintura dos modernistas históricos. Ele atesta, porém, que “um dia o estoque do mercado estará esgotado, e o confronto com os trabalhos contemporâneos será inevitável. Entretanto, pode-se prever que a sua simples apropriação não deverá modificar substancialmente o meio” (2001, p. 222). É justamente isso que ocorre alguns anos depois, no início da década de 1980. O mercado brasileiro busca se aquecer rapidamente por meio do trabalho de jovens artistas que praticam pintura, servindo-se da institucionalização internacional do “retorno da pintura” para legitimar mercadologicamente a incipiente produção. A inserção da produção contemporânea no mercado foi, porém, apenas mais um artifício para se atrair capital de forma rápida. Mais uma vez, “a legitimação do trabalho através do capital vai pagar sua entrada para uma história imediata, ou seja, o consumo” (VENÂNCIO FILHO 2001, p. 216). Aqui voltamos à Madame. Não seria difícil imaginar Dinalva tirando poeira de um Leonilson.

Fotogramas de Spray Jet; artistas produzindo e Ciro Cozzolino atirando lata de tinta.

A cena final do filme se passa, emblematicamente, num grande terreno baldio, “lugar nenhum” em que os três jovens artistas pintam energicamente as suas telas e jogam “para o alto qualquer coerência”.4 Nesse ponto, Leonilson diz: “O filme vai ser um testemunho. É como se eu tivesse escrevendo uma parte de uma coisa”, e Ciro Cozzolino completa: “Eu tô achando que é um filme, e é um documento, de um instante assim, que eu não sei se é muito importante também, assim como não é muito importante que a obra permaneça”. Ao fim e ao cabo, Spray Jet resta como um documento desse momento – mais discursivo do que real – da pintura brasileira do início dos anos 1980, em que esforços confluíram no sentido de criar um movimento, legitimar uma nova produção e inseri-la no circuito, mas não de estabelecer uma estrutura institucional e mercadológica saudável e orientada para a promoção da arte contemporânea. Embora com algum trânsito pelo exterior – no filme há referência à participação de Leonilson na Bienal de Paris de 1985 -, representados por galerias e produzindo intensamente, na realidade os jovens – e também e especialmente os não jovens – artistas brasileiros da década de 1980 estavam construindo suas obras – e o próprio circuito – num terreno baldio, entre lamaçais e mamoneiras.

Fotograma de Spray Jet; artistas e suas telas

A década de 1980 foi passando e a “pintura jovem”, de tanto ser tratada como moda, rapidamente tornou-se démodé.5 Com o arrefecimento da “volta da pintura” no cenário internacional, no Brasil a “Geração 80” também foi perdendo seu apelo e se mostrando, afinal, apenas como um bom slogan. Houve um movimento por parte da crítica e, em especial, dos artistas, de se afastar desse momento e seguir na construção de suas pesquisas artísticas individualizadas. Do discurso de promoção anteriormente propagado ficou claro que não só não houve uma “volta da pintura” – que sempre persistiu em existir, isso sem falar que o neoexpressionismo alemão por exemplo datava já da década de 1960 (ARCHER, 2012, p. 160) – , como também que havia mais continuidades do que rupturas na produção da década de 1980 com a arte das décadas de 1960 e 706 – como bem demonstrou Basbaum (2001) – e que o discurso de ruptura serviu internacionalmente como uma forma de promoção mercadológica da pintura em detrimento de outras formas de arte, sendo a produção madura de boa parte dos artistas relevantes envolvidos na “Geração 80” muito mais influenciada por questões da arte experimental das décadas anteriores do que por questões da pintura “expressionista”, como defende Hal Foster em termos mais amplos (FOSTER, 2017, p. 52).7 Mas nem tudo é de todo mal, e como atestou Milton Machado em conferência de 1992:

Melhor que fiquemos, com Nietzsche, na crença de que a produção de mentiras da arte adquire sua nobreza pelo fato de que é assim que ela produz novas verdades. A essas alturas, os bons artistas da “Geração 80” já se afirmaram como tais – alguns, até merecidamente, como “os tais”; muitos conseguiram finalmente adquirir suas genuínas individualidades, resgatá-las àquela “individualidade grupal” – norma e paradoxo – que se lhes tentou colar à testa como um rótulo. Todos finalmente e felizmente muito “mal comportados”, em suas buscas profissionais de coerência, quaisquer que sejam elas. A crítica , que na época se manifestava com euforia, hoje parece ter revisto algumas daquelas posições. E seria injusto não reconhecer entre os resultados de seus esforços a emergência de um momento – não de euforia, mas – de grande dinamismo, de participação, capaz de atrair a atenção de um público anestesiado à produção e de revitalizar o mercado, e do qual todos nós , de certa maneira, nos beneficiamos (MACHADO, 2001, p. 339).

 

Referências

ARCHER, Michel. História da Arte Contemporânea. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 2.ed. p.155 – 199.

BASBAUM, Ricardo. [1988] “Pintura dos anos 80: algumas observações críticas”. In: Idem (org.). Arte contemporânea brasileira. Texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 299-317.

CHIARELLI, Tadeu. [1987] “Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte contemporânea”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 257-270.

FOSTER, Hal. O Retorno do Real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

MACHADO, Milton [1992] “Dance a noite inteira mas dance direito”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p.321-344.

MONTEIRO, Fabiana Della Coletta. Da geração 80 na arte contemporânea brasileira: profissionalização e permanência no ambiente artístico paulista. 2016. 157 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

MORAIS, Frederico. [1984] Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você? In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p.224-230.

SESC TV. Sala de Cinema: Ana Maria Magalhães. Brasil: SescTV, 2011. 1 vídeo (55 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IzNDTWTSdYo&t=2216s. Acesso em: 01 jul. 2022

SPRAY Jet. Direção: Ana Maria Magalhães. Brasil, Embrafilme, 1985. 35mm, COR, (14 min)

VENANCIO FILHO, Paulo. [1980] “Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira. Texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 216 – 223.

 

NOTAS:
  1. SESC TV. Sala de Cinema: Ana Maria Magalhães. Brasil: SescTV, 2011. 1 vídeo (55 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IzNDTWTSdYo&t=2216s.^
  2. Os ‘atores’ de Assaltaram a Gramática – Chico Alvim, Waly Salomão, Paulo Leminski, Chacal (e Ana Cristina César, que havia falecido em fins de 1983 e é homenageada numa cena em que aparece lendo um trecho do poema Samba Canção) são todos poetas que viveram e desenvolveram boa parte de sua obra nos anos 1970, e que estavam naquele começo de década sendo lançados pela Editora Brasiliense. Assaltaram a Gramática, porém, é bem mais político (e apocalíptico) do que Spray Jet. Talvez pela idade dos poetas, talvez por ser a poesia, no dizer de Décio Pignatari, a arte do anticonsumo.^
  3. Utilizo como referência principal o texto Pintura dos anos 1980: algumas observações críticas, publicado por Ricardo Basbaum em 1988, em que o autor analisa alguns textos escritos pelos críticos Roberto Pontual, Frederico Morais e Marcus de Lontra Costa para promover a pintura nos anos 1980.^
  4. Faço referência ao texto “Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você?”, em que Frederico Morais escreve: “O jovem artista dos anos 1980 não se sente absolutamente comprometido com temas, estilos, suportes ou tendências. Joga para o alto qualquer coerência” (2001, p. 227). E brinco com o fato de que, no filme, Ciro Cozzolino, no terreno baldio, joga para o alto uma lata de tinta.^
  5. Faço referência à frase de Hal Foster: “Tratado como moda, o pós-modernismo tornou-se démodé.” (2017, p. 187) ^
  6. É curioso notar que a última imagem do filme – na qual os três artistas empunham suas telas sem chassi (tecidos) – possibilita uma analogia visual direta com os parangolés de Hélio Oiticica.^
  7. “No entanto, estamos diante de um falso testemunho, pois na década de 1980 o minimalismo era descrito como redutor e retardataire para que o neoexpressionismo parecesse expansivo e de vanguarda, e desse modo as diferentes políticas culturais dos anos 1960 minimalistas e dos anos 1980 neoexpressionistas foram mal-interpretadas. Apesar de suas aparentes liberdades, o neoexpressionismo participou das regressões culturais da era Reagan-Bush, ao passo que, apesar de suas aparentes restrições, o minimalismo abriu um novo campo da arte, que a arte de ponta do presente continua a explorar (…)” (FOSTER, 2017, p. 52).^

O Tao do Pernalonga, por Fred Camper (tradução de Pedro Ávila)

Esse texto foi publicado originalmente em inglês, no dia 1 de março de 2001, pela revista Chicago Reader e pode ser lido aqui. Escrevendo a propósito de uma exibição de curtas de animação de Chuck Jones, estrelando os famosos Looney Tunes, o artista plástico e crítico norte-americano Fred Camper reflete sobre o estilo autoral de Jones e seus desenhos animados produzidos e lançados pela Warner Brothers por volta dos anos 1940 e 1950. O próprio Camper disponibilizou algumas de suas obras e outros textos sobre cinema, arte, dentre outros assuntos em seu site.

Assim como as notas, as imagens não estão presentes no texto original, foram escolhidas pelo tradutor para melhor ilustrar as sequências comentadas por Camper.

 

Charles Martin “Chuck” Jones

 

O Tao do Pernalonga

Um dia de semana à tarde, em 1972, visitei um colega aficionado por filmes em seu lar em Los Angeles. Diversas outras pessoas interessadas em cinema também estavam lá. De repente, às 3 da tarde, todos se juntaram ao redor de uma velha televisão preto & branco. Autorista [auteurist]1 de longa data, imaginei que clássico obscuro comandava suas atenções. Acabou que era uma exibição diária de desenhos animados de Hollywood dos anos 40 e 50 – todos tentavam adivinhar os diretores. Lembro de pensar: “Isso é levar autorismo longe demais”.

Mas no ano seguinte fui convertido por uma das pessoas presentes, Greg Ford, que fez a curadoria de uma série de desenhos animados no já extinto New York Cultural Center, com programações inteiras dedicadas a desenhos dirigidos por Chuck Jones, Tex Avery, Frank Tashlin, dentre outros. Desde então, essa série entrou para os livros de História da animação como a primeira apresentação auterista de desenhos animados, e agora Marty Rubin – que patrocinou a série original de Ford e é atualmente diretor associado do Gene Siskel Film Center – novamente colaborou com Ford para apresentar oito programas de desenhos animados de Chuck Jones ao longo de oito dias, começando dia 2 de março. A maioria são cópias de estúdios ou colecionadores raramente exibidas, então essa pode ser a chance única de poder assistir num cinema a boas cópias dessas alegres, por vezes hilárias, joias cinematográficas, da maneira como foram feitas para serem vistas. Apesar de Jones ser mais conhecido por criar Papa-Léguas e por ajudar a definir Pernalonga, Patolino, e outros personagens, seus desenhos com criaturas menos conhecidas (muitos dos quais estão incluídos na programação) são tão gloriosos quanto.

Em tempos recentes, a Warner Brothers passou a capitalizar sobre o trabalho criado por Jones e outros, vendendo acetatos de animação2 e outros produtos, além de licenciar o uso dos personagens para comerciais. Jones, ainda firme e forte aos 88 anos 3, faz o mesmo em www.chuckjones.com, que também possui uma filmografia completa. Os desenhos podem ser vistos na televisão, mas muito se perde assim. A arte de Jones depende de estabelecer e depois perturbar tempo e ritmo – você deve ser comovido pelo poder ilusionístico da situação dada. Quando as geringonças do Coiote desabam sobre ele, o impacto do acontecimento depende do estabelecimento de sua presença física, uma ilusão prejudicada pelo vídeo. E é possível argumentar que as linhas do vídeo alteram mais as cores sólidas e saturadas dos desenhos animados do que as texturas da face humana.

O grande tema de Jones é controle: as pelejas de seus personagens uns contra os outros, contra o ambiente ao seu redor, e contra si mesmos. Seus desenhos animados são comoventes em parte porque ele cria personalidades reais; Jones reune mais complexidade psicológica em seis minutos do que muitos diretores de hoje transmitem em duas horas de explosões. Seus personagens experienciam dor, duvidam de si mesmos e possuem sonhos. Às vezes eles enlouquecem ou são levados ao suicídio. Criando expressões faciais radicalmente diferentes em rápida sucessão, Jones não apenas mostra um personagem perdendo o controle das circunstâncias como sugere uma vida interior dividida.

Nascido em Spokane, Jones iniciou a carreira nos anos 1930, ajudando a criar acetatos de animação. Seus primeiros desenhos enquanto diretor, começando em 1938, mostravam uma influência de Disney, mas logo divergiram dessa estética; de fato, muito do que a Warner Brothers produziu parece intencionalmente oposto aos desenhos suaves, açucarados e sanitizados da Disney, nos quais a norma são personagens bonitinhos e fofos. O desenhos de Jones são cheios de quebras intensas, transições abruptas, contradições desconcertantes; sua aparência, sensação e espaço são tão irregulares e esfarrapados quanto os pelos do coiote logo depois de ter sido chamuscado por uma de suas próprias explosões. No mundo pertubado de Jones, personagens são menos passíveis de ter seus conflitos resolvidos do que terminar num “Hospital Psicopático”.

A maioria dos defensores de Jones argumentam que esses desenhos animados se adequam aos sofisticados gostos dos adultos, mas creio que algo se perde ao não levar em conta o público-alvo original: crianças. Aqueles momentos que desafiam a gravidade, quando um personagem se lança para fora de um penhasco, percebe que está no ar e se espatifa no chão, podem ser associado às tentativas de uma criança de reconciliar as fantasias de voar com a descoberta dos limites físicos. A forma com que os personagens se esforçam para dominar seus arredores, com suas táticas que frequentemente saem pela culatra, reflete os primeiros tropeços de uma criança; controle e sua perda espelham as tentativas de uma criança de afirmar sua autonomia em face a pais aparentemente onipotentes.

Assistir a uma obra-prima de Jones simultaneamente evoca a experiência infantil da risada incontrolável (dado o ritmo acelerado das piadas) e põe em xeque a solidez e estabilidade do mundo, uma vez que o chão parece literalmente se deslocar sob você. Em geral, Jones brinca com a ilusão, fazendo referências à produção cinematográfica, que podem variar do mundano em Beanstalk Bunny (1955), Patolino diz para o pé de feijão: “É melhor eu deixar de moleza e escalar esse troço senão não teremos filme algum” até o inventório virtual de técnicas de animação em Duck Amuck (1953).

Jones às vezes expressa o tema do controle na linguagem de seus desenhos animados. Em Rabbit Seasoning (1952), Pernalonga confunde as tentativas de Patolino de convencer o caçador Hortelino Troca-Letras de que na verdade é temporada de caça ao coelho, até Patolino acabar gritando “Atire em mim!”, uma exortação que Patolino mais tarde diagnostica como “problemas pronominais”. Mas o mais frequente é Jones realizar o tema do controle através de rupturas espaciais, ritmos dessincronizados ou super-sincronizados, e alterações no sistema representacional do desenho animado, dispositivos frequentemente presentes numa mesma obra, apesar de um ou outro poder ser dominante. Todos dependem de um tempismo preciso [precise timing]4 para nos surpreender: as explosões de Jones sempre parecem surgir um pouco cedo ou um pouco tarde. Na primeira queda do Coiote em Fast and Furry-ous (1949), ele cai fora do quadro enquanto olhamos o céu azul estático. Na segunda, Jones corta de maneira ainda mais perturbadora de uma tomada ao nível dos olhos do Coiote, em seus skis motorizados por um refrigerador, para uma visão de cima para baixo de um canyon espetacularmente profundo.

Fotograma de Rabbit Seasoning (1952), Patolino depois de levar um tiro de Hortelino.
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)

Mouse Wreckers (1949) é um grande exemplo de alterações no espaço. Dois camundongos procurando um novo lar decidem levar o gato residente, o qual ganhou um punhado de troféus de “Melhor Caça-Ratos”, à loucura. Depois de arrastar o gato por um cano de escoamento, a última travessura deles é pregar toda a mobília no teto enquanto o gato dorme, exceto uma lâmpada de teto, que pregam no chão. O gato acorda e, aterrorizado com esse mundo às avessas, tenta se agarrar ao tapete no teto. Primeiro, nós o vemos de cabeça para baixo, mas em seguida o enquadramento rotaciona e nós o vemos de cabeça para cima – o que torna o corte para uma tomada de cabeça para cima no quarto ao lado, onde a mobília está no teto, ainda mais desorientador. Incapaz de processar a mudança, o gato agarra a lâmpada de teto, daí olha por uma janela e vê que a paisagem está ao avesso; um corte revela que os camundongos colocaram uma foto invertida lá. Através de outra janela, a paisagem está de lado, e a visão de uma terceira faz parecer que a casa está submersa. O gato foge aterrorizado de sua casa e é visto pela última vez encolhido e de olhos esbugalhados no topo de uma árvore.

Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)

Long-Haired Hare (1949) é uma das várias excelentes animações musicais de Jones, nas quais a sincronização entre música e ação é bizarramente exagerada, ao contrário da pretensa imperceptibilidade da Disney. Pernalonga começa a cantar alegremente, acompanhando a si mesmo no banjo, “What do they do on a rainy night in Rio?”. Ele é ouvido de uma casa próxima por um cantor de ópera que ensaia, Giovanni Jones, o qual se irrita ao ver a si mesmo por acaso cantando “What do they do in Mississippi/ When skies are drippy?”. Ele sai de casa e quebra o banjo na cabeça de Pernalonga.

Pernalonga é mais tarde visto no topo da concha acústica onde Giovanni Jones está cantando. Acertando o telhado com uma marreta, Pernalonga causa reverberações que fazem Giovanni ricochetear através do palco. Na sequência final, Pernalonga aparece com uma peruca branca e vestindo um traje para concertos, sendo reconhecido pelos músicos como “Leopold”. Quebrando em dois o bastão de maestro, Pernalonga passa a controlar completamente tanto orquestra quanto cantor com suas mãos, cujas posições e movimentos se correlacionam exatamente com o tom e ritmo da música: o condutor como ditador e diretor de cinema (tal qual os camundongos em Mouse Wreckers). Pernalonga quase mata seu cantor: tirando sua mão da luva, ele a põe para o alto no ar e sai andando enquanto Giovanni muda de cores variadas ao tentar manter a nota aguda, eventualmente levando a concha acústica ao chão.

Giovanni Jones, em Long-Haired Hare (1949) sendo ricocheteado pelas vibrações causadas pelas marretadas de Pernalonga na concha acústica.

 

Pernalonga sendo reconhecido como “Leopold” pela orquestra em Long-Haired Hare (1949)
A luva de “Leopold” permanece no ar, Long-Haired Hare (1949)
Giovanni Jones chega a mudar de cor e perder as roupas tentando manter a nota aguda enquanto a concha acústica desaba. Long-Haired Hare (1949)

Os melhores desenhos animados de Jones são auto-referenciais, rompendo com seus próprios sistemas representacionais e lembrando seu espectador dos artifícios da animação novamente ao contrário de Disney. É frequente que isso ocorra em prol de um tema social, coisa que poucos críticos além de Ford já mencionaram. A velocidade impossivelmente rápida de Papa-Léguas sugere o borrão de um automóvel passando por um pedestre seu “bip” até soa como a buzina de um carro o que dá matizes ecológicos aos fracassos sísifos do Coiote. E em uma de suas séries menos conhecidas, um lobo e um cão pastor que estão para lutar até a morte batem cartão. (Os chefes da Warner Brothers eram notórios por não apreciar os esforços de seus animadores; é dito que Jack Warner pensava que a companhia produzia desenhos do Mickey Mouse.)

Duck Amuck não é apenas a obra-prima de Jones mas uma das obras-primas definitivas da arte do cinema, explorando o processo de animação com uma profundidade digna das meditações sobre a produção cinematográfica em O Homem com a Câmera (1929), de Dziga Vertov, e em Blue Moses (1963), de Stan Brakhage. No começo, Patolino aparece vestindo um elaborado figurino de filme de época com um castelo ao fundo, pronto para um duelo de espadas. Mas enquanto a câmera o segue se movimentando para a esquerda, a cor desaparece do plano de fundo, deixando apenas as linhas do desenho, depois apenas o branco. Ao ver isso, Patolino passa a ralhar com um diretor que não vemos um monólogo que constitui a maior parte da conversa. Providenciado com o plano de fundo de uma fazenda, Patolino precisa trocar de figurino, quando o plano de fundo se torna de gelo, precisa trocar novamente. Apagado completamente, ele exige ser redesenhado. Redesenhado com um violão, ele não tem som. Exigindo som, ele toca o violão que acaba soando como uma metralhadora o primeiro de vários sons “errados” tão impressionantemente contraditórios quantos os do filme de vanguarda Unsere Afrikareise (1966), de Peter Kubelka. Os primeiros dois terços de Duck Amuck possuem a aparência de uma tomada única, servindo de pano de fundo para Jones realizar tomadas longas, close-ups e linhas de enquadramento errantes. Enfim, o exasperado Patolino exige ver o diretor ponto em que a câmera se afasta de um caderno de desenhos para revelar o eterno antagonista de Patolino.

Fotograma de Duck Amuck: Patolino vestido de fazendeiro reclama da falta de consistência do diretor/animador que não para de trocar o cenário do desenho animado.

 

Fotograma de Duck Amuck: Patolino, depois de ser apagado e redesenhado, tem seu som tirado pelo diretor.

Fotograma de Duck Amuck
Fotograma de Duck Amuck

Filmes cujas narrativas são possíveis metáforas para o fazer cinematográfico, como Napoleão (1927), de Gance, e Um Corpo que Cai (1958), de Hitchcock, tratam sobre os esforços de artistas em controlar o mundo. Identificando o sadismo do cineasta em Duck Amuck, Jones explicita algo implícito em muitas outras de suas animações: que há genuíno prazer nessas fantasias infantis de dominação e submissão. Apesar de seus desenhos terem sido criticados por sua violência – que é claramente proibida para menores nos parâmetros de hoje -, essa crítica me parece absurda. Qualquer criança consegue ver Jones desmascarando ilusões e sabe que suas criaturas maleáveis estão encenando fantasias de onipotência, não realizando-as.

NOTAS:
  1. À sugestão de Lucas Almeida, segui o exemplo da tradução de Fernando Mascarello de Introdução à teoria do cinema, de Robert Stam. Como diz Mascarello numa nota do capítulo “Culto ao autor”, do livro de Stam: “Adotamos ‘autorismo’, um neologismo de uso infrequente em português, e não ‘política dos autores’ ou ‘teoria do autor’, porque o sentido com que Robert Stam [como Fred Camper] utiliza o termo auteurism no original em inglês abarca tanto essas duas noções (a primeira crítica, a segunda teórica […]), como o aspecto cinefílico do culto ao autor nos anos 50 e 60 [e 70].”) (Campinas, SP: Papirus, 2003) ^
  2. Cell animation ou animação sobre acetatos: também conhecida como animação manual. Processo essencial para animação do período clássico – localizável desde a segunda metade da década de 1930 e ao longo da década de 1940 -, desenvolvido por Earl Hurd e John Bray em 1915. Define-se através do suporte utilizado: acetatos, celuloides ou cells, lâminas de plástico transparente em cima dos quais se desenha ou se situam as figuras que se deseja animar. Uma cena pode conter várias camadas de acetatos superpostas. […] Seu êxito reside no fato de permitir que uma parte de cada composição seja repetida quadro a quadro, com o que se economiza tempo e mão de obra, encurtando o período de produção, ou seja, possibilita não ter que desenhar toda a cena, incluindo os elementos imóveis (como fundos ou personagens estáticos) cada vez que se cria um novo quadro.” (REYES, Dean Luis. A forma realizada: o cinema de animação (tradutor Sávio Leite), BH: Pimenta Filmes e Edições, 2020) ^
  3. O texto de Camper é de 2001, um ano antes do falecimento de Jones, aos 89 anos.^
  4. Timing“, segundo Dean Luis Reyes (traduzido por Sávio Leite), “Refere-se à velocidade com que se executa uma ação na animação e a particular economia de ritmo e de pausa na execução do movimento. Trata-se de um dos aspectos decisivos do caráter final da peça de animação, pois supõe não somente a administração da dinâmica física, da percepção da massa, o peso e a escultura de um objeto, mas também a dosagem da manifestação do universo afetivo e emocional do personagem animado. Isso define, por exemplo, a quantidade de quadros necessários entre ações” (REYES, 2020). Dada a dificuldade de traduzir “timing“, cogitei criar um neologismo, como “momentagem”, mas acabei optando por “tempismo”, termo italiano que se aproxima do original, ao mesmo tempo que soa familiar a ouvidos acostumados ao português, na prática funcionando como um neologismo, mesmo.^

Uma leitura de “O Experimental no Cinema Nacional”, de Julio Bressane – por Eduardo Savella

Uma leitura de “O Experimental no Cinema Nacional”, de Julio Bressane 1

por Eduardo Savella

Sedução da Carne é um filme em duas partes, ou melhor, três. As duas primeiras são filmagens ao ar livre, a primeira em Sils Maria, na Suíça, a segunda no litoral de um país difícil de identificar, mas provavelmente árabe. A terceira é feita principalmente em estúdio com a atriz Mariana Lima, um papagaio e um prato de carne crua. Estas três partes não são completamente independentes: os corvos da segunda retornam ao final da terceira, produzindo uma significação difusa, difícil de agarrar.

Na primeira parte, a câmera procura o formato do “Rochedo” de Surlej, ou a pedra de Nietzsche, multiplicado na forma da casca de uma árvore ou nas montanhas alpinas. O que é a ponta de uma micromontanha que copia a grande? Como a casca da árvore repete a montanha e vice-versa? Como o Brasil está em Surlej? Na segunda parte, a câmera do cineasta que filma os pescadores é completamente livre. Ele a coloca em cima do cabo que puxam para recolher a rede. Contraste entre o trabalho manual e o olho da câmera autônoma.

Sedução da Carne é, até hoje, um filme diferente da ideia usual de filme. Podemos dizer que este é um filme “de invenção”, retomando uma concepção de outro tempo. Mais ainda, é possível ligar os procedimentos deste filme com algumas obras do cinema silencioso. Algumas delas, inclusive, comentadas pelo próprio Bressane no ensaio que vamos acompanhar.

Estas notas têm dois temas. O primeiro é histórico: o começo do cinema brasileiro, ou seja, o cinema brasileiro durante o período silencioso, que vai da invenção do cinema no final do século XIX até a introdução do som, no final dos anos vinte. A ênfase é no filme documental (“natural”) – em oposição ao filme ficcional (“posado”, ou “de enredo”) – menos estudado mas, como diz Paulo Emílio no ensaio “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930)”,

Encerrado o ciclo primitivo do cinema brasileiro, a nossa ignorância tem, diante dos anos que vêm logo depois, a sensação de um vazio total, tanto mais surpreendente que sabemos que durante esse tempo — mais ou menos uma década — o filme de enredo foi raro e a continuidade do cinema brasileiro assegurada quase exclusivamente pelo documental.

A partir do centenário de nossa independência política até o fim do cinema mudo, sabemos muito mais, de forma porém muito pouco satisfatória. Com efeito, nosso conhecimento do documental brasileiro entre a Exposição de 1922 — este ano crucial — e a Revolução de 30 é um subproduto de trabalhos que têm como objetivo o filme de enredo.

É dentro desses limites drásticos que vou me aventurar a sugerir a importância do filme documental brasileiro mudo como registro sociocultural e matéria-prima para eventuais interpretações.

O segundo tema é a noção de “cinema de invenção”, utilizada pelo crítico Jairo Ferreira como sinônimo de cinema experimental no livro Cinema de Invenção, a respeito de certos cineastas brasileiros que filmaram entre os anos 60 e os anos 80, e dos quais Julio Bressane é um dos primeiros exemplos.

No ensaio “O Experimental no Cinema Nacional”, que Bressane publicou em 1996 no livro Alguns, pela editora Imago, esses dois temas se encontram reunidos. Bressane puxa o fio historiográfico do cinema brasileiro, desde o primeiro filme rodado aqui, defendendo a ideia de que o que de melhor foi feito no Brasil pode ser caracterizado como “experimental” e, mais ainda, que a natureza do filme brasileiro é ser experimental. Isso pode ser inferido, por exemplo, na frase do ensaio: “Noto que nosso cinema ou é experimental ou não é coisa alguma!”.

O que significa dizer que um filme é “experimental”?

“Júlio Bressane, Batuque dos Astros”, capítulo sobre Bressane no livro de Jairo, Cinema de Invenção. A epígrafe é do Padre Antonio Vieira:

Os erros e as ignorâncias é certo que são muitos mais que as ciências porque para saber e acertar não há mais que um caminho e para errar infinitos.

O verbo errar também significa “caminhar sem rumo”. Porém, quem caminha sem rumo é porque procura alguma coisa.

Jairo Ferreira, na introdução de Cinema de Invenção, cita um longo trecho de um discurso de Orson Welles que sintetiza o que quer dizer a atitude experimental no cinema:

É demasiado tarde para os sistemas. Não vivemos à beira do abismo, mas no seu ponto mais profundo, e nenhuma crença ou uma filosofia pode tocar as almas que respiram ainda sob os escombros. Que é um sistema? O sistema segue as mensagens dos profetas, os exemplos dos santos, os ensinamentos dos legisladores, as descobertas dos filósofos e dos sábios. E é a ele que seguimos por nossa vez, em vez dos homens que lhe deram origem; nem isso: não seguimos um sistema, conformamo-nos com ele. Devemos procurar não a força no comando ou a disciplina nas fileiras, mas o maior número possível de seres humanos. Defendamo-nos antes que qualquer defesa seja impossível, passemos à ofensiva antes de perdermos para sempre os únicos valores pelos quais ainda vale a pena batermo-nos.

E por que vale a pena batermo-nos? Uma bandeira? Uma classe? Uma ideia? Um sistema? Não, pelo homem, com a sua variedade e a sua complexidade, a sua ausência de limites. Não se trata de niilismo nem de anarquia, mas de uma catolicidade de aproximação, uma integridade da pessoa humana.

A única coisa por que vale a pena batermo-nos é a que é quase impossível defender; o simples direito de escolha, o dever sagrado da iniciativa.

Não é o peso da sabedoria humana que nos oprime, mas o dos sistemas. Devemos nos libertar dos sistemas e concentrar todos os nossos esforços a estudar-lhes as origens; a estudar a verdade e a beleza de onde os sistemas tiram a sua maligna eficácia.

Não há que procurar uma forma qualquer de salvação. Há que despertar perante o fato de que tudo o que vale a pena nos espera ainda.

A distinção que Welles faz aqui é entre experimento e sistema. Ou seja, todo sistema nasce de uma experimentação. A época “de escombros”, indicada por Welles, ou seja, a nossa, a da modernidade, exige experimentação constante.

Exemplo: todo bebê é um ser experimental. A primeira vez que um bebê chora, ele está realizando um experimento. Depois de apreender o resultado do experimento, ele o eleva a sistema: na maior parte das vezes em que chorar, será socorrido pela mãe. O sistema perdura assim durante toda a infância, até ser substituído por outro.

Se tomarmos experimento como sinônimo de invenção, toda obra de arte tem uma parte de sistema e uma parte de invenção. Um filme da Pixar como Luca, por exemplo, apresenta uma série de procedimentos codificados num sistema: lugares-comuns narrativos, técnicas de animação aperfeiçoadas pelo estúdio, gags feitas a partir da reutilização de muitas outras já experimentadas e sistematizadas no gênero da animação. Isso não quer dizer que o filme seja desprovido de invenção. Talvez a própria ideia de fazer um semi – coming of age com monstros marinhos que são ao mesmo tempo habitantes de uma vila italiana constitua um ato de invenção. A diferença está na ênfase. O cinema de invenção enfatiza ou procura o extremo da experimentação, da busca pelo novo e pelo original, ou então da busca pela forma que pouco deve a um sistema, pois a situação que ela deve cristalizar também não tem precedentes. Toda obra de arte precisa da invenção. Como diz Viktor Chklovski num ensaio famoso, “A arte como procedimento”, o procedimento fundamental da arte é o do estranhamento, ou seja, o de representar o mundo de modo que o percebamos como se o estivéssemos vendo pela primeira vez. A obtenção deste efeito só é possível se houver uma margem de invenção dentro dos sistemas utilizados pela obra de arte particular. A ênfase característica do cinema experimental está expressa na atitude de invenção que Bressane enfatiza quando diz, citado por Jairo: “poesia é um chegar ao estado de invenção permanente”.

Essa percepção da originalidade está intimamente ligada ao aspecto transitório da modernidade. Como diz Paulo Emílio no ensaio “Revolução, cinema e amor”:

Em revolução, cinema ou amor, a apreensão de conhecimentos, para agir e julgar, se processa num esquema dialético anárquico que torna rapidamente irrisórios o planejamento e as intenções. Nas ciências da natureza e nas artes da engenharia tudo se passa realmente como se houvesse uma coincidência feliz entre as normas da razão humana e o funcionamento da realidade. Nos domínios cobertos pelas chamadas ciências do homem e pelas artes do prazer, a necessidade de ininterrupta invenção modifica a natureza da sua intimidade entre o sujeito conhecedor e o objeto de seu conhecimento.

Ou seja, o terreno humano, diferente do físico ou natural, se transforma constantemente, e mais ainda desde a revolução industrial. Os sistemas, na arte, não podem durar muito sem se tornar datados e inoperantes. Daí a necessidade de contínua invenção e a valorização da originalidade perante a reutilização de modelos, desde o romantismo. Ou seja, a transformação permanente do mundo humano exige invenção permanente da representação artística. Lembrar, no entanto, que o funcionamento da ciência não é tão estável como aponta Paulo Emílio no trecho, além de que só existe através de seu método experimental (Daniel lembra contraste com “O Romance Experimental”, 1880, de Èmile Zola).

A invenção é o momento de nascimento de sistemas futuros. É o broto que se molda diante da posição do Sol, é a tabula rasa, é o não-sistema, é a descoberta. Exatamente como Oswald de Andrade escreveu no “Manifesto da Poesia Pau Brasil”:

A invenção

A surpresa

Uma nova perspectiva

Uma nova escala.

E, depois:

[sejamos] Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem antologia.

Nesse sentido, é claro que o primeiro filme seria necessariamente um filme experimental ou de invenção. Tudo o que foi feito nos princípios do cinema é invenção, pois não havia sistema. Daí o encanto absoluto de todos os filmes dos primeiros anos do cinema. O sistema técnico ainda precisava se estabilizar (as técnicas eram múltiplas “invenções”, depois sintetizadas num único aparato), o sistema de procedimentos artísticos, de representação, adotou numerosos sistemas que vem e vão ao longo de toda a história do cinema.

O primeiro filme rodado no Brasil foi um conjunto de vistas da Baía da Guanabara, feitas a partir do transatlântico francês Brèsil. Segundo Paulo Emílio, no ensaio “Panorama do cinema brasileiro: 1896-1966”,

Eram os Segreto um grupo de irmãos imigrados da Itália, em épocas diversas, e no momento que nos ocupa vamos encontrar quatro deles no Rio: Gaetano, Afonso e Luís, além de Pascoal. É de se presumir que Gaetano devia ser o mais velho: não traduziu o nome e já constituíra família. Tinha um serviço de distribuição de jornais e participava igualmente das atividades do Salão. Pascoal devia andar pelos trinta anos e os dois outros irmãos, certamente mais jovens, trabalhavam para ele. Moravam todos nos andares superiores do salão de diversões da rua do Ouvidor.

Em 1898, voltando ele [Afonso] de uma das suas viagens, tirou algumas vistas da baía de Guanabara com a câmera de filmar que comprara em Paris. Nesse dia — domingo, 19 de junho —, a bordo do paquete francês Brésil, nasceu o cinema brasileiro. Daí por diante, sucedem-se as filmagens. Dia 29, Afonso registrou o cortejo que conduziu ao cemitério os despojos de Floriano Peixoto e, no dia 15 de julho, o desembarque de Prudente de Morais e comitiva no Arsenal de Marinha. Os pontos importantes da cidade foram focalizados: o largo do Machado, a praia de Santa Luzia, a igreja da Candelária, o largo de São Francisco de Paula… A rua do Ouvidor, apesar de sua importância, era estreita e demasiado sombreada para se prestar a filmagens que exigiam luz natural.

Ainda segundo Paulo Emílio, não há registro de quando essas vistas brasileiras foram exibidas. No mesmo ano houve um incêndio no estabelecimento dos irmãos Segreto, após o qual foi reaberto e a “a exibição de filmagens de assuntos brasileiros tornou-se então habitual.”

Um parêntese: Jean-Claude Bernardet, em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro, em que discute as atitudes historiográficas de Paulo Emílio e Alex Viany, esclarece que as informações sobre os irmãos Segreto só foram historicamente individuadas depois do livro clássico de Viany (por isso não há menção a eles no clássico). Segundo: Bernardet duvida da existência dessas primeiras filmagens de Afonso. Seu argumento é a de que a técnica era novíssima e Afonso experimentava o equipamento, a luz tropical é diferente da europeia, não há registros da exibição, etc. A dimensão “experimental” do filme de Afonso é colocada de modo mais trivial por Bernardet:

Este seria o primeiro filme filmado no Brasil, portanto também o primeiro revelado: havia conhecimentos e práticas suficientes em relação ao banho e ao tempo de revelação? Sendo uma primeira revelação, não podia deixar de ter algo de experimental.

De todo modo, esse argumento evidencia ainda mais a significação mítica desses primeiros filmes, que se transformam em ideia pura. É através desta abstração que Bressane introduz Segreto em seu ensaio, “O Experimental no cinema nacional”, sem nunca, naturalmente, ter visto os filmes.

Aliás, esse marco de nascimento é o de uma filmagem, não o de uma exibição, como ressalta Bernardet. As exibições de filmes estrangeiros já aconteciam no país antes de 1898. O estudo básico dessa primeira época do cinema brasileiro, ao qual faz referência Paulo Emílio, é o livro esgotado A Bela Época do Cinema Brasileiro de Vicente de Paula Araújo. Flora Süssekind, por sua vez, em Cinematógrafo de Letras, explica os efeitos na literatura brasileira causados pela chegada das técnicas modernas oriundas do século XIX (telégrafo, telefone, máquina de escrever), entre elas o cinema. Nesse livro há várias descrições do início da recepção do cinema no país.

Afonso Segreto filmou “a entrada da Baía de Guanabara com seus fortes portugueses e megalitos lendários”, como escreve Bressane.

A câmera estava em movimento e oscilava, visto se encontrar num navio. Bressane chama de megalitos as formações rochosas características do relevo carioca, relacionando-os assim com a permanência pré-histórica da paisagem (megalitos são rochas dispostas em tempos pré-históricos pelo homem).

O Pão de Açúcar e o Corcovado são, metaforicamente, “megalitos lendários”, assim como o rochedo de Surlej.

A paisagem sensual e insólita dos morros do Rio de Janeiro chamam a atenção para o mistério, são estranhas em si e remetem ao Rio de Janeiro antes da chegada dos portugueses.

Assim, na primeira filmagem brasileira estão presentes figurações míticas da história e da pré-história do país. O filme incorpora as condições de sua produção: estar sobre um navio fornece o elemento da mobilidade da câmera (travelling). As formas expressivas dos morros fornecem as linhas parabólicas registradas no filme. “O Pão de Açúcar era um teorema geométrico”, anota João Miramar no romance de Oswald de Andrade (1924). Segreto modela seu filme conforme o que dispõe, descobre o filme, sem apoio de sistemas (justamente porque não havia ainda nenhum). Tudo é descoberta nos primeiros anos do cinema.

Para Bressane, esse primeiro filme é “esboço do signo” do cinema brasileiro. Signo aqui é macrossigno, esquemático: aquela imagem sintética que nasce na mente na medida em que conhecemos melhor os elementos em separado, ou seja, os filmes.

O senso de invenção, segundo Bressane, também se encontra nos filmes (muitos perdidos, outros não) do Major Luiz Thomaz Reis, cineasta que acompanhava o Marechal Cândido Rondon nas numerosas expedições que fez ao redor do território brasileiro, em especial na Amazônia. O filme mais antigo de Reis catalogado na Cinemateca Brasileira se chama Os Sertões de Mato Grosso e vem com data de 1912-13, e não consta como perdido. O filme Rituais e festas Bororô, de 1916, é mais famoso e uma cópia terrível está espalhada virtualmente.

Ao Redor do Brasil, de 1932, reúne filmagens suas de várias expedições em lugares diversos do país, de afluentes do Xingu (seguindo os passos do explorador inglês Percy Fawcett) à inspeção de diversos pontos da fronteira.

O tipo de filme feito por Reis nessas expedições é o documental, comentado por Paulo Emílio como sendo a vertente pouco estudada – ou preservada – do cinema silencioso brasileiro. A função da produção documental é antes referencial: os “filmes de atualidades” davam a ver uma realidade reconstituída do país nas salas de cinema. Aqui se encontra a fascinação genética do cinema pela reprodução da imagem em movimento e sua capacidade de transportar o espectador para lugares distantes, através do maravilhamento que a própria realidade produz. Nesse tipo de filme, a ficção e mesmo a narrativa têm seus papéis minimizados (em comparação ao filme de enredo) em favor do registro eficaz na representação de elementos da realidade selecionados de modo pragmático, com o intuito da sedução. À ficção às vezes prevalece o caráter discursivo sobre a realidade. À narrativa, estruturas mais livres como a justaposição de episódios ou pequenas sequências em torno de núcleos espaço-temporais definidos por cartelas. O filme documental realça sua função de documento no sentido histórico ou retórico, em detrimento de sua função poética. Esta, é claro, está sempre presente: a feitura do documento só se dá através de procedimentos estéticos. A diferença está na ênfase, nos resultados e na função dada ao trabalho estético.

Reis parece ter se lamentado do pouco tempo que tinha para planejar seus filmes, ou seja, lhes dar uma estrutura, desenvolver seus procedimentos, ou mesmo aplicar sistemas ao filme. Imagine-se que, numa outra estrutura de produção, Reis teria seguido o caminho de documentaristas como Robert Flaherty ou Humberto Mauro, que se utilizam da reconstituição, da estruturação sofisticada da narrativa e de outros procedimentos que transfiguram a realidade sem, no entanto, quebrar o elo documentário com a mesma (este elo mesmo, necessariamente baseado em convenções que se transformam com o tempo).

“Operador cuidadoso”, “composições que combinam rigor e improviso”, “Uma luz apreendida com grande domínio técnico e originalidade”, é como caracteriza Bressane a técnica de Reis. Bressane enfatiza aqui, justamente, a técnica do fotógrafo que lida mais diretamente com a vida, ou seja, com mediação apenas suficiente no eixo imaginação – fato.

Como registrar com o olho da câmera o povo brasileiro, encontrando-se com ele pela primeira vez, na franqueza da improvisação e de modo a construir, ou comunicar, as impressões do encontro de forma clara para o espectador?

A invenção aqui, novamente, está na experiência da primeira vez: assim como Segreto, Reis ataca com a câmera a realidade sem conceber sistema, mas moldando através de sua técnica um filme que não está em sua mente antes da viagem.

Assim, como experimento do cinema sendo “revelado nas águas da própria selva”, Reis também registra assuntos míticos brasileiros, relacionados à história do Brasil antes do Brasil. Bressane fala da Visão do Paraíso, livro de Sérgio Buarque de Holanda sobre o mito do novo mundo na visão de portugueses e espanhóis.

Em outras palavras, o cineasta de invenção não começa com uma ideia de cinema, mas a encontra durante a criação. Ou seja, encontra formas novas. No caso do documental tal como praticado por Reis, é um protótipo de intérprete da realidade e da experiência com estrutura livre. Aliás, também o cineasta português Silvino Santos realizou filmes na amazônia, muito populares na época, contemporaneamente a Reis: No País das Amazonas, No Rastro de Eldorado.

“Deixar de escrever dentro de templos, começar a escrever dentro de laboratórios”, diz Mário Faustino, como bem lembra Antena. “Justamente, o olhar da criança”.

Outro caso análogo é o do cineasta Benjamin Abrahão Botto, que acompanhou com a câmera o bando de Lampião. Antes, Abrahão tinha sido secretário de Padre Cícero. Diferente do equilíbrio de Reis, o filme de Botto, segundo Bressane, tem “luz solarizada, estourada, sem rígido controle, irregular, com uma câmera de corda na mão, brutalista, criou uma poderosa imagem-dejeto, bárbara (…). Uma imagem-canudos”.

Assunto das imagens: elementos míticos em Reis e Botto. Lampião já era mito em vida (como aponta Zé), antes de iniciar a tradição do filme de cangaço. “Imagem-canudos” quer dizer imagem de resistência frente à civilização europeia. A comparação entre o bando de Lampião e a pacificidade dos índios de Ao Redor do Brasil sugere a hipótese (levantada pelo Oscar) de que os procedimentos do filme de Reis seriam muito diferentes, talvez mais próximos aos do filme de Lampião, caso o encontro a ser filmado fosse com uma tribo hostil à invasão.

Com o bando de Lampião há o desafio marcado. O encontro entre cineasta e assunto não é “legal”, no sentido jurídico, como foram as expedições de Rondon. Nem é desprovida de risco ao cineasta. Trata-se de encontrar os criminosos tachados pela civilização. O governo quer exterminar os cangaceiros, assim como fez com Canudos. As imagens de Botto estão carregadas de antagonismo e desafio. São misteriosas também porque o destino, selado pela sociedade, de sujeito e objeto parecem se materializar no próprio filme. São “imagens perturbadoras” (Bressane), “filme de terror” (Felipe).

Não é possível analisar a estrutura do filme planejado por Botto, já que a versão que temos é uma reedição de fragmentos de seu material que sobreviveram à apreensão do filme pelo Estado Novo, edição feita quase vinte anos depois da morte do cineasta. Contém vestígios de encenação narrativa, como nas tomadas em que os cangaceiros encenam um confronto. Há outra cena em que todo o grupo está sentado ao redor de um cartaz de publicidade de Aspirina. As cenas, porém, na reconstituição que existe, não se completam e se dissolvem em fragmentos da vida em comum do grupo. É recorrente o aspecto do retrato, como no filme de Reis. Aqui, recorre a aproximação espacial da personagem em relação à câmera. Botto, que parece não se referir a nenhum sistema de representação anterior, usa a câmera como se ela tivesse acabado de ser inventada, qualidade raríssima que define o cinema de invenção. É o caso do seguinte procedimento, que se repete com alguns personagens, especialmente com Lampião: a figura se aproxima da câmera até que o quadro recorta o sorriso ampliado. Depois a câmera se levanta e mostra o rosto inteiro, amigável, que conversa como se a tomada fosse um ensaio para a verdadeira cena. Lampião nunca cabe no quadro (como apontou Nino), é maior que Botto, bigger than life. Junto com a aproximação do rosto de Lampião, a outra aproximação mais expressiva do filme é a em que Dadá (obrigado ao Elvis pelo reconhecimento da dita cuja) aponta de brincadeira uma arma para a objetiva de Botto. Isto reflete a integração de equilibrista sem rede do cineasta no grupo. Home movie com roleta, fragmento, variação. Caso modelar de adequação da forma ao assunto, dever de todo cineasta.

Sermões (filme, O Encoberto); Sertões (livro, Antonio Conselheiro). Trechos do filme de Botto são utilizados por Bressane em Sermões, a história de Antonio Vieira, numa interpolação entre Lampião e a profecia do retorno do Encoberto pelo grande orador, aliás, interpretado por Othon Bastos, que sobrepõe a tudo sua interpretação antológica do cangaceiro Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol, efetivamente citado por Bastos e Bressane no ímpeto de um giro de braços abertos.

“O Major Reis e Abraão Jacó formam um eixo de onde sai e por onde passa tudo que presta no nosso cinema”. Bressane estabelece esse eixo sem Limite, sem Humberto Mauro. Mas, sim, entre dois aventureiros que enfrentam o risco de territórios inexplorados para obter imagens do povo em oposição (cangaceira ou não) ao país civilizado. Aqui, o documental se adensa para registrar “O Brasil Encoberto”, título de outro ensaio de Bressane (presente no volume Cinemancia), no qual escreve: “Não, não pode ser, não é o Brasil apenas esta descomedida usura brutalista, pródiga na produção de riqueza e avara na distribuição dela…”.

Limite é um filme excêntrico. Feito por Mário Peixoto quando muito jovem, a partir de seu contato com a vanguarda cinematográfica francesa, com pouca ou nenhuma referência ao cinema brasileiro feito até então. Limite, segundo Bressane, se refere a essa vanguarda, tem um nível paródico no sentido original do termo: o de diálogo ou resposta. Limite é o filme que demonstra a consciência dos procedimentos estéticos tomando-os como próprio assunto de um filme com tema esvaziado. Com Limite, retornamos a Sedução da Carne. Nas palavras de Bressane:

A câmera na mão sempre foi a mais perturbadora posição de câmera na “coisa” do filme, muito usada desde o nascimento do cinema, mas sempre enquadrada na altura do olho. No Limite dá-se uma transgressão. A câmera na mão é colocada na altura do chão. Em visionária tomada sem corte, a câmera abandona, retira de seu enquadramento todos os elementos acessórios do filme, tais como ator, enredo, paisagem para filmar apenas a própria luz e o movimento. Cinema, ele mesmo, em Mangaratiba!

Bressane se lembra de um poema famoso de Rimbaud, Le Bateau Ivre: “o momento em que o barco-poema diz EU”, ou seja, o momento em que o aparato cinematográfico evolui independente no espaço, isolado quimicamente dos outros elementos, como a narrativa, o personagem, qualquer sistema de representação anterior. Limite é prógono do cinema de invenção. Em momentos como esse, de Limite, podemos reconhecer ancestrais diretos de técnicas utilizadas por Bressane, por exemplo, em Sedução da Carne.

Enfim, o conceito de experimental de Bressane não exclui o cinema industrial, antes pelo contrário, como mostra seu elogio do experimental em O Cangaceiro, de Lima Barreto. Este filme é conhecido como o exemplo mais bem sucedido de uma implantação malograda do cinema industrial em São Paulo com a produtora Vera Cruz. O Cangaceiro também se utiliza de sistemas representativos provenientes dos filmes de Hollywood. O experimento, para Bressane, está na reinvenção desses sistemas em contato com o assunto brasileiro. Como diz Bressane, aludindo ao conceito de antropofagia oswaldiana através do termo “canibal”:

Os elementos e procedimentos experimentais do Cangaceiro são inúmeros. É uma paródia acaboclada do western, devorando os principais clichês do gênero, saturando-os, e recriando-os à maneira canibal, de seu ponto de vista. São lugares-comuns recriados e recombinados abundantemente.

O filme, sendo uma incursão sistemática de transculturação (ou “antropofagia”) de um sistema estrangeiro em contato com assuntos brasileiros, nas mãos de um cineasta mais consciente e sensível para esta moldagem e transformação de um sistema em outro, adquire assim um caráter experimental.

NOTAS:

  1. Julio Bressane publicou o ensaio “O Experimental no Cinema Nacional” no livro Alguns, editado pela Imago em 1996. Estas notas acompanham os passos do ensaio para compreender mais o cinema experimental brasileiro e foram feitas para uma aula do curso Constelações do Cinema Brasileiro, ministrada pelo autor e comp. Agradeço à comp. e aos alunos companheiros pelas contribuições.^

SOPA DE PATO #1

 

Essa é uma tentativa de uma coluna colaborativa de indicações variadas. Algumas coisas que tenhamos ouvido, lido, assistido ou sei lá o que nos últimos tempos. Uma sopa meio aleatória, mas com sorte você vai sair com alguma algo interessante pra caçar pela internet depois. Dessa vez fomos basicamente Pedro Ávila, Lucas Almeida, Patrícia Pinheiro e João Carlos Pinho.


Chapter one: Latin America (1973), de Gato Barbieri

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Discípulo de Coltrane e um dos saxofonistas mais importantes e bem sucedidos dos anos 1970, o argentino Gato Barbieri esteve lá no início do free jazz, tendo tocando em álbuns antológicos como Complete Communion (1965), de Don Cherry, e Escalator over the Hill (1971), de Carla Bley, só pra citar dois. Segundo o crítico estadunidense Robert Christgau, Gato Barbieri foi o único jazzista além de Miles Davis a conseguir traduzir o jazz de vanguarda em algo quase acessível ao grande público sem soar desonesto. E é bem isso que se ouve em Chapter one: Latin America, talvez sua obra-prima. Uma celebração aventurosa da música latino-americana, contando com músicos e instrumentos de todo o canto (Argentina, Peru, Brasil, Bolívia e por aí vai) mas com um embalo irresistível. Uma das faixas do álbum, “India” é uma versão linda de uma música escrita por José Ansunción Flores, Manuel O. Guerrero e José Fortuna, que foi interpretada por Gal Costa, dando nome ao excelente Índia, curiosamente também de 1973. Chapter one, como o título indica, o primeiro de uma série. Vale a pena ir atrás dos outros três álbuns, ou capítulos, respectivamente: Hasta Siempre (1974), Viva Emiliano Zapata (1974) e Alive in New York (1975). Os dois últimos são um pouco menos audaciosos, especialmente Viva Emiliano Zapata (o que faz do título um pouco irônico), mas nenhum perde a força celebratória dos encontros entre esses diferentes ritmos e instrumentos, fazendo jus à toda potência do caldo cultural da América Latina.

Bronca Buenos Aires (1971), de José López Ruiz

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Esse álbum narra, tanto literalmente, com palavras escritas e recitadas por José Tcherkaski no início de cada música, quanto musicalmente, a experiência de se viver num país em que o silêncio é a ordem, sendo proibida qualquer forma de manifestação ou expressão. Realizado durante um dos períodos mais assombrosos da Argentina, o regime militar de 1966 a 1973, Bronca Buenos Aires ficou indisponível por muitos anos, tendo sido proibido na época, mas dá pra encontrar no spotify uma reedição de 2013 que conta com versões traduzidas dos monólogos para inglês e francês, mas sem alterar a gravação das músicas em si. O tipo de disco esquecido que a gente tem que lembrar de ouvir de vez em quando.

Só quem viu o relâmpago à sua direita sabe (2020), de Kaatayra

Minha fonte oficial de música boa contemporânea é o Volume Morto, mas de vez em quando dou uma passada nas listas do rateyourmusic. Nessas descobri esse disco curioso do ano passado, que mistura black metal com samba e outras referências musicais brasileiras. Talvez se beneficiasse de uma produção um pouco melhor, em que desse pra escutar todos os detalhes claramente, mas o resultado final não é ruim, a mistura de estilos funciona impressionantemente bem a maior parte do tempo. Pelo que dá pra extrair do bandcamp, o projeto é praticamente todo de Caio Lemos, que toca todos os instrumentos e faz a maior parte dos vocais. É o tipo de coisa que, mesmo com defeitos vale a pena conferir. Eu devo tá na pista errada, mas me faz lembrar de Nação Zumbi misturando metal e maracatu, apesar de ser uma mistura mais simbiótica talvez, mais superposição do que justaposição. Trevoso mas acústico, é uma boa trilha sonora pro pesadelo que o Brasil vive hoje. Dá pra escutar de graça por aqui.

Aron Feldman

Em 1988 Jairo Ferreira sentenciou: Aron Feldman é um talento que provavelmente será redescoberto entre os vivos muito aparentemente mortos deste fim de década. Infelizmente, Aron Feldman (1919 – 1993)  continua hoje um ilustre desconhecido. Juntei alguns textos e entrevistas sobre/com Aron Feldman, além de alguns poucos filmes (4 de um total de aproximadamente 23, entre curtas, médias e longas em variadas bitolas e formatos) que podem ser encontrados na internet. Deste rápido levantamento chama especial atenção alguns registros sobre sua estada em Belo Horizonte, como o vídeo de Fábio Carvalho, O Mundo de Aron Feldman, e o videoclipe Cu de Comunista, da banda Divergência Socialista – em que atua. Enfim, alguns links, filmes, textos, dicas. Que o talento de Aron Feldman – também como fotógrafo – seja redescoberto nessa década tão incerta que ainda se inicia. Filmes , Textos: Catálogo Aron; De dentro de um cemitério – Paulo Emílio; jairo ferreira 1988; O Mundo de Aron Feldman por Fábio Carvalho.e mais aqui, aqui aqui aqui e aqui. Recentemente Cláudio Feldman – filho e colaborador de Aron – lançou o livro Aron Feldman: Cinema Nas Veias.

Level Five (1997), de Chris Marker

Chris Marker - Level Five (Trailer) | Dinca

O filme Level Five (1997) do Chris Marker tá no mubi.com e é uma piração interessante. Em parte é um documentário sobre a batalha de Okinawa, o último conflito da Segunda Guerra, que serviu de prelúdio pro lançamento das bombas atômicas no Japão. Mas também é uma ficção científica sobre essa mulher que está tentando terminar o videogame inspirado na batalha de Okinawa, obra inacabada de seu falecido marido. O filme faz uma brincadeira intercalando entrevistados que de fato viveram a Segunda Guerra e a personagem fictícia que fica rememorando sobre seu marido, discutindo com a câmera num formato videolog sobre a vida e suas conversas na internet. É tudo uma grande reflexão melancólica e cabeçuda sobre os traumas do século XX, tanto num nível macro como micro, assim como sobre as confusões entre realidade, ficção, memória e sonho, engatilhadas pelo existencialismo cibernético de fim de século.

Ernie Pike, de Oesterheld e Pratt

Ernie Pike - La sentinella by Hugo Pratt on artnet

Não tem necessariamente a ver com o filme de Marker, mas em Level Five é citado que o jornalista e correspondente de guerra Ernie Pyle, que ficou conhecido por seus relatos sobre soldados e momentos ordinários da guerra, morreu na batalha de Okinawa. Bem, inspirado nessas histórias, o argentino Héctor Oesterheld criou uma série de quadrinhos em 1957, Ernie Pike, primeiramente desenhada pelo gigante Hugo Pratt, mais famoso por sua obra-prima Corto Maltese. Ano passado, Ernie Pike saiu pela primeira vez no Brasil, pela editora Figura. É uma coleção de contos breves que, escolhendo tratar de figuras “irrelevantes” da Segunda Guerra, tece diversas reflexões sobre os conflitos humanos e como pessoas comuns lidam com os terrores da Guerra. Se você tiver chance de ler, leia, é excelente. Oesterheld foi um opositor do regime militar argentino, tendo se unido ao grupo guerrilheiro Montoneros. Ao longo dos anos 1970, Oesterheld e grande parte de seus filhos foram sequestrados pelas forças armadas. O corpo de Oesterheld nunca foi encontrado. Alguns quadrinhos dele vêm sendo lançados no Brasil nos últimos tempos, como a ficção científica O Eternauta, conhecida por sua crítica política, mas principalmente as obras que fez junto de Alberto Breccia, como a borgiana Mort Cinder, que trata um misterioso homem que nunca morre.

O cinema de Kelly Reichardt

Kelly Reichardt's 'Meek's Cutoff': The Camera's ...

Kelly Reichardt é uma diretora norte-americana que investiga em seus filmes a formação da identidade estadunidense, através das perspectivas de indivíduos marginalizados dentro da histórica canônica dos Estados Unidos da América. Seus filmes trabalham a jornada cotidiana desses outsiders, transmitindo um discurso forte sobre as violências e contradições de seu país sem precisar trazer de modo enfático e explícito as mesmas. Com roteiros simples e com pouca ação, para os espectadores que se permitam embarcar no realismo banal de suas construções, sua obra produz um efeito generalizado de ambiência, que os emerge em uma poética do silêncio altamente reflexiva.

Filmes recomendados: O Atalho (2010), Wendy & Lucy (2008) First Cow (2019), Certain Women (2016)

 

Os corpos e bonecos de Osamu Tezuka (parte 1) – por Pedro Ávila

Detalhe do curta de 12 segundos “Auto retrato”, no qual a face de Osamu Tezuka se torna uma máquina caça-níqueis, trocando de rostos sem parar.

Os mangás e animes de Osamu Tezuka (1928-1989) tendem a se encaixar em gêneros fantásticos, nos quais se não há magia em si a ciência é extrapolada a sua condição mais caricata. Os mundos que o autor criava eram regidos pela lógica flexível da brincadeira, sendo muitas vezes habitados por seres como robôs e andróides, que podemos associar a bonecos. Sua criação mais emblemática é provavelmente a ficção científica Tetsuwan Atom (1952-1968), conhecida também como Astroboy fora do Japão, que conta a história de Atom, um menino robô super poderoso. Atom foi criado pelo Dr. Tenma para substituir Tobio, seu filho que havia falecido num acidente automobilístico. Sendo andróide feito à imagem e semelhança de Tobio, Atom é um duplo. Uma das questões recorrentes na obra de Tezuka será, portanto, o que define um ser humano e quais as diferenças entre uma pessoa e um ser artificial. Além de andróides, sua obra será povoada também por outros seres de identidade ambígua, sendo recorrente o tema da encenação.

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Capa do primeiro volume de Tetsuwan Atom, o Astroboy.

O desenho de Tezuka, que possui linhas simples mas expressivas, e seu design de personagens baseado em formas geométricas básicas, ajudou a configurar o “estilo mangá” genérico (olhos grandes, traços arredondados, expressões exageradas). Desse estilo surgiram personagens icônicos, passíveis de serem reconhecidos com imensa facilidade, assim como reproduzidos em outras mídias, ou transformados em brinquedos. Tezuka parte de uma noção artística bem moderna: a síntese, o menor número possível de traços para a maior expressividade.

Ele foi um desses quadrinistas que utilizam da obviedade da imagem para chegar direto ao ponto com relação aos temas, um desses artistas que jogam diretamente com a superfície. Seu estilo cartunesco tende a apresentar uma economia de traços e hachuras, influenciado pelos desenhos animados norte-americanos estilo Disney e Fleischer, assim como pelos designs construtivistas de autores de mangá do período pré-guerra 1.  Como nos desenhos animados da primeira metade do século XX, as personagens de Tezuka possuem um aspecto “borrachudo”, despreocupado com o “realismo” ou “naturalismo”.

Detalhe de uma página de Metropolis (1949), na qual é possível observar a influÊncia dos desenhos animados borrachudos.

Essas particularidades de seu estilo facilitavam com que ele e seus assistentes desenhassem múltiplas séries de quadrinhos simultaneamente, acelerando também a produção de suas adaptações para desenho animado. Além disso, os olhos grandes e expressões exageradas eram uma forma conveniente de explicitar as emoções das personagens, sem necessitar a animação completa de seus movimentos corporais.

Por conta disso, já compararam muito Tezuka com Walt Disney, como se o mangaka 2 fosse uma espécie de “Disney japonês” 3. Mas como Rogério de Campos afirma no prefácio da edição brasileira de Ayako (1972-1973) 4:

“[…] as diferenças entre um e outro saltam à vista. […] enquanto Tezuka era um desenhista impressionantemente prolífero e criativo, Disney mal desenhava, nem mesmo sua famosa assinatura é criação dele. Disney foi um empresário. Tezuka, mais do que tudo, foi um artista. […] é bem sabido que, quando o macarthismo invadiu Hollywood, Disney foi correndo se oferecer como dedo-duro na caça aos comunistas. Tezuka, quando o movimento da censura aos quadrinhos ficou mais forte [no Japão dos anos 1960], saiu em defesa dos gekiga 5. Falou publicamente contra a censura e pelo direito dos quadrinhos tratarem de todos os temas. Foi além: em 1967, criou uma revista, a COM, na qual os jovens e veteranos mangaka pudessem fazer suas experimentações e tratar, com total liberdade, de todos os tipos de temas, inclusive sexo 6.” (p. 7 do prefácio da edição brasileira de Ayako, de 2018.)

Contudo, as obras de ambos estão intimamente relacionadas ao mundo industrial da reprodutibilidade técnica. Como Disney, Tezuka fez muito dinheiro com as imagens de suas personagens, tanto em quadrinhos e desenhos animados quanto em bonecos e estampas de qualquer produto que fosse. Entretanto, acredito que os propósitos de Tezuka eram também de criar narrativas que pudessem em si refletir sobre sua própria reprodutibilidade técnica. Se Atom é um robô é porque interessava a ele revelar a artificialidade de suas histórias, de maneira a ponderar o que significa ser humano numa era repleta de duplos e reproduções.

O mundo moderno, industrial e fissurado pela velocidade, é a razão de Atom existir. Tanto por ser fruto do imaginário de um Japão pós-guerra, que experienciou os maiores terrores produzidos industrialmente, máquinas de guerra e bombas nucleares, como diegeticamente. Atom só pôde surgir a partir da dor de um pai que teve seu filho tirado do mundo por  uma colisão entre máquinas tecnológicas. Dessa dor emerge um ser-coisa, ser-máquina, fusão de Tobio e os carros que causaram sua morte.

Logo no início, Atom é abandonado por seu criador, para o qual a perfeita semelhança do robô a Tobio apenas intensifica a ausência de seu filho morto. Mas seria Atom menos humano que Tobio? Essa questão é complexa, já que o andróide parece ter sentimentos, além de lutar pelo bem da vida. Apesar de, a rigor, não estar vivo nem ser humano, ele tende a agir de maneiras muito mais “humanas” do que algumas pessoas no mangá, sempre buscando a solução mais diplomática para os problemas.

Tezuka na década de 1960, no estúdio de produção de animações da Mushi Production.

Dessa discrepância entre o humano e objeto, um caso interessante está no mangá Dororo (1967-68) 7, que conta a história de Hyakkimaru, um garoto que ao nascer constituia apenas de um tronco desmembrado e uma cabeça sem olhos, nariz, ouvidos ou boca. Antes de nascer Hyakkimaru teve 48 de seus órgãos sacrificados por seu próprio pai a um grupo de youkai 8 em troca de poder e riqueza. Após ser salvo por sua mãe e colocado numa cesta num rio, o menino é encontrado por um curandeiro que passa a criá-lo como seu filho. Para que Hyakkimaru possa viver como uma pessoa comum, seu pai adotivo constrói membros e órgãos de madeira, colocando lâminas dentro de seus braços para que ele possa se defender e surpreender os inimigos. Sendo constantemente perseguido por assombrações, o garoto precisa cortar seu laço com o pai adotivo (outro desmembramento), resolvendo percorrer o mundo em busca de reconstituir seu corpo. Para isso, ele deve matar todos os youkai que selaram o pacto com seu pai biológico. Em suas aventuras, ele é acompanhado por Dororo, o ladrãozinho que dá nome ao título.

Detalhe de uma página de Dororo. Hyakiimaru bebê e seu pai adotivo criando membros de porcelena e madeira.
Hyakkimaru (à esquerda) e Dororo (à direita), em ilustração de 1967 para a revista Shonen Sunday.

Ao longo do mangá, Hyakkimaru vai trocando seus órgãos falsos pelos orgânicos, o que posiciona seu corpo no centro da narrativa, o que nos atenta para o próprio artifício do desenho de Tezuka. Diferente de sua versão animada de 2019, no mangá de Dororo, Hyakkimaru aparenta ser como qualquer outro humano: por meio de suas habilidades psíquicas, consegue ver, ouvir e se comunicar apesar de seus ouvidos, olhos e bocas serem falsos, o tornando indistinguível às demais personagens. Isso ajuda a causar maior espanto quando Hyakkimaru desatarracha um de seus braços falsos, revelando a lâmina escondida. Mesmo depois de obter seus membros reais, não parece haver qualquer estranhamento por parte dos demais personagens, sendo para eles carne e osso indistinguíveis de madeira e porcelana. Afinal de contas, o mangá nos permite perceber que Hyakkimaru não é feito de nada que não tinta e papel: ele é uma imagem, um boneco do autor Tezuka, como qualquer outra personagem da história.

Hyakkimaru desatarrachando um de seus braços e revelando a lâmina escondida.

Já que a maior parte de seus membros são artificiais, assim como seus sentidos, Hyakkimaru constantemente tem que performar ser um humano comum. Seu trajeto ao longo do mangá é, portanto, se tornar de fato quem ele antes performava ser. Contudo, o fato de não haver uma distinção óbvia entre o artificial e o orgânico suscita a questão: até que ponto Hyakkimaru está de fato recuperando seu corpo verdadeiro? Se enquanto performava ter um corpo inteiramente orgânico ele já era percebido enquanto um humano comum, que diferença faz a materialidade de seu corpo? Ele era menos humano antes? Ou até: não seria a falta aquilo que o tornava ele próprio? Voltamos ao mesmo dilema de Atom: o que define a humanidade: nossos corpos ou nossas ações?

A encenação envolve também os diversos youkai que Hyakkimaru e Dororo combatem ao longo da série. Esses inimigos quase sempre ocultam sua verdadeira forma, assumindo a aparência de pessoas, animais ou objetos. A maneira com a qual Hyakkimaru derrota os youkai separa os pedaços de seus corpos, por vezes os fatiando ao meio. A divisão do corpo das personagens pode também ser associada à replicação e à reprodutibilidade técnica.

Página de Dororo, na qual vemos Hyakkimaru partir um youkai em forma de cachorro ao meio.

Já que estamos falando de encenações, vamos lembrar de uma antiga prática entre os quadrinistas japoneses: o star system, inspirado no sistema Hollywoodiano, em que um mesmo ator performa papéis diferentes em diferentes produções  de um dado diretor ou gênero cinematográfico. Dessa forma, vários mangakas reutilizavam um mesmo design para múltiplos personagens em mangás diferentes, como se fossem atores (aqui você pode ver alguns dos “atores” principais de Osamu Tezuka e seus diferentes papéis). Assim, ocorre uma disjunção ao encontrarmos numa obra uma personagem cujo design reconhecemos de outra, na qual desempenha o “papel” de uma personagem completamente diferente 9). Mais uma vez somos obrigados a encarar a artificialidade da narrativa e desenhos. Algumas personagens podem também se encontrar em dilemas performativos, se disfarçando, ou fingindo ser alguém ou algo que inicialmente não eram. Nesse sentido, Tezuka se assemelha a uma criança usando um número limitado de brinquedos como personagens diferentes para suas diversas brincadeiras. São, então, as marionetes que ele manipula para contar histórias. Isso para não falar nas constantes “quebras de quarta parede”, nas quais as personagens demonstram ter plena consciência de estar num mangá, chegando a interagir com os quadros, balões de fala e o próprio autor. Demonstrando através da comicidade um gosto lúdico do autor, que quer brincar e experimentar com os elementos formais do quadrinho.

Uma das estrelas de Tezuka, um mesmo “ator”/modelo/design em dois papéis distintos: à esquerda como Duke Red, de Metrópolis (1949) e à direita como Nikura, no primeiro capítulo de Black Jack (1973), mangá no qual reaparece múltiplas vezes interpretando papéis diferentes. Interessante notar como Tezuka desenha seu “ator” como se tivesse de fato envelhecido ao longo das décadas.
Outro exemplo do star system: Hyakkimaru como Ben e Dororo como seu irmãozinho em Black Jack, no capítulo “Miyuki and Ben”. Note que no quadro mais à direita Tezuka desenhou a si mesmo como um dos passageiros, o narigudo de óculos e boina lendo um livro.
Detalhe de uma página do capítulo “Miyuki and Ben”, de Black Jack, na qual o cenário é desenhado como se derretesse, visualmente chorando junto do personagem Ben. Parece até poesia concreta.

 

Detalhe de uma página de Buda (1967), na os balões de fala grudam numa personagem que passou pomada pelo corpo.

A performatividade do gênero é outra questão recorrente em sua obra, sendo o exemplo mais notável A princesa e o cavaleiro (1953-1956), no qual a princesa Sapphire se disfarça de cavaleiro para lutar contra o mal 10. Outros exemplos estão em seu Metrópolis 11, no qual há um andróide sem gênero determinado, ou mesmo em Buda, no qual o jovem Devadatta é obrigado a se disfarçar como garota em determinado momento, sendo comentado que seu rosto seria um tanto feminino.

Ilustração de Sapphire, a protagonista de A princesa e o cavaleiro.

O apreço de Tezuka por chamar atenção ao corpo humano, através das partes desmembradas e dos membros artificiais, pode ser associada a sua formação em medicina pela Universidade de Osaka. Além disso, o mangaka foi testemunha dos horrores da Segunda Guerra, chegando a ser obrigado a trabalhar em uma fábrica de armas em 1944. De castigo, na torre de vigia da fábrica, Tezuka viu aviões norte-americanos chegando e os bombardeando. Sobre o incidente, o desenhista relata:

“Desci a torre de vigia gritando feito um louco. Ao meu redor o chão era um mar de fogo […] as casas em volta pegavam fogo, crepitando. Então, caiu uma chuva misturada com cinzas. Caminhei até o rio, vendo as crateras abertas pelas bombas onde amontoavam objetos que se assemelhavam a pedaços de seres-humanos e que eram, de fato, pedaços de seres-humanos!”. (p. 8 do Prefácio da edição brasileira de Ayako, 2018)

Mickey Mouse fires on the Japanese protagonist in Tezuka Osamu's wartime manga Shōri no hi made (Till the Day of Victory). Courtesy of Tezuka Productions.
Talvez por isso ele tenha desenhado Mickey Mouse atirando de um avião no mangá de guerra Shouri no hi made (“Till the day of victory”, em inglês; “Até o dia da vitória”, em tradução livre).

Testemunhar a destruição da guerra pode ter influenciado a imaginação de seres artificiais indestrutíveis, como também questionamentos sobre o que define a humanidade e sua moral. Mas quero menos achar uma explicação autobiográfica e mais apontar às relações entre o contexto histórico e as obras em questão. Trata-se de um Japão fragmentado – picotado como os inimigos de Hyakkimaru -, ocupado por forças externas e marcado pelos horrores da bomba atômica. O próprio nome original de Astroboy, “Atom”, remete às bombas atômicas norte-americanas que arrasaram Hiroshima e Nagazaki, não apenas matando centenas de milhares de pessoas como alterando toda a organização política e cultural do país. Seria Atom, o robô super poderoso mas diplomático, que luta pela paz, uma tentativa de criar algo positivo a partir do trauma de uma nação?

Considerando sua formação médica, não surpreende que, entre 1973 e 1983, Tezuka publicou Black Jack 12, um de seus mangás mais renomados no Japão, apesar de pouco conhecido por aqui. Trata-se da história de Hazama Kuro, mais conhecido por sua alcunha “Black Jack”, inspirada no jogo de baralho de mesmo nome, também conhecido como “21”. Ele é um cirurgião clandestino com um passado misterioso, que vive entre conflitos morais e éticos, entre o “bem” e o “mal”, o que é tornado visualmente literal por seu rosto dividido por uma cicatriz e seus cabelos metade pretos e metade branco (as mesmas cores de um mangá impresso). Black Jack é também um mangá que nos torna autoconscientes sobre o corpo humano, com suas imagens gráficas de cirurgias e interiores do corpo, as quais, apesar de por vezes influenciadas por ficção científica, são extremamente detalhadas e acuradas, graças à formação médica de Tezuka.

Vale notar também a presença da amiga de Black Jack, Pinoko, outra personagem cujo corpo é parcialmente sintético. Em um dos primeiros capítulos do mangá, Black Jack recebe o pedido de retirar um tumor de uma garota de 18 anos, operação que nenhum outro cirurgião tinha sido capaz de realizar. Esse tumor é identificado no mangá como “teratoid cystoma“: a garota teria tido uma irmã gêmea cujo embrião não se desenvolveu completamente, acabando por se alojar como tumor em seu corpo. Ao perceber que o tumor pode se comunicar telepaticamente (traço que compartilha com Hyakkimaru), Black Jack resolve transpor sua mente, sistema nervoso e seus poucos órgãos mal desenvolvidos para um corpo feito de fibra sintética, batizando-a de “Pinoko”. Devido ao tamanho reduzido de seus órgãos, Pinoko assume a forma de uma criança, apesar de ter uma mente de 18 anos, o que gera estranhamentos constantes quanto a maneira com a qual ela pensa e age. Isso também faz com que a aparência de seu corpo artificial seja comparada à de uma boneca.  Não surpreende, portanto, que seu nome tenha sido inspirado na obra original de Carlo Collodi, Pinocchio, o boneco que queria ser menino de verdade.

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Black Jack, capítulo “Teratoid Cystoma”. O tumor que veria a se tornar Pinoko seria um embrião que nasceu apenas em partes, implantado dentro de sua irmã gêmea, a garota de 18 anos que carrega o tumor.
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Black Jack dando um corpo para Pinoko.
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O corpo artificial de Pinoko, que se assemelha a uma boneca.

Pinóquio (como também a criatura de Doutor Frankenstein, de Mary Shelley) é uma personagem que ecoa ao longo do trabalho de Tezuka, seja no robô Atom feito à imagem e semelhança de um garoto morto; no corpo de madeira e porcelana de Hyakkimaru; ou na própria adaptação direta de Pinóquio que Tezuka fez em 1952  13. Se analisarmos os “pais” ou tutores de Atom (Dr. Tenma), Hyakkimaru (Dr. Honma) e Pinoko (Black Jack), encontramos analogias para o artista, o criador de personagens, que é cientista, curandeiro, alquimista, marceneiro e/ou cirurgião. Como os “pais” artificiais de seus mangás, Tezuka utilizou seus conhecimentos anatômicos para construir bonecos cartunescos. Esses bonecos, como Pinóquio contam mentiras. Não no sentido de que as personagens mencionadas são mentirosas, mas de que as narrativas em si têm consciência de serem mentiras, ficções, as quais não buscam nos convencer de serem realidade, mesmo que por breves instantes, mas sim ressaltar sua condição artificial. Também como eles, Tezuka articula em suas páginas diferentes quadros, fragmentos que formam um organismo complexo.

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O Pinocchio (1952) de Osamu Tezuka.

Além do desejo de sintetizar, outra preocupação modernista compartilhada pela obra de Osamu Tezuka é a fascinação pela cinética. Em geral as histórias em quadrinhos ao longo do século XX desenvolveram maneiras eficientes de se representar e pensar o movimento, seja através de linhas e rabiscos que indicam a forma e a direção do movimento ou a simples maneira de ilustrar um personagem com intuito de dar a sensação de que está no meio de uma ação. Contudo, é de conhecimento geral que os quadrinhos japoneses em particular se inspiraram ou até tentaram emular a sensação do movimento cinematográfico. Um exemplo clássico disso (apesar de muitas vezes incorretamente citado como o primeiro) é no mangá de Tezuka A nova ilha do tesouro (que saiu em 1947 mas, devido à perda do material original é mais conhecido em sua versão redesenhada pelo autor, de 1984) 14. Note na imagem à seguir (lembrando que a leitura é da direita para a esquerda) como, diferente das convenções norte-americanas e europeias da época 15, somos apresentados a fragmentos de um mesmo acontecimento (um carro correndo pela estrada), dando a sensação de estarmos acompanhando o personagem durante a extensão de sua ação, quase como se uma câmera cinematográfica seguisse seu percurso; além disso, a cada quadro nos afastamos um pouco mais do rosto do personagem até estarmos vendo o carro de longe, criando um efeito que lembra um plano de cinema; ou seja, cada quadro pode ser entendido como um momento diferente da ação, chamando atenção para a movimentação do carro no espaço, assim como para a “passagem” do tempo ao longo dos quadros:

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A nova ilha do tesouro, um dos primeiros trabalhos de Osamu Tezuka.

Tezuka opera uma modulação temporal próxima do cinema. Há nos seus mangás a fragmentação dos “aspectos” 16 de um único movimento, o que acaba por estender e apresentar outras maneiras de se compreender o tempo e os movimentos de uma dada ação. Para isso, os quadros do mangaka surgem nas mais variadas formas geométricas, com intuito de dinamizar as ações, fragmentando também o espaço da página.

Como os corpos de seus personagens ou o tempo de suas ações, as páginas de Osamu Tezuka apresentam cicatrizes, cortes angulares e diagonais. Em Dororo, Hyakkimaru, O garoto que possui membros falsos, os quais pode retirar e colocar novamente no lugar, tende a estraçalhar seus inimigos, os picotando e partindo ao meio. A composição de página e disposição dos quadros de Tezuka age em paralelo com isso: cada quadro seleciona um detalhe da ação ou dos corpos em cena, fragmentando visualmente as personagens. Em alguns momentos à própria lâmina das personagens fatia os quadros da história sugerindo que as sarjetas (os espaços entre um quadro e outro) são similares a cortes.

Página de Dororo em que uma das sarjetas foi cortada pelas personagens. Interessante notar a disposição dos quadros, que podem passar um por cima do outro.

Noutro momento em Dororo, vemos um espadachim dividir um inseto ao meio com sua espada. A página a seguir mostra o que acontece logo depois disso. No primeiro quadro, cada metade do inseto vai parar numa direção diferente. Os dois quadros seguintes estão posicionados um ao lado do outro, cada um contendo uma das metades, sugerindo que a sarjeta que separa os quadros é análoga à lâmina que dividiu o os insetos 17. Os próximos quadros mostram apenas a imagem da mão de Hyakkimaru, impressionado com à habilidade do espadachim. Acompanhamos sua mão lentamente encostar nas metades de cada inseto. Para estender o tempo e criar o ritmo da sequência de quadros, Tezuka precisa replicar várias vezes a mão da personagem, o que sugere novamente a já mencionada relação entre divisão e multiplicação. Dessa forma, a página chama atenção para os corpos do inseto e de Hyakkimaru, assim como para a materialidade de seus desenhos, quadros e composições.

Sendo assim, ao mesmo tempo que as páginas de Tezuka se entregam à superficialidade, há na articulação dos quadros uma vontade de representar um mundo e um movimento tridimensional, ou cinematográfico. A tensão entre as dimensões é exemplificada pela página de Dororo que acabamos de observar, na qual um personagem que supostamente ocupa uma diegése tridimensional interage com a bidimensionalidade do papel (o que, por sua vez, nos remete à condição material do quadrinho). A constante ambiguidade de sua obra, que se nega ao antagonismo simplista entre bem e mal, confundindo até as definições de ser humano, se apresenta também nesse contraste entre tri e bidimensionalidade 18.

É como se Tezuka quisesse que seus quadrinhos atingissem o dinamismo da imagem em movimento do cinema. Não à toa o mangaka se tornaria também animador, e é aqui que nos interessa remeter à origem etimológica de “animação”: do Latim anima, ou seja, “alma”. “Desenho animado” é, portanto, um desenho ao qual foi dado alma. Se Dr. Tenma anima o corpo-objeto de Atom, Tezuka anima Dr. Tenma, assim como todos os personagens e objetos inanimamados de seu mundo. Se as animações de sua produtora Mushi possuíam movimentações restritas e truncadas, a articulação entre montagem, composição de tomadas e design expressivo de personagens era o bastante para dar dinamismo à suas imagens estáticas, como se as desse vida. Técnicas estas que eram muitas vezes semelhantes às utilizadas em seus mangás, que, apesar de serem desenhos fixos no papel, estão sempre em movimento e sempre movimentando nossos olhos através dos quadros e páginas, assim como nossas mãos viram as folhas desses quadrinhos com rapidez. E, afinal, a pergunta permanece: um robô, um animal, um objeto podem ter alma como os seres humanos? Os humanos sequer têm alma? Bom, Tezuka arranjou uma maneira de dar alma à todos esses seres imaginários e estáticos. Voltando à comparação entre o autor e suas personahens que criam “bonecos”, é a partir da impressão de movimento que o artista constrói um organismo vivo.

Sendo possível pensar no termo “animação” como “trazer à vida”, Silvio Teri define “animação” como a projeção de qualidades consideradas humanas num ambiente sensorial, por meio do ato da criação, percepção e interação. Logo, Teri sugere que a performance de uma outra identidade pode ser considerada uma forma de animação 19, uma vez que estamos projetando qualidades de um ser vivo em uma identidade separada de sua identidade real, através de uma encenação. Assim, além de o próprio autor Tezuka estar dando vida a seus personagens, seus “atores” fictícios estão os animando também, assim como muitas vezes os personagens em si estão animando suas identidades falsas. Nessas camadas e camadas de encenação e performance, é sugerido que, ao serem animados, as pessoas fictícias podem revelar ter tanta alma e humanidade quanto seu criador humano. E uma vez  que é impossível conhecer a pessoa Osamu Tezuka, sua humanidade só pode ser acessada através de sua arte, ou seja, nosso contato com sua natureza acontece por meio de suas criações artificiais.

No capítulo de Black Jack “Miyuki and Ben”, o delinquente juvenil Ben se apaixona por Miyuki, uma garota que está sofrendo de um câncer incurável. Ben vai atrás de Black Jack implorando para que ele tente salvá-la, mas o cirurgião clandestino pede 5 milhões de ienes em troca. Desesperado para conseguir o dinheiro, Ben resolve tentar assaltar pessoas. Enquanto isso, acompanhamos Black Jack indo ao hospital em que se encontra Miyuki. Lá, ele convence os demais médicos a deixá-lo tentar salvar a garota, apesar de não ter recebido ainda o dinheiro. Quando parece que Miyuki de fato não sobreviverá, Ben é trazido para o hospital, tendo sido baleado por policiais ao tentar assaltar alguém. O delinquente morre e seus órgãos são transpostos para o corpo de sua amada, o que a salva da morte iminente. Na última página do capítulo, Black Jack diz que agora os corpos de Miyuki e Ben estão unidos. O último quadro mostra a garota dormindo na cama do hospital, com a alma de Ben desenhada sobreposta à cama, como se estivesse abraçando-a. A partir desta breve narrativa, podemos dizer que os órgãos de Ben “animaram” o corpo de Miyuki, lhe dando a vida. Dessa forma, o corpo físico de Ben é compreendido como sua alma. Já questionava Walt Whitman: “And if the body were not the soul, what is the soul?” (em tradução livre: “E se o corpo não fosse a alma, o que é a alma?”) 20. Além disso, “Miyuki and Ben” é um exemplo das camadas de “animações”: o autor dá vida ao design de personagem de Hyakkimaru, o qual dá vida ao personagem Ben, que, por sua vez, dá vida a Miyuki.

Última página de “Miyuki and Ben”, em Black Jack.

“Miyuki and Ben” exemplifica bem os contrastes e contradições exploradas por Tezuka em Black Jack. O cirurgião aparenta ser egoísta e desumano ao cobrar 5 milhões de ienes a um jovem arruaceiro que não poderia ter o dinheiro, mas ao mesmo tempo se comove com o sofrimento do garoto, indo tentar salvar Miyuki sem avisá-lo. Contudo, o fato de Black Jack não ser capaz de assumir sua compaixão leva Ben a procurar uma maneira rápida de ganhar o dinheiro cobrado, o que o leva à morte. Ironicamente, essa morte é a única coisa que poderia salvar Miyuki. Afinal, a vida de uma pessoa vale o mesmo que a de qualquer outra? O próprio Ben é apresentado como um garoto violento, que inicialmente tenta assediar Miyuki. Ele é, então, uma pessoa boa ou má?  E seria Black Jack um homem bom ou não? Voltando ao paralelo entre Tezuka e os “pais” criadores de seres sintéticos: Black Jack, como Tezuka, vive dividido entre a necessidade capitalista de acumular dinheiro e o altruísmo de ajudar o próximo, restaurando a vida às pessoas.

Nessa constante ambiguidade da obra de Tezuka, é notável também a brutalidade implícita no estilo aparentemente infantil e cômico de seus desenhos. Já tratamos de como as sarjetas de suas páginas são relacionadas a cortes, mas essa brutalidade se esconde também nas ações de seus personagens. O estilo de desenho pode ser caricato e arredondado, mas, diferente das obras da Disney ou de um Maurício de Sousa, Tezuka não tinha medo de mostrar sangue, mutilações ou questionamentos perturbadores, nem mesmo de matar seus bonecos fofinhos.

Um exemplo interessante disso se encontra em Buda (1967) 21. Em determinado momento, somos apresentados a um garotinho chamado Devadatta e seus colegas que praticam bullying com ele por não ter pai e sua mãe ter casado com outro homem, que também bate nele e o humilha em casa. Com esses colegas que odeia, Devadatta vai para um piquenique, mas após serem perseguidos por um elefante, as crianças caem num buraco, onde ficam perdidas por duas semanas. No buraco, Devadatta encontra uma goteira, mas se recusa a dividir a água com seus colegas por terem sido cruéis com ele. Quando eles tentam acessar a goteira, Devadatta os mata um por um com uma rocha. Ao serem encontrados por seus pais, as crianças estão todas ensanguentadas com pedras na cabeça, menos Devadatta, que é considerado um demônio pela comunidade e jogado para ser devorado por hienas. A história de Devadatta não acaba por aí, e prossegue com acontecimentos perturbadores. O curioso é que o design de Devadatta e das demais crianças não é muito dissimilar de uma Turma da Mônica, podendo passar por uma narrativa extremamente infantil à primeira vista.

Página de Buda. Devadatta (no último quadro, à esquerda) e seus colegas.
Devadatta assassinando um de seus colegas.
As crianças desaparecidas encontradas pelos adultos: todas mortas e ensanguentadas, tirando Devadatta, que está ao lado de sua preciosa goteira, mas com uma expressão miserável.

Outro bom exemplo é o já mencionado Black Jack, no qual são intercaladas caricaturas arredondas e fofas com o horror corporal (por que não dizer gore?) de vísceras, doenças e mutilações. O gore fofo de Tezuka também surge em Dororo, no qual vemos páginas de monstros e humanos serem desmembrados e jorrando sangue ao lado de quadros silenciosos e contemplativos da paisagem natural, ou interações cômicas entre as personagens, as quais podem se tornar tensas e dramáticas em poucos quadros. Esse contraste tonal que Tezuka alcança, que ocorre também na ocasional discrepância entre um cenário detalhadamente rico em texturas e personagens cartunescos, é o que faz os momentos horripilantes e mórbidos terem ainda mais peso e impacto.

Página de Buda, onde é possível perceber o contraste entre os humanos e animais cartunescos, quase sem nenhum sombreado, e o cenário mais detalhado e cheios de texturas da floresta.
Detalhe de uma página de Dororo, após Hyakkimaru decapitar um youkai. Um exemplo da violência gráfica operada pelas personagens fofas de Tezuka.

Além de contrastar tons diferentes, como cenas assustadoras com cenas cômicas, ocorrem também sobreposições de emoções e tons diversos, revelando complexas camadas de sensações da vida humana. Um exemplo disso está no final do já citado capítulo Black Jack, “teratoid cystoma”, no qual Pinoko é introduzida. Ao ser apresentada à sua irmã gêmea (que, voltando ao tema da performance, não quer revelar sua identidade, preferindo usar uma máscara), Pinoko é rejeitada como uma aberração e passa a xingar e pular de maneira cartunesca em cima dou corpo recém operado de sua irmã. Uma cena cômica, mas com uma camada de sentimentos de dor e rejeição implícita, especialmente dada as circunstâncias bizarras da situação.

Entre o as imahens óbvias e a exploração ambígua de todo um espectro emocional, o mundo que Tezuka pintava de nanquim e animava em celuloide não é diferente da realidade modernq: fragmentado, em tensão entre as superfícies e a profundidade. Sobre esse mundo, o autor dava vida a bonecos confusos com sua própria identidade, que buscavam entender o que os animava e o que fazer com a vida que lhes foi dada. A constante metalinguagem e os contrastes de Tezuka demonstram uma autoconsciência sobre a irrealidade de suas representações, ao mesmo tempo que um certo gosto pela artificialidade, como se fosse da natureza humana a performance e a reprodução.

Sabendo que a arte modernista e construtivista foi uma das influências principais para o desenvolvimento da indústria e estéticas do mangá, não é de surpreender que um de seus maiores artistas tenha refletido tanto sobre a condição dos seres humanos no mundo industrial. A obra de Tezuka nos obriga a avaliar o que diferencia uma pessoa de uma engrenagem de uma máquina, ou de brinquedos e imagens a serem manipulados. Na era da reprodutibilidade técnica estamos perdendo o que antes nos definia como humanidade, nos replicando e virando parte máquina, ou parte de plástico, assim como nos bombardeando e fragmentando nossos corpos e comunidades. Como, então, mantemos nossa agência no mundo, não nos tornando suscetíveis às manobras de titereiros? Bom, havendo possíveis paralelos entre o autor Tezuka e os criadores de seres artificiais, vale notar como parte desses personagens que criam ciborgues e andróides não os manipulam, enxergando suas criações como indivíduos autônomos e livres. Quem sabe é possível sermos bonecos industriais e ainda possuirmos agência. Sendo a agência desses bonecos advinda em parte da metalinguagem – ou seja, da autoconsciência do artifício – talvez nós humanos precisemos de uma dose de existencialismo.


Esse texto originalmente foi pensado como introdução para uma análise do mangá Ayako (1972-1973), lançado no Brasil pela Veneta em 2018. Acabei me empolgando, então resolvi dividir o texto em dois (dá até pra fingir que faz sentido com o tema dos fragmentos e duplos): uma metade em que trato de maneira mais geral e ensaística sobre a metalinguagem nos quadrinhos de Osamu Tezuka e outra em que analiso Ayako em particular. Na parte 2 discutirei como Ayako utiliza de algumas características que apresento na parte 1 para traçar uma narrativa sobre o contexto político do Japão pós-guerra, a ocupação e influência dos EUA na política interna no país, assim como os conflitos entre classes econômicas e gerações.

Vale dizer que esse texto não se propõe a um rigor acadêmico, ainda mais por que não li tantas onras de Tezuka como gostaria. São mais reflexões e observações que ainda podem ser polidas e desenvolvidas. Um ensaio.

NOTAS:
  1. Recomendo o vídeo Koguma no Korosuke de Yoshimoto Sanpei e a influência da arte modernista no mangá”, do Rafael Machado Costa, do Ilha Kaijuu, para entender melhor a relação entre a arte modernista nos mangás da primeira metade do século XX.^
  2. Autor de mangá.^
  3. Outro que já recebeu muitas vezes esse apelido esdrúxulo é Hayao Miyazaki.^
  4. Obra de Tezuka lançada em 2018 pela editora Veneta.^
  5. Quadrinhos japoneses adultos, que tratavam de temas políticos e controversos que não apareciam nos mangás das grandes editoras da época.^
  6. Como o próprio prefácio nota, Katsuhiro Ohtomo, o autor de Akira, estreou na COM. Inclusive, Ohtomo dedicou Akira, entre outras pessoas, a Osamu Tezuka.^
  7. No Brasil, os quatro volumes de Dororo foram publicados em 2010 pela editora NewPop. A obra conta com duas adaptações para anime, uma dos anos 1960 pela Mushi Productions do próprio Tezuka e uma de 2019, assim como um longa-metragem live-action de 2007.^
  8. Classe de criaturas e espíritos encontrados no folclore japonês.^
  9. Inclusive, autores diferentes podiam aproveitar o “ator” de um outro mangaka, como Shotaro Ishinomori ao usar um mesmo design de Tezuka em um de seus próprios mangás (os quais, inclusive, eram majoritariamente sobre ciborgues, andróides e outros seres artificiais, como Kamen Rider, Cyborg 009 e Jinzou Ningen Kikaider^
  10. O conceito para esse mangá foi inspirado pela trupe teatral Takarazuka Revue, toda composta por mulheres, as quais interpretavam tanto personagens femininas quanto masculinas. Eventualmente, elas adaptaram para o palco alguns mangás, como Black Jack e Phoenix, de Tezuka, assim como Rosa de Versalhes, que por sua vez foi influenciado por A princesa e o Cavaleiro.^
  11. Vale conferir a adaptação de 2001, com roteiro de Katsuhiro Ohtomo (também conhecido como o cara que dedicou ao Osamu Tezuka sua obra-prima Akira) e dirigida por Rintaro, que mistura elementos do mangá original com o filme homônimo de Fritz Lang. O mangá foi editado no Brasil pela NewPop.^
  12. O mangá conta com múltiplas adaptações e sequências para a T.V., quadrinhos e cinema (incluindo um longa dirigido por Nobuhiko Obayashi, com Joe Shishido como o personagem titular). Uma adaptação para anime de 2004, supervisionada pelo filho de Tezuka, Macoto Tezka, chegou a passar no canal Animax no Brasil, mas o mangá em si infelizmente nunca foi publicado por aqui.^
  13. Essa adaptação foi lançada no Brasil pela NewPop.^
  14. Outro quadrinho de Tezuka que foi lançado no Brasil pela NewPop.^
  15. Note também que estamos generalizando para simplificar as coisas.^
  16. Estou usando a definição de Scott McCloud em Entendendo os quadrinhos (1993), apesar de conhecer suas limitações.^
  17. Isso pode servir de exemplo para como as HQs não são necessariamente uma arte sequencial, uma vez que podemos entender que esses dois quadros representam algo que ocorreu simultaneamente. Sobre isso, recomendo este vídeo do canal Quadrinhos na Sarjeta, do pesquisador Alexandre Linck.^
  18. Sobre a questão do tridimensional entrando em choque com o bidimensional, gostaria de mencionar a título de curiosidade The Vampire (1968-1969), adaptação para TV de um dos mangás de Tezuka, que buscou sobrepor animação 2-D à filmagens live action. Houve também Galaxy Boy Troop, que intercalou fantoches e animação 2-D.^
  19. Encontrei essa ideia no vídeo “Animating virtualities in Net-juu no Susume”, do canal Pause and Select. Eu não cheguei a encontrar o texto de Silvio Teri em si, “Animation: The New Performance?”, que saiu em 2010 no volume 20 do Journal of Linguistic Anthropology, então me baseei apenas no que é citado no vídeo em questão.^
  20. Verso do poema “I sing the body electric”, do livro Leaves of Grass, de 1855. O título (“Eu canto o corpo elétrico”) me faz lembrar de Atom e dos demais andróides e ciborgues da ficção^
  21. No Brasil, o mangá foi lançado em 14 volumes pela editora Conrad.^

Phil Solomon – entrevista por Scott MacDonald (tradução)

Imagem: The Snowman, Phil Solomon 1995.

Entrevista publicada originalmente em A Critical Cinema 5: Interviews with Independent Filmmakers, 2006, de Scott Macdonald.

Como tantos outros cineastas de sua geração (assim como Alan Berliner, ele estudou cinema na Universidade Estadual de Nova York em Binghamton no início dos anos 1970), Phil Solomon tem mais interesse em reciclar filmes feitos por outros, transformando-os em novos trabalhos que são distintamente seus. Enquanto muitos cineastas usam o cinema reciclado como um meio de satirizar dimensões da cultura norte-americana ou da vida moderna em geral, a abordagem de Solomon foi, desde o início, simultaneamente lírica e elegíaca. Como aluno da SUNY-Binghamton, ele estudou com Ken Jacobs, cujo Tom, Tom, the Piper’s Son (1969, revisado em 1971), que usa a refotografia para reciclar o curta homônimo da Biograph de 1905 em um complexo e notável longa-metragem, tornou-se uma inspiração. Geralmente os filmes de Solomon são evocações de perda – do amor, do tempo, da segurança e da vida – que cantam a beleza daquilo que se foi por meio de evocações rítmicas e textuais mais próximas da música e da poesia do que da maioria dos filmes. 

Desde que deixou a Faculdade de Arte de Massachusetts em 1980, com um MFA, Solomon explorou a substância literal da imagem fílmica através da impressora óptica1, aprendendo a provocar ressonância emocional quadro a quadro a partir de materiais encontrados, sobre os quais trabalha lançando mão de uma ampla variedade de recursos ópticos e manipulações químicas. Os filmes resultantes podem ser facilmente lidos como elegias para as vidas originalmente inscritas no celulóide, e também para o próprio cinema. Remains to Be Seen (versão Super-8mm, 1989; versão 16mm, 1994) e The Exquisite Hour (versão Super-8mm, 1989; versão 16mm, 1994) são exemplos particularmente bons. Ambos os filmes apresentam uma série de sequências visualmente ambíguas, mas com texturas surpreendentes nas quais as imagens são pouco inteligíveis. Frequentemente, sabemos basicamente o que estamos vendo – uma pessoa andando de bicicleta, uma paisagem, um carrossel -, mas não conseguimos mais identificar seu contexto original. Através de som e edição sugestivos, no entanto, Solomon confere a essas imagens díspares uma tonalidade emocional específica.

Em Remains To Be Seen, a metáfora que mais sobressai é a de uma pessoa em uma sala de cirurgia: as imagens e os sons da sala são motivos que sugerem a vulnerabilidade da pessoa que está sendo operada e, por implicação, da imagem do filme e do Cinema em si: “resta ver” por quanto tempo “o paciente” sobreviverá. Em The Exquisite Hour, a declaração na banda sonora de um idoso lutando para aceitar a perda de sua parceira (“nunca vou superar isso, nunca”) serve como o coração (partido) do filme, que evoca uma variedade de formas de cinema – primeiro cinema, filmes caseiros, representações da natureza – todas, como o próprio meio, parecem estar desaparecendo, apesar do que a perda significa para nós. 

Os filmes de Solomon são excepcionalmente abertos à interpretação; eles são menos sobre criar significados específicos do que proporcionar experiências evocativas que recompensam os olhos e convidam ao envolvimento emocional. Eles se dirigem não tanto à audiência, mas ao espectador na plateia que pode sentir o compromisso do cineasta com o processo lento e solitário que produz esses filmes. Por vezes, Solomon colaborou com outros cineastas – com Stan Brakhage em Elementary Phrases (1994), Concrescence (1996), Alternating Currents (1999) e Seasons (2002); com Ken Jacobs em Bi-temporal Vision: The Sea (1995) – mas seus filmes mais impressionantes e memoráveis ​​são empreendimentos solitários, especialmente The Secret Garden (1988), Remains to be Seen, The Exquisite Hour, Clepsydra (1992) e a série de “Twilight Psalms” que ele faz desde 1999: Walking Distance (1999), Night of the Meek (2002) e The Lateness of the Hour (2003). 

Conversei com Solomon por telefone durante o outono de 2000. Adicionamos um pequeno adendo em maio de 2003.

MacDonald: Vamos começar com a sua experiência como estudante na Universidade Estadual de Nova York em Binghamton. No início dos anos 70, Larry Gottheim e Ken Jacobs montaram um programa acadêmico de cinema com energia notável.

Solomon: Sim, eu estava lá em um momento fortuito, de 1971 a 1975, bem no final da primeira grande subvenção para a SUNY durante a administração Rockefeller – então havia muita coisa acontecendo.

Além de Larry e Ken, muitos cineastas estavam lá enquanto eu era estudante: Ernie Gehr (como você sabe, Serene Velocity foi feito em um corredor da SUNY-Binghamton) e Klaus Wyborny, Tony Conrad, Taka Iimura, Alfons Schilling, Saul Levine, Dan Barnett (uma figura-chave para muitos de nós: Mark McElhatten, Mark LaPore, Dan Eisenberg) e Peter Kubelka (estudei o trabalho de Kubelka por um semestre inteiro, com o próprio Kubelka, o que foi muito importante para mim, especialmente para aprender a pensar sobre economia formal). Larry, Ken, Saul e Dan estavam no corpo docente; Kubelka e o resto eram artistas residentes. Foi um momento muito potente.

Binghamton é uma das principais histórias das últimas décadas do cinema experimental, tanto em termos de seu legado de professores (Dan Barnett, Saul Levine e Mark LaPore na Faculdade de Arte de Massachusetts, Dan Eisenberg na Escola do Instituto de Arte de Chicago, Steve Anker e Ernie Gehr, no San Francisco Art Institute); de programadores de filmes (Anker, Richard Herskowitz e Mark McElhatten); e de locais de exibição e oficinas: o Collective for Living Cinema, o Cornell Cinema, a Boston Film and Video Foundation, Views from Avant-Garde no New York Film Festival e a San Francisco Cinematheque.

Mas em primeiro lugar devo dizer como cheguei a Binghamton. Eu cresci em Monsey, Nova York, do outro lado da ponte Tappan Zee, no Condado de Rockland. Em parte porque sou judeu de Nova York, meu pai tinha a comum expectativa de que eu me tornasse médico. Eu nunca pensei que poderia ser médico, mas sempre gostei de animais, então pensei que talvez me tornasse veterinário. Mas eu também amava cinema. No meu anuário do ensino médio, as pessoas escreveram: “Boa sorte em dirigir filmes de animais, ou Lassie“.

Quando chegou a hora de olhar uma faculdade, eu estava procurando um lugar com um Premed2 e um curso de cinema – estava cobrindo minhas apostas – e, naquela época, Harpur, como SUNY-Binghamton era chamada, era, até onde eu sabia, a única escola SUNY que oferecia ambos (as faculdades estaduais eram as únicas que meus pais podiam bancar). Expressei interesse no departamento de cinema em minha inscrição e recebi uma resposta de Ken e Larry explicando que o departamento deles abordava “cinema como arte”. Pensei: “Certo, Bergman, Fellini, cinema de arte europeu”. Eu era um secundarista meio hipster de subúrbio; costumava ir a Nova York para o Thalia, o Bleecker e o Paris – os cinemas que exibiam filmes de arte europeus. Eu também estava interessado nos “filmes de arte” americanos do final dos anos sessenta e início dos setenta – Altman, Rafelson, George Roy Hill, Cassavetes. Então pensei: “cinema de arte” – isso me parece bom.

No meu primeiro semestre fiz cálculo, química – e introdução ao cinema com Ken Jacobs. No primeiro dia de aula – acho que Ken não estava lá – eles desligaram as luzes nesta grande sala de palestras e mostraram The Flicker [1966], de Tony Conrad. Até então eu não tinha formação na estética da arte moderna – eu tinha crescido principalmente com a cultura pop e o rock and roll – e quando as luzes voltaram, pensei: “Que diabos foi isso!” Fiquei muito desconfiado. Pensei que só podiam estar de sacanagem. Mais tarde, quando comecei a dar aula, descobri que muitos de meus alunos se sentiam da mesma forma, embora a cultura pop tenha claramente absorvido muito do que para nós foi o choque modernista do novo.

Continuei meio desconfiado e chateado e, cerca de duas semanas depois, eu dei nos nervos – provavelmente havia cem ou cento e cinquenta pessoas nesta classe – ergui minha mão e perguntei ao Ken: “Quando vamos ver alguns filmes importantes neste curso?” Longo silêncio. Ken levou a pergunta a sério, sem se ofender, e explicou calmamente a natureza do que estava tentando fazer; de fato, durante esse semestre, ele mostrou vários “filmes importantes” e trouxe perspectivas fantásticas sobre.

No final do primeiro semestre, eu estava me abrindo para o jazz de vanguarda, e comecei a descobrir os usos educacionais da maconha e do ácido – e então vi o Blue Moses [1962] do Brakhage e tive o que senti como sendo uma revelação: eu comecei a entender a noção simples, mas importante, da reflexividade modernista, de que, sim, esse filme é sobre Cinema, e o cinema narrativo era essa frente falsa, onde “atrás de cada câmera há um operador” e assim por diante. Na empolgação da minha descoberta, lembro-me de ir até Ken e dizer algo como: “Você acha que alguém pode realmente aprender esse tipo de cinema?” E, com uma sobrancelha levantada, ele disse: “Bem, o que você acha que estou fazendo aqui?”

Pouco a pouco, enquanto eu me desencantava com a pré-medicina, descobri que estava – para grande desgosto de meus pais – me comprometendo completamente com essa excitante e estranha pequena cena do cinema poético, principalmente por causa da paixão e da inteligência dos professores com quem tive a sorte de estudar. Eu definitivamente sou um cineasta por causa da academia, não apesar dela.

MacDonald: Eu costumava ir a Binghamton com alguma frequência para ver apresentações dos cineastas residentes. A primeira vez que fui foi transformadora para mim: um simpósio de fim de semana, em que em uma única exibição de sábado à tarde estrearam The Act of Seeing with One’s Own Eyes [1971] do Brakhage, Barn Rushes [1971] do Larry Gottheim e Serene Velocity [1970] de Gehr. Eu acho que Ken também mostrou Soft Rain [1968], apesar de não ter sido uma estreia. 

Se bem me lembro, outra parte do mesmo simpósio foi um filme do Nicholas Ray feito com os alunos.

Solomon: Que grande período! O filme de Nick Ray a que você está se referindo foi inicialmente chamado de The Gun under My Pillow e, mais tarde, You Can’t Go Home Again [1973] – um filme de várias imagens, usando todo tipo de bitola diferente. Às vezes, Nick sonhava que ainda estava em Hollywood, e às vezes pensava que estava em Woodstock. Você pode descobrir um pouco sobre esse período assistindo Lightning over Water [1980], do Wim Wenders, que trata das aventuras de Nick em Binghamton. Se você perguntar a Ken, descobrirá que Nick quase levou o departamento à falência. Ele estava muito acostumado a ser mimado. Sua estadia em Binghamton não deu certo – vamos colocar dessa maneira -, mas para muitas pessoas, como Richard Bock, que mais tarde foi para Hollywood, e Steve Anker, esse foi um projeto muito memorável. Não sei o que aconteceu com o filme, mas na época foi uma bagunça.

MacDonald: Conte-me sobre você se tornar um cineasta.

Solomon: Recentemente, eu estava lendo um artigo sobre o Robert Wilson e a ideia de Grande Obra [Major Work]. Eu acho que minha geração se afastou dessa ideia, por muitas razões. “Towards a Minor Cinema“, de Tom Gunning, está exatamente correto ao delinear as mudanças de atitude e estética que ocorreram para nós. Olhando para cinco cineastas – eu, Nina Fonoroff, Peter Herwitz, Louis Klahr e Mark LaPore – Gunning fala sobre a diferença entre nossa geração de cineastas e a geração antes de nós, em termos de nossas aspirações cinematográficas. Nossa geração não pensou em trabalhar em grande escala como pioneiros estéticos; nosso cinema parecia mais hermético e pessoal, em termos de assunto e estratégia de exibição (acho que não é coincidência que quatro desses cineastas estudaram com Saul Levine). Não nos sentíamos à vontade com toda a tradição do artista macho de Cedar Bar que alguns dos cineastas experimentais americanos da época ainda pareciam estar dando continuidade.

Eu me sentia afastado de toda aquela cena de cineastas-vanguardeiros estrelas-de-rock-na-estrada, e fiquei desconcertado com o comportamento que vi nas exibições públicas. Eu pensei que muitos cineastas pareciam agressivamente defensivos, hostis e, em alguns casos, pretensiosos, grosseiros ou simplesmente loucos. Na época, Frampton e Sharits, entre muitos outros, tinham reputações bastante notórias, pelo menos no meio estudantil. Todo mundo tinha histórias de Jack Smith, Bruce Conner e Kenneth Anger. Até Stan [Brakhage] podia estar na defensiva e um tanto arrogante naquela época, esperando – e muitas vezes recebendo – perguntas hostis da plateia.

Claro, eu sabia que Ken Jacobs poderia, ocasionalmente, ficar bastante indignado e até ofensivo, mas eu era aluno dele e respeitava sua integridade e paixão.

MacDonald: Uma coisa que ouvi sobre Binghamton naqueles anos é que os alunos tiveram que fazer uma escolha entre Jacobs e Gottheim que, depois de um certo ponto, não se davam bem.

Solomon: Bem, isso não era realmente um problema quando eu estava lá, porque havia muitos professores para escolher e você podia navegar por essas águas com bastante facilidade. Eu acho que isso se tornou um problema quando mais tarde o departamento voltou a ser constituído basicamente por seus fundadores originais (Larry, Ken e Ralph Hocking). Estudei análise crítica com Ken, e seus cursos e programas eram imaginativos e inspiradores. Ele se revelou um grande modelo para o meu ensino. Suas aulas eram intensas; ele não fazia palestras mastigadas. Ele pensou e reagiu de pé. Ele legitimou esses filmes difíceis para mim através de seu entusiasmo e paixão e de sua peculiar e desconcertante inteligência não acadêmica .

Larry era um pensador muito sensível – acho que aprendi bastante com Larry apenas observando-o pensar e resolver problemas estéticos. Ele tinha o que eu chamaria de sensibilidade interna de câmara – penso nele tocando o quinteto de clarinete de Brahms para mim.

De certa forma tive o melhor de Larry e Ken, mas estudei cinema principalmente com Saul Levine, uma sensibilidade completamente diferente – muito mais um doidão. Saul acabara de chegar quando peguei produção. O que aprendi com Saul, especialmente como cineasta iniciante, foi apreciar o mundano. Saul estava envolvido em um certo tipo de cinema torto, cru, em 8mm, não-glorioso, feito de alma. Quando penso em Saul, penso no tipo de toca-discos que você tinha quando criança, tocando um blues distorcido e arranhado do Champion Jack Dupree – que é parte da trilha sonora de sua maior obra, Notes of an Early Fall [1976].

Quando eu estava começando, trazia coisas soltas e improvisadas, e Saul tinha a capacidade, rara em um professor, de encontrar coisas boas para dizer sobre quase tudo. Como muitos outros, eu estava passando pela minha fase Brakhage e mostrei a Saul um rolo fora de foco que eu tinha filmado da minha namorada, um close-up extremo. Saul disse que o lembrava Loving [1957] de Brakhage – só que melhor [Risos]. Não sei se isso foi uma provocação ou como ele realmente se sentiu, mas saí da aula pensando: “Eu posso fazer isso!”. Penso que Saul tinha uma gama mais ampla de apreciação e tolerância, do ponto de vista de um cinema iniciante, do que alguns outros professores, e ele foi muito bom para mim naquele momento de desenvolvimento.

MacDonald: Não sei se The Passage of the Bride [1978] é uma homenagem a Jacobs, mas certamente lembra o Tom, Tom, The Piper’s Son.

Solomon: Ah, com certeza. Quando reconheci a assimilação de Tom, Tom em meu filme, Ken respondeu que meu filme era claramente uma obra sua, mas mais como um Chippendale, muito bem trabalhado. E há a diferença de que Tom, Tom é um daqueles Grandes Filmes, um trabalho sinfônico – que influenciou enormemente a estética do cinema-, enquanto o meu é um filme muito obsessivo, pessoal e “menor”, com um escopo muito limitado de eventos e ambições. Mas as semelhanças também são óbvias. Tom, Tom abriu as portas para a estética de impressão óptica e refotografia que seguiria sua trilha e que se tornou uma vertente importante do filme experimental desde os anos sessenta.

MacDonald: The Passage of the Bride é de 1978; Suponho que existem filmes anteriores.

Solomon: Eu tenho alguns filmes Super-8 antigos e alguns de 16 mm, de 1975 a 1980, que não exibo por vários motivos. Eles eram imaturos na forma e derivados, particularmente, de Brakhage. O primeiro filme de fato bem acabado que fiz foi minha tese de graduação, Night Light [1975].

Você sabe, eu sou um daqueles cineastas que não tem problemas com o termo “cinema experimental”, porque isso realmente descreve parte do meu processo, parte dele, ou seja, que eu experimento, e muitas vezes filmes surgirão de uma técnica específica com a qual estou experimentando. Isso era verdade mesmo no início.

A primeira vez que tive contato com uma Bolex, eu disse: “O que é esse pequeno entalhe com um T?” Era para o tempo de exposição. Eu tinha um rolo de filme, e mantive o obturador aberto por alguns segundos em alguns quadros, e quando revelei a filmagem fiquei tão emocionado com esses dois segundos que fazer exposições longas se tornou uma obsessão por anos. Night Light era basicamente uma investigação de tempos de exposição, influenciadas pelo Fire of Waters [1965] de Brakhage. Não tenho certeza se Brakhage fez experimentos com o tempo de exposição nesse filme, mas descobri afinidades entre o efeito de tempo de exposição em que comecei a trabalhar, a dinâmica das tempestades de raios no filme e os ritmos de algumas cenas noturnas de guerra que eu acho que vi no Prelude to War [1942] de Frank Capra. Tudo isso acabou levando a Nocturne [1980, revisado em 1989].

Antes que as impressoras ópticas JK se tornassem amplamente disponíveis, a refotografia era um processo importante. É claro que Tom, Tom estabeleceu esse método e uma sensibilidade que instruiu muitos trabalhos realizados em Binghamton, inclusive o meu. Comecei a refotografar coisas na parede, usando um projetor Bolex que podia reduzir a velocidade do filme para cinco quadros por segundo – uma proto impressora óptica. Também refilmei visores de super-8 e outras coisas do gênero.

Todo mundo parecia amar Night Light, e eu saí de Binghamton com honras. De fato, depois que saí da escola, esse filme foi minha primeira locação – de Ken. Eu ainda tenho a fatura.

Na verdade, durante muito tempo não distribuí meus filmes. Muitos de nós éramos muito reservados em relação à nossa produção. Foi só quando terminei a pós-graduação, em 1980, que comecei a sentir a necessidade de distribuir meu trabalho. Passei meus anos de pós-graduação trabalhando principalmente em The Bride.

Depois que me formei em Binghamton, morei alguns anos em Rochester, Nova York, e continuei fazendo filmes, e depois escolhi o Massachusetts College of Art em Boston para a pós-graduação – porque Dan Barnett estava lá e mais tarde Saul. A primeira coisa que fiz foi grudar na nova impressora óptica JK do departamento – e nunca mais larguei! Todos os meus filmes foram feitos em impressora óptica.

Desde o início, eu sabia que não poderia fazer o que Stan [“Stan”, daqui em diante, refere-se a Stan Brakhage] fazia: eu não podia filmar minha vida e disponibilizá-la para distribuição. Eu era muito mais reservado e me senti envergonhado com o ato de filmar no mundo. Eu realmente não me sinto confortável filmando pessoas, ou mesmo filmando entre pessoas. Eu gravei muitos filmes caseiros Super-8 e de vídeo, mas sempre os mantive como filmes caseiros.

Para mim, a impressora óptica é uma maneira de rever o mundo bidimensionalmente, com outra camada de distância estética. Há algo sobre o processo de refotografia no nível do quadro que está em sintonia com a minha personalidade; tem a ver com uma espécie de introversão artística e com a ideia de trabalhar com uma secreta máquina mágica.

Quando criança, fui atraído pela ideia de criar pequenos mundos. Brinquei com modelos de super-heróis e criei pequenos cenários de filmes nas paisagens da minha cama. Além disso, em seu esforço para me fazer médico, meu pai me comprou microscópios e conjuntos de química. Eu acho que olhar através desses microscópios para o movimento de organismos minúsculos em slides, um após o outro, levou a – ou pelo menos alimentou – meu amor por espiar pelo “corredor” da impressora óptica e pela minha estética quadro a quadro.

MacDonald: Os conjuntos de química provavelmente alimentaram seu interesse em fazer transformações químicas de imagens.

Solomon: Isso mesmo! [Risos.] Em vez de fazer química orgânica para ajudar a humanidade, decidi usar uma estranha ciência para ajudar a mim mesmo.

Lembro-me de Saul Levine dizendo, meio de brincadeira: “A impressão óptica é para pessoas que não conseguiram fazer de primeira”. De certa forma, isso é absolutamente verdade para mim. Eu tenho uma fase primária em que filmo no mundo e uma fase secundária em que revejo e transformo aquilo que filmei.

Com Passage of the Bride, alguém me deu um único rolo de um filme caseiro de 16 mm feito nas décadas de 1920 ou 1930. Era um filme de casamento que aparentemente incluía imagens da lua de mel.

MacDonald: A doca e os nadadores?

Solomon: Isso mesmo. Fiquei totalmente fascinado com o momento em que a mulher corre pelo gramado e fiquei vendo e revendo aquele rolo, e finalmente o coloquei na impressora e comecei a trabalhar. Passei um ano gerando material a partir desse rolo de cem pés3 e acabei com algo como dois mil pés de material. Fiz tudo o que podia fazer: bipack4 com uma variedade de imagens elementares; diminuí a velocidade; apressei; ampliei; refotografei várias gerações como em Print Generation [1974] de J. J. Murphy – um filme que nunca vi.

MacDonald: Há vários momentos em seus filmes que me lembram de Print Generation

Solomon: Certo. Fico feliz por nunca ter visto o filme, porque ele continua vivendo na minha imaginação.

Agora, sempre que segui uma estratégia como a refotografia por gerações5, não estava perseguindo uma ideia formal ou estrutural; Eu estava tentando criar mais ressonância metafórica no material através da ideia de recorrência existencial e ciclos, tema e variação. Eu fui para a escola durante o auge das “Guerras do Cinema Estrutural” – meu filme (inédito) – uma piada interna – Rocket Boy vs. Brakhage [1980], é uma paródia da natureza acadêmica desse debate e das justas intelectuais que ocorreram: Brakhage versus Snow, e assim por diante. Lembro-me de ver todos esses filmes estruturais na faculdade e eu tinha cadernos cheios de ideias para filmes estruturais – mas fico feliz por nunca ter feito. Muito poucos filmes estruturais mantiveram sua ressonância para mim, mas alguns – Wavelength [1967] e Serene Velocity por exemplo – são surpreendentes e sobrevivem além do seu uso como modelos para os teóricos do cinema.

MacDonald: Na verdade Print Generation é tão incrível quanto qualquer um desses. 

Solomon: Eu preciso vê-lo.

De qualquer forma, depois da alegria puramente experimental de retorcer variações do material, fiquei obcecado com essa imagem do casamento enquanto suas possibilidades metafóricas se abriam lentamente. Na edição, gradualmente encontrei uma história oculta relacionada à minha própria vida. De certa forma, a narrativa é importante em todo o meu trabalho. Eu vim para o cinema experimental a partir de um verdadeiro amor pelos filmes narrativos de Hollywood. Eu estava e ainda estou emocionalmente envolvido com a experiência do filme narrativo. Mas acho que sua ressonância emocional geralmente não é muito profunda e rapidamente desaparece à medida que a hipnose da identificação se dissolve.

Eu também achei muito do cinema experimental meio cabeçudo demais, ou só cabeça; não chegava abaixo do pescoço. Eu queria fazer filmes que você pudesse levar para casa com você e que continuariam a ressoar enquanto eles estivessem vivos na memória; Eu queria algo da experiência emocional que todos nós temos com o filme narrativo, mas sem a vergonha e a decepção pós-hipnótica. É claro que os grandes filmes narrativos, como os de Ozu, Bresson ou Dreyer, criam lágrimas genuínas e conquistadas sem vergonha, porque são meditações na forma – e conteúdo – transcendental.

Nos filmes, sinto que frequentemente me perco no mecanismo de identificação, que é muito diferente da contemplação estética da forma que experimentamos com as outras artes. Não que isso não seja agradável – pode ser uma ótima experiência; mas é fundamentalmente diferente do que eu quero fazer. Há uma verdade dramática que resulta de ótimas atuações – na verdade, à medida que envelheci, fiquei mais interessado em boas atuações do que na técnica convencional de cinema. Eu pouco me importo com o movimento de câmera. Quando vejo uma grande  atuação nos filmes, geralmente fico muito emocionado. Mas sempre soube que não tinha interesse em dirigir atores e forjar narrativas – grande parte desse processo parece ser apenas sobre execução.

Meus filmes surgem do desejo por profundezas emocionais que vivencio nos grandes filmes narrativos, mas sintetizadas em uma forma econômica e poética, usando imagens alegóricas e metáforas audiovisuais. Então comecei a procurar materiais de arquivo para me ajudar a manter algum senso de narrativa – porque soube imediatamente que não podia dirigir pessoas, dizer a elas o que fazer e dizer e depois acreditar no material. Como cineasta, sempre me identifiquei muito mais com a experiência do artista solitário pintando ou escrevendo um poema ou compondo músicas a partir de alguma necessidade pessoal íntima, do que com a natureza colaborativa do processo de produção industrial de cinema.

Ken foi fundamental para mim em usar found footage, porque ele podia procurar material em latas de lixo e lojas de penhores, filmes de hospital: qualquer coisa era válida na sua busca por verdades misteriosas e frequentemente não intencionais. Isso se concretiza perfeitamente em seu Perfect Film[1985], em que tudo o que ele precisou fazer para revelar a verdadeira história por trás daquela narrativa foi colocar aquele pedaço de filme encontrado sob suas lentes Jacobsianas. Claro, o que diferencia Ken de muitos outros cineastas que trabalham com found footage é que ele realmente ama e respeita o material original e não o trata de forma irônica, com uma postura pós-moderna pretensiosa. 

Tento abordar o found footage de forma sincera, para descobrir verdades ocultas nas pessoas e eventos registrados na película. Verdades narrativas. Em The Passage of the Bride, eu estava olhando para o que aquela mulher estava fazendo e para todos aqueles homens com as mãos nos seus ombros, forçando-a para dentro do carro. Tornou-se meu Filme Zapruder.

Eu queria trabalhar biograficamente, mas de uma maneira “reprimida”. Tento submergir os significados e as referências pessoais latentes por meio de uma variedade de técnicas químicas e de impressão óptica, mas é absolutamente essencial para mim que meu trabalho parta da minha vida. Por exemplo, eu e minha namorada de colegial e de faculdade finalmente terminamos quando chegamos na questão de se casar ou não – e isso influenciou a realização de Passage of the Bride. No início e no final do filme, o nadador masculino está sozinho, nadando no grão do filme. Eu vi essa figura como eu mesmo, em uma espécie de montagem dialética com a narrativa do casamento da Noiva.

Por outro lado, embora esse tipo de narrativa autobiográfica oculta tenha sido extremamente importante para mim ao fazer o filme, não é necessária para a apreciação do filme. Pelo menos espero que não. A premissa de todo o meu trabalho é que existe um significado pessoal, mas também espero que haja verdade emocional suficiente para que o significado se expanda mesmo que você não conheça as informações biográficas específicas.

Finalmente, em The Passage of the Bride, há também uma subcorrente metafórica do “Grande Vidro” [La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Le Grand Verre, 1923]  de Duchamp  e de seus mitos da Noiva e do Solteiro, pelos quais eu estava muito interessado na época.

MacDonald: What’s Out Tonight Is Lost [1983] é uma combinação bizarra de imagens.

Solomon: O título vem de um verso de um poema de Edna St. Vincent Millay, mas o poeta John Ashbery – particularmente seu período intermediário: A Wave e Houseboat Days, ótimos livros – foi uma grande influência no estilo e no sentimento do filme. Ashbery tem esse tom calmo, sensível e prosaico, que parece tão cotidiano e “direto ao ponto”, mas ele continuamente faz essas curvas inesperadas, e você não tem certeza para onde ele está indo, por que ou como explicar aquelas estranhas justaposições. Mas ao final do poema elas parecem absolutamente certas. Era onde eu queria chegar.

Eu também tinha me interessado em deixar de usar a montagem no sentido tradicional. Os cortes secos pareciam brutais para mim. Quando eu estava na faculdade, fiquei bastante impressionado com a excitação cinética da montagem soviética, mas gradualmente senti que aquele tipo de montagem era um beco sem saída, especialmente dada a ironia do pesadelo de Eisenstein: que seu método marxista dialético se tornou a grande ferramenta do capitalismo tardio, particularmente em comerciais de televisão e videoclipes. A montagem radical, que fora um domínio exclusivo da vanguarda e uma fonte de grande invenção e riqueza, tornou-se clichê e brutal, algo próximo da guilhotina – cortando a cabeça de todos.

Eu queria suavizar as justaposições de imagens e fiquei muito intrigado com o uso de dissolves; quase todo o meu trabalho está envolvido na tentativa de encontrar novas maneiras de dispor uma imagem significativamente seguida a outra. Aprendi bastante com alguns momentos maravilhosos de filmes narrativos que usam dissolves muito poderosos, não apenas como indicativo de deslocamento espaço-temporal, mas como uma metáfora gráfica. A Place in the Sun [1951, George Stevens] e o Dr. Jekyll and Mr. Hyde[1932, Rouben Mamoulian], por exemplo, têm fantásticos dissolves metafóricos.

Então, quando eu estava fazendo What’s Out Tonight Is Lost, fiquei muito interessado em usar dissolves como forma de criar continuidade e em trabalhar com a textura em geral como uma espécie de atmosfera emocional, de modo que, conforme as texturas mudam, o sentimento também muda. Esse filme, como tantos outros, é sobre perdas iminentes.

MacDonald: Eu tive uma experiência mais longa com The Secret Garden do que com qualquer outro filme seu. Por um longo tempo, tudo o que pude ver no filme foram os resultados da técnica, que são impressionantes. Eu ficava sentado e pensava: “Uau, olhe essas imagens!” Mas quando cheguei à segunda metade do filme, eu já tinha tido o suficiente, e minha mente divagava, e eu decidi que o problema com o filme é que ele é pura técnica .

Continuei voltando ao The Secret Garden e me envolvi em dois outros níveis. Um envolvia os materiais originais com os quais você estava trabalhando: em um momento, vemos o título “O Mágico de Oz” e percebemos, mesmo que não saibamos quais são todas as fontes, que elas podem ser e provavelmente são filmes populares identificáveis. Então fiquei imaginando se deveria fazer essas identificações e como você poderia usá-las. O terceiro nível – e isso finalmente me atingiu – é que é uma narrativa de Queda do Éden. Claramente, há uma maçã sendo oferecida na metade do filme, após a qual você passa de um mundo de luz para um mundo de trevas. Olha o tempo que levei para chegar a essa narrativa mítica simples…!

Solomon: Mas essa revelação é o tipo de deleite e compreensão que advém do trabalho com ambiguidades criativas e expressivas, tanto na forma como no conteúdo. Felizmente, cada visualização revelará algo novo, no nível macro ou micro. O mesmo vale para a melhor poesia, pintura e música. Revelações e recompensas vêm com encontros repetidos e estudo mais profundo. Até a peça mais simples de Bach me parece totalmente complexa.

Eu vejo e revejo muito meus filmes, então tento construí-los para durar. Nós, cineastas experimentais, temos esse trabalho estranho em que damos uma volta com nossos filmes, mostramos e dizemos: “Alguma pergunta?” Imagine pintores fazendo isso! Na verdade, eu gosto muito dessa experiência – novamente, talvez ao contrário de uma geração anterior de cineastas que geralmente eram defensivos e desprezavam as perguntas do público. Claro, eu entendo o porquê: eles tiveram que travar uma boa luta e abrir espaço para esse tipo de filme. Eles prepararam o terreno. Mas minha geração teve uma concepção diferente da apresentação: não precisávamos nos ver como defensores da arte ou como missionários. De qualquer forma, eu sei que vou assistir meus filmes toda vez que viajar com eles, o que é muito, então eu os faço de uma maneira que possa me interessar a cada nova exibição.

Parece que há dois lados em ser artista: a responsabilidade pelo trabalho no ato de fazê-lo; e o aspecto social de mostrar e comentar o trabalho, que é secundário. Como todo mundo, eu quero ser amado, e quero ser entendido, e quero que meus filmes sejam amados e entendidos. Mas, ao mesmo tempo, o tipo de trabalho que sempre me atraiu é precisamente o tipo de trabalho que você não capta na primeira vez, mas que, apesar de não captar, você percebe autoria e intenção verdadeiras.

John Ashbery é o exemplo perfeito. Li e reli seus poemas – mas nunca sinto que posso fechar a porta de muitos deles. “The Road Not Taken”, de Robert Frost, é um poema adorável, de certa forma perfeito, mas acho que eu o captei – e eu realmente não preciso voltar nele novamente, exceto por uma visita ocasional a uma parte específica. Gosto da sensação de que, mesmo que não entenda o que a obra está tentando fazer, sinto que faz. Quando você assiste a um filme de Brakhage, você nota um senso de autoridade, uma vontade, a luz guia da intenção, e precisa confiar que ele sabe o que está fazendo mesmo que você não consiga decodificar o filme plano por plano ou mesmo chegar a um entendimento claro de sua forma geral. 

Assistir a filmes é como estar no banco de passageiro de um carro. Em um determinado momento durante o The Secret Garden, você decidiu sair do carro – mas se você sentiu que havia algo no filme que o faça voltar, e se isso levou lentamente a algumas revelações sobre o filme, estou satisfeito. 

A maioria dos filmes é feita para terminar após a primeira visualização. Fui projetista de cinema por quase dez anos – dirigi uma rede de cinemas em Boston para viver – e podia assistir qualquer coisa uma vez, mas muito raramente podia olhar pela janela da cabine de projeção naquele mesmo filme novamente. A maioria dos filmes que eu projetei evaporou após o consumo inicial.

MacDonald: Então, qual foi a técnica que guiou The Secret Garden? Você fez experimentos químicos no material?

Solomon: Não há nenhuma manipulação química das imagens.

Eu não tinha uma ideia preconcebida de que queria fazer algo sobre A Queda. Eu tinha uma lente peculiar; quando você ajustava o diafragma até uma abertura específica, um certo tipo de difusão “indesejada” acontecia. Eu experimentei essa lente em uma variedade de imagens e depois modifiquei a lente de várias maneiras. Todas essas imagens prismáticas no início do filme vem de manipular a luz com uma variedade de técnicas ópticas. Olhando através da Bolex, no corredor da impressora óptica, comecei a ver coisas interessantes acontecerem e, como um cientista, experimentava materiais diferentes. Descobri que certas composições de alto contraste funcionavam melhor para produzir efeitos que me interessavam.

E então eu descobri que um amigo meu tinha uma bela cópia em 16 mm de O Mágico de Oz [1939], e ele estava disposto a me emprestar. O Mágico de Oz foi um filme primordial para mim quando criança, como é para muitas pessoas. Me encheu de pesadelos, mas eu adorei. Todo ano eu assistia em preto e branco e fiquei impressionado quando finalmente o vi colorido.

Então comecei a brincar com essas imagens utilizando essa técnica, e as imagens voltaram com uma qualidade difusa e brilhante e, junto com algumas imagens de luz na água e luz através das árvores, me encontrei no Jardim do Éden; então comecei a pensar em O Mágico de Oz como uma versão clássica da expulsão do Paraíso e da busca por Deus.

O próximo passo foi que alguém me deu algumas sobras de preenchimento de som – material usado para fazer o corte do som, geralmente imagens que as pessoas jogam fora – de uma das versões comerciais de The Secret Garden (embora tivesse legendas em inglês, acho que é a versão de 1949 com Dean Stockwell e Margaret O’Brien). Comecei a experimentar com isso e criei minha própria versão do que se tratava (nunca li o livro e nunca vi o filme contemporâneo). No meu filme, a maioria dessas imagens de Secret Garden é vista durante a segunda metade – e também logo no início: as legendas “once upon a time” e “tell me a story”.

No final da parte paradisíaca do meu filme, você vê Jack e Jill correndo ladeira abaixo – imagens tiradas dos filmes caseiros de meu pai em algum lugar do interior de Nova York. Meu pai fazia filmes caseiros, e ele produzir e projetá-los sempre me pareceu algo mágico. Não era como hoje, quando as crianças podem colocar fitas de vídeo no videocassete. Meu pai teve que montar todo um aparato; foi um evento raro e emocionante. Ah, o cheiro almiscarado daquele projetor Bell & Howell de 8 mm! Uma experiência particularmente formativa foi quando ele mostrou imagens do meu cachorrinho cagando no gramado e depois correu para trás. Minha irmã e eu achamos aquilo infinitamente maravilhoso. Em certo sentido, a impressão óptica é apenas a minha versão do meu pai executando o projetor ao contrário e fazendo com que a merda voltasse para o traseiro do meu cão.

Então a história começou a vir para mim depois que o material voltou. Quando eu estava fazendo The Secret Garden, minha mãe estava muito doente e há um tema inteiro sobre a mãe ausente no filme. Quando meu filme chega à seção do Secret Garden – em que começa a bruxulear [flicker]- em todo o material foi feito bipack com variações de água, outra alusão bíblica: primeiro, o Jardim, depois a Queda e, no final, o Dilúvio. O que se parece com cidades em chamas no final é apenas um pequeno riacho no norte de Nova York que filmei e depois ampliei com minha técnica até parecer o fim do mundo.

Você tocou em algo que é um problema em potencial no meu trabalho. Muitas vezes, quando faço uma exibição, a primeira pergunta é geralmente: “Então, como você fez isso?” Eu sempre espero que minha técnica tenha um propósito expressivo e não seja apenas uma maneira de dizer: “Olha, mamãe, sem as mãos!” Os cineastas na platéia (e, ao que parece, a maioria do meu público são cineastas) costumam se distrair com a técnica. Eu acho que isso desaparece depois de visto repetidas vezes.

MacDonald: Não sei se isso desapareceu completamente. Muitas vezes, seus efeitos são tão incomuns que o espectador não pode deixar de se perguntar como eles são feitos.

Solomon: As pessoas me pedem fórmulas químicas e coisas do tipo, mas prefiro não enfatizar a técnica quando se trata do significado e da importância do meu trabalho. Certa vez meu amigo Mark LaPore me disse, depois de ver uma imagem minha: “Nunca me diga como você fez isso!” Eu acho que prefiro esse tipo de resposta. Mas, basicamente, eu apenas experimento com diferentes fórmulas e diferentes variações químicas. Eu tenho um método de fazer várias cópias do material em que trabalho, para tentar algo e, se não funcionar, poder tentar outra coisa. Eu amo a parte experimental de gerar imagens. Às vezes chego em algo completamente inesperado e, com base no que aconteceu, tentarei outra variação – deixo secar de outra forma ou jogo outra coisa na mistura.

MacDonald: A impressora óptica permite refilmar parte de um quadro ou um quadro inteiro?

Solomon: Isso. Aliás, quando estou filmando no mundo, muitas vezes penso em como vou reenquadrar a imagem quando imprimi-la. 

A impressora óptica tem sido a forma que encontrei de me desvencilhar de Brakhage. Outra noite eu estava conversando com Nick Dorsky sobre o conceito de angústia da influência, de Harold Bloom. Quando eu estava começando, Brakhage (e muitos outros do cânone, como é) parecia ter explorado muitos territórios. A impressão óptica proporcionava um caminho que parecia em aberto.

Muitos cineastas usam a impressão óptica para fazer análise: eles reenquadram algo, diminuem a velocidade e congelam o quadro – evidenciam-o opticamente. Estou usando a impressora óptica principalmente como um meio de transformar ou amplificar a luz, controlar cores e reformular a realidade. A sequência da ampliação da fotografia em Blow-Up [1966] de Antonioni foi uma cena primordial para mim: continuo explorando imagens na esperança de encontrar o corpo!

MacDonald: Essa é uma metáfora particularmente boa para o seu trabalho, porque em Blow-Up a questão é que não sabemos exatamente o que estamos vendo.

Solomon: É exatamente isso.

MacDonald: Em um nível, The Secret Garden sugere uma história mítica de perda da inocência, mas você também está descobrindo, em artefatos decadentes da cultura, essa nova experiência – então em um certo sentido, o filme está reacessando um tipo de Jardim dentro da “Queda” da ruína. Nesse nível o filme é uma parábola modernista sobre criatividade ser a resposta: você reacessa o Céu através do cinema, uma vez que caiu e sabe que há um Céu de onde cair.

Solomon: É uma colocação muito bonita e me lembra os parágrafos iniciais de Metaphors on Vision do Brakhage. Sim, acho que meu filme expressa um anseio por êxtase. Em The Secret Garden, imaginei que Deus (e há uma representação de Deus, pelo menos para mim: o homem de sobretudo que vai embora no final) seria realmente bonito demais, luminoso demais, para ser visto . Eu queria criar um filme em que a luz fosse tão forte que saísse da tela, ao longo do eixo z, para dentro da sala e então de volta para o projetor. Isso reflete meu profundo anseio de ter e criar uma experiência espiritual e extática com o cinema. Para mim, o cinema é um substituto para a experiência religiosa. Tenho opiniões embasadas sobre questões sociais, mas não tenho muito interesse em lidar com elas nos meus filmes; mas o anseio por uma experiência transcendental, por Mistério, está absolutamente no coração do cinema para mim. E digo isso na grande tradição da América-Nova Inglaterra, por mais absolutamente fora de moda que possa ser, nestes nossos tempos pós-modernos.

MacDonald: Remains to Be Seen e The Exquisite Hour parecem intimamente relacionados.

Solomon: Eles foram feitos quase ao mesmo tempo. Os Super-8s originais ainda estão em distribuição. São as versões de câmara desses dois filmes. As versões de 16mm fazem coisas interessantes, mas você perde um senso de detalhes e intimidade. E, claro, o som no Super-8 é magnético, que tem uma certa qualidade.

Fui convidado a mostrar o Super-8 original de The Exquisite Hour na noite de abertura da mostra Big As Life6 no MoMA. Acabou sendo a experiência clássica do Super-8. Havia uma casa cheia das pessoas mais importantes do cinema experimental em Nova York, incluindo todos os meus amigos e colegas cineastas – um dos melhores locais em que já exibi. Meu filme foi marcado como o último da tarde. Durante toda a tarde, tudo correu perfeitamente – mesmo com os projecionistas ajoelhados, executando os projetores de 8 mm – até The Exquisite Hour, quando, de repente, não havia som. Corri de volta para a cabine e lá estava Steve Anker, ensopado com o suor de milhares dessas projeções, tentando freneticamente resolver as conexões. Enquanto Steve pelejava, fui para o público e disse: “Toda vez que quero largar o Super-8, sou tragado de volta!”

Mas no final, o filme parecia incrível. O som da versão Super-8 foi mixado de forma muito grosseira durante uma maratona de mixagem com um amigo. Quando o filme foi ampliado para 16mm (essas cópias em 16mm foram as primeiras em que pude usar o som e a mixagem digital), decidi voltar ao que lembrava do som, sem realmente verificar a versão Super-8, e remixei-a do zero. Algumas coisas foram perdidas e outras ganhas.

MacDonald: Você via The Exquisite Hour e Remains to Be Seen como peças complementares? Os dois se concentram em uma figura que parece estar morrendo e, nos dois casos, há uma mistura do que parece ser flashback, fantasia e fluxo de consciência.

Solomon: Sim. Remains to Be Seen foi um processo longo e trabalhoso, devido a todos os tratamentos químicos e coisas do tipo. Então eu fiz The Exquisite Hour quase que como uma libertação – uma das experiências criativas mais mágicas da minha vida – em alguns dias (todos os dissolves foram feitos na câmera). Normalmente, meus filmes são muito trabalhados em termos de edição, mas esse foi muito intuitivo e quase completamente montado na câmera.

Ambos os filmes foram feitos em resposta ao falecimento de minha mãe após uma longa doença (cerca de cinco anos). Fui à Flórida várias vezes para vê-la e filmei um monte de material de tipo-documental: lente grande angular, foco nítido, preto e branco, sem interferência química. Eu me senti terrível filmando-a – ela odiava ser filmada – mas eu tinha essa necessidade primordial de preservá-la de alguma forma. Nunca consegui fazer nada com essa filmagem, o que é muito revelador. 

Penso no Remains como sendo marrom alaranjado e amarelo ocre, e no The Exquisite Hour como azul de Cornell , então eles eram complementares em termos de cor.

MacDonald: Então, nenhuma das imagens desses dois filmes é realmente dos seus pais?

Solomon: Toda vez que eu olhava as filmagens da Flórida, o referente ostensivo era tão forte – era muito a minha mãe e não filme – que eu não conseguia trabalhar com isso. A estética era irrelevante. Foi quando eu soube, de uma vez por todas, que não poderia filmar minha vida como Stan e outros fizeram.

Minha mãe morreu na mesa de operações, então muito do Remains to Be Seen é sobre ruir. Desde o início, você ouve o som da máquina de respirar, que “rima” com os limpadores de pára-brisa. Durante aquelas cenas de carro pelo Centro-Oeste, você vê palheiros, que me parecem caixões – de novo, eu realmente não tinha ideia do que pretendia com essas imagens quando fiz o filme, mas cheguei a ter todos os tipos de interpretações disso.

Remains to Be Seen começa com a imagem do ciclista: a câmera o segue pela paisagem – imagens de um camponês vietnamita tiradas de um documentário sobre o Vietnã com o qual eu estava muito impressionado. Essa se tornou a imagem central sobre a qual todo o resto girou em torno.

Como já deve estar claro, geralmente começo como uma espécie de caçador-coletor. Então eu vou para a impressora óptica. Meu avô era o clássico alfaiate judeu e trabalhou debruçado sobre uma máquina de costura a vida toda. Quando trabalho na impressora óptica (depois na moviola e, por fim, o som, no computador), sinto que invoco a antiga vocação judaica da costura!

Na verdade, minha mãe aparece em Remains to Be Seen, mas é muito obscuro. Em uma tomada dos filmes caseiros de meu pai, você vê pessoas atravessando uma passarela sobre a água – o Ausable Chasm, no norte de Nova York. Estou segurando a mão da minha mãe. Na minha opinião, a água é o Estige, uma ponte para o “Outro Lado”.

Eu sempre fico emocionado nessa parte quando vejo o filme.

MacDonald: Quando você está montando as várias partes de um filme, o que exatamente mantém o filme unido? É o clima?

Solomon: clima, atmosfera, ar, emoção – um sentimento. Intuição. Respondendo ao que as imagens estão me dizendo em um nível não-verbal. “No ideas but in things” [William Carlos Williams]. Embora eu me considere um intelectual e sou de certa forma entendido e sofisticado em termos de cinema, quando estou trabalhando tento fortemente não intelectualizar demais; Tento trabalhar com o coração e a alma e responder diretamente à imagem, e não atribuir muita informação a priori. Depois que o filme está pronto, começo a vê-lo como um todo e, como qualquer outra pessoa, começo a interpretá-lo e pensar no que significa.

MacDonald: Minha experiência original com seus filmes é musical. É como se você fosse um músico da textura.

Solomon: isso certamente faz parte do que estou tentando fazer. Quando você ouve uma música, o que surge primeiro geralmente vai diretamente para o corpo, e daí para o coração e alma. Pelo menos para um ouvinte amador como eu. Depois, você pode estudar mais a fundo ou ler a partitura, e pode perceber os temas e, eventualmente, acabar encontrando a forma geral, a estrutura profunda e a arquitetura tonal.

O cinema muitas vezes é simplesmente muito óbvio para mim, muito denotativo. Em um filme convencional, o primeiro plano sempre tem esse potencial fantástico, mas, no segundo, 50% desse potencial desaparece; no terceiro, 75%. E cinco minutos depois eu sei para onde a coisa toda está indo. Michael Snow acertou em Wavelength, em termos da forma redutora e dominante da narrativa e do tempo: aquele cone invertido à medida que avançamos em direção à parede e deixamos as coisas para trás. Eu quero continuar em movimento, rumo à branca luz da iluminação. Mesmo que as coisas nos meus filmes sejam ambíguas, visual e tematicamente, e você não consiga decodificar o que está acontecendo de um plano para outro, deve haver um sentimento, uma atmosfera, uma consciência dominante que parece inevitável e correta, de modo que, a longo prazo, você permaneça com ela. 

Eu senti isso profundamente com o Hart of London [1970] de Jack Chambers , que foi uma grande influência no meu trabalho, especialmente em Remains to Be Seen. Aliás, no final de Hart of London, você ouve a esposa de Jack Chambers dizer: “Você precisa ter muito cuidado”, que ele coloca em loop; e no meu filme você ouve, no limite da consciência, uma mulher dizer: “Vai dar tudo certo” – meu aceno a Hart of London.

MacDonald: tanto Remains to Be Seen quanto The Exquisite Hour usam muitos e intensos sons de maquinário-do-universo para que não haja dúvida de que as imagens que estamos vendo são, embora bonitas, também em algum nível agourentas.

Solomon: Sim, bonito e agourento. Isso parece resumir muito do meu trabalho. Eu diria que todos os sons são elementares. Fogo e água em Remains, vento em Exquisite Hour. Com Remains to Be Seen, a estrutura também é sazonal: começa no verão – você vê um nadador – e depois passa para esta seção do outono com as brilhantes folhas douradas e termina com as árvores desfolhadas no azul do inverno.

The Snowman [1995] realmente me surpreendeu. Eu pensei, quando comecei a trabalhar nele, que seria algo elegíaco como The Exquisite Hour, mas acabou sendo algo como A Tempestade. Enquanto eu trabalhava as imagens suscitavam uma espécie de “rage against the dying of the light” [Dylan Thomas], talvez uma raiva reprimida contra meu pai por me deixar órfão no meio da tormenta – daí a sequência em que você vê pai e filho em uma prancha de mergulho, e o garotinho pula no escuro e depois é visto sozinho no meio da tempestade. Muito do The Snowman é ​​sobre a inevitável separação dos pais.

MacDonald: Quanto do que vemos em Remains to Be Seen e The Snowman é deterioração do material original? Quanto disso é a sua manipulação química do material?

Solomon: Remains to Be Seen é todo manipulação minha do material original (as árvores, cachoeiras) e do found footage (filmes caseiros, cenas de documentários).

The Snowman veio dos filmes caseiros de um dos meus alunos; já havia deterioração, provavelmente de mofo, que amplifiquei na impressora. A maneira como as linhas cercam as figuras – eu simplesmente não podia acreditar no que estava vendo! Como um campo de eletricidade nos espaços negativos entre pessoas e paisagens. Eu gostaria de dizer a todos que arranhei todas as linhas individualmente, mas não é verdade. Claro, eu fiz algumas coisas para ajudar nisso [risos] – vou parar por aqui.

Uma coisa que talvez torne meu trabalho único, até onde eu sei, é a tentativa de uma integração homogênea entre o que é imagem original e o que é found footage, de modo que é muito difícil saber qual é qual. Costumo pensar no meu material “original” como encontrado e uso as imagens encontradas como se as tivesse fotografado. Não quero nenhuma diferença irônica entre eles. Na maioria dos filmes sirvo-me de uma deterioração proposital, intencional, mas parte disso é resultado de processos naturais – rolos que ficaram encharcados de água e assim por diante.

Você falou sobre poesia e música. Eu acho que a forma é semelhante à música, na medida em que tem lirismo, textura, cor e timbre, mas as imagens e ideias que são evocadas são como as imagens e ideias da poesia imagista: metáforas, mas espero que não óbvias e bobas.

MacDonald: A estrutura do motivo é muito musical. Tudo o que vemos ressurgirá mais tarde, em um novo contexto.

Solomon: Exatamente. Mas a repetição não é uma informação narrativa, e não é apenas para fins estruturais, mas para permitir que você vá de uma ponta a outra: os contextos mudam à medida que o filme se move ao longo do tempo. Walter Pater sugeriu que todas as artes aspiram à condição da música e, no meu caso, isso parece verdade, pois a música pode criar uma aparência de sentimento humano principalmente através de formas significativas, expressivas e análogas. E quase toda música produz sentido formal usando repetição, com tema e variação. É assim que vejo a repetição de motivos e imagens em todo o meu trabalho.

A propósito, precisamos mencionar Bruce Conner aqui. Muitas pessoas que trabalham com found footage tomaram como modelo os primeiros filmes de Conner, como A Movie [1958] e Report [1967], emulando suas ironias afiadas sobre a cultura moderna. Eu tomo como modelos os trabalhos posteriores, especialmente Take the 5:10 to Dreamland [1977] e Valse Triste [1979] – filmes muito pessoais que vêm da biografia de Conner, mas que estão cheios de inevitabilidades ambíguas: mesmo que você não saiba por que plano B vem após plano A, há uma inevitabilidade no fluxo que parece adequada, que tem uma cadência perfeita. Eu sinto que The Exquisite Hour também tem isso.

MacDonald: é um trabalho extraordinário…

Solomon: É o meu único filme que me parece absolutamente certo do começo ao fim.

The Exquisite Hour tem um prólogo inicial de filmes mudos dissolvendo uns nos outros, algo com o qual eu vinha experimentando anos antes. Originalmente, o experimento não tinha rima ou sentido; eu só estava interessado em costurar os pedaços, quase por acaso. Mais tarde, os resultados pareciam se encaixar perfeitamente no The Exquisite Hour, que é uma elegia para os moribundos e para o próprio cinema. A propósito, todas as imagens da morte devastadora são de vídeo – embora essa não fosse minha intenção quando gravei esse material.

MacDonald: Há uma imagem impressionante de um homem ou uma mulher olhando algo em chamas. . . o que é isso?

Solomon: é de um filme antigo de um mágico e sua assistente em chamas. Nem vi o filme original de onde tirei essa imagem. Eu estava olhando o material e pensei: “Oh, é uma ótima imagem”. O que isso significa? Muitas coisas, incluindo algo sobre alteridade, uma mulher em chamas e o cinema como um ato de conjuração e desaparecimento.

Na metade, o filme fica preto, e o som que ouvimos é uma gravação do meu avô deitado em uma cama de hospital – feito disfarçadamente com um dos primeiros walkmans. Ele tinha mais de noventa anos e acabara de perder a esposa. Ele falava por meio de aforismos: “É uma montanha alta e difícil de escalar”, “Eu nunca vou superar isso, nunca”, “Ela era um anjo”. Usar a voz dele dessa maneira me pareceu muito arriscado, mas eu queria que essas palavras fossem evocadas no filme e não suportava colocá-las sobre nenhuma das imagens.

MacDonald: a forma com que você lida com os filmes antigos parece nos levar de volta à transformação cultural que ocorreu na virada do século passado com a invenção do cinema. Depois, há uma seção de natureza que tem uma relação muito diferente com quem quer que seja a pessoa que está morrendo. Então, depois da passagem em que há apenas voz sobre tela preta, vamos aos filmes caseiros e, finalmente, voltamos à natureza novamente. Cada uma dessas seções é uma evocação de uma parte diferente do nosso desenvolvimento.

Filmes antigos – minha vida gira em torno de ver filmes, muitas vezes mais do que coisas que realmente estão acontecendo! Ver King Kong [1933] quando criança, sem meus pais, e não sair correndo do cinema quando fiquei assustado, foi uma experiência de amadurecimento absolutamente crucial para mim, e criou um desejo duradouro de ir aos cinemas e ver algo que me assusta, em um nível ou outro. A morte de minha mãe faz parte da textura da minha vida, mas, surpreendentemente, não olho para trás como um momento crucial. Em um grau surpreendente, nós somos nossas experiências com a mídia.

Em The Exquisite Hour, duas histórias fundamentais das quais todos fazem parte – nossa história inicial com as mídias e nossas interseções com o que chamamos de “natureza” – precedem o que normalmente consideramos nossa história mais importante: a história de nossa vida doméstica.

Solomon: Essa é uma maneira interessante de ver e muito apropriada ao meu trabalho.

MacDonald: Quem é aquele deitado na cama? Foi você que filmou?

Solomon: Filmei aquele homem com uma longa lente zoom através da janela de uma casa de repouso, a uma quadra da minha casa em Boston. Fico um pouco envergonhado em admitir que voltei todas as noites por não sei quanto tempo, mas me senti totalmente obrigado a fazê-lo e senti uma grande empatia pelo homem. Sinto que talvez eu tenha dado a ele um significativo lugar de descanso no meu filme.

MacDonald: Ironicamente, isso meio que reverte um gesto típico do cinema: normalmente estamos espiando romance ou violência; aqui estamos espiando o Inevitável.

Solomon: E ele está tão . No meio do filme, ele é alimentado por uma enfermeira (e o que você ouve na trilha sonora naquele momento é uma garotinha cantando, como se estivesse cantando do lado de fora da janela dele – na verdade, uma garota hassídica cantando do lado de fora da casa dos meus pais à noite, que gravei há muito tempo). Mais tarde, o homem levanta o braço, algo como Keir Dullea em 2001: A Space Odyssey [1968] apontando para o monólito, e você ouve, muito sutilmente, o som de um barco rangendo. Ele continuou levantando o braço, morrendo assim por trás das grades, sempre apontando. Uma noite voltei e o quarto estava vazio.

Outra coisa sobre found footage: os fabricantes de lentes, a Kodak, toda a indústria, trabalharam para tornar a reprodução cinematográfica da vida cada vez mais real, no sentido superficial. O som surround Dolby faz parte disso (embora, na verdade, o Dolby torne o filme inteiro mais plástico, menos realista para mim). Sou uma espécie de arqueólogo ao contrário: tento descobrir verdades nesses artefatos jogando a terra de volta neles. Eu enterro as coisas ao invés de escava-las. Para mim, found footage  têm sido uma maneira de desvendar verdades perdidas.

Em Clepsydra, grande parte do material veio de um filme educacional, How to Tell Time.

MacDonald: Eu imaginei! Haviam tantos relógios – até o carrossel se torna um relógio!

Solomon: Exatamente! Muito obrigado. E as maçanetas das portas. Quando olhei para o filme original, não conseguia acreditar em como era completamente estranho, especialmente em sua ideia de escala – a garota pequena e esse relógio grande. Então estou jogando com um baralho de cartas freudianas nesse filme. Para mim, o interior da casa está cheio de horrores, e quando ela sai de casa no final, é como sair da Casa de Usher. O que o filme sugere é um trauma de incesto; não é direto, mas está lá.

MacDonald: Há uma cachoeira em Clepsydra? Tenho dificuldade de identificar algumas das imagens.

Solomon: Sim. Boulder Falls. A maior parte das imagens desse filme é bipack com imagens de água de algum tipo. Fotograficamente, eu colocava a cachoeira sobre as imagens e depois as tratava.

MacDonald: Às vezes parece pintura a spray.

Solomon: Parte é. Sprays diferentes.

MacDonald: Você usou a mesma cachoeira em Remains to Be Seen?

Solomon: Não, lá é Yosemite Falls. Em Remains to Be Seen eu sempre vejo a cascata existindo entre o cirurgião e o paciente – um véu de lágrimas.

MacDonald: Há outra imagem em particular que não consigo entender. A primeira imagem é a menina dormindo, então a câmera sobe e tem essas mulheres andando; é a terceira imagem que não consigo identificar.

Solomon: A primeira imagem é na verdade um garoto dormindo – o garoto que entra no ônibus no final do filme. A imagem a que você está se referindo é pessoal; é a pessoa a quem o filme é dedicado. Na verdade, eu me perguntei se essa imagem poderia ter sido um erro artístico no trabalho. Também reaparece ao contrário como a penúltima imagem. A câmera amplia o zoom no início e diminui o zoom no final. Estamos olhando para alguém com quem tive um relacionamento na época, uma vítima de incesto. Ela está dormindo e há sombras de venezianas em seu rosto. De fato parece diferente do resto do material desse filme, e sempre pareceu um pouco fora do corpo principal do filme e também muito explicitamente referencial.

MacDonald: Walking Distance me parece uma espécie de filme de pesadelo, talvez até sobre o Holocausto, uma visualização do inferno.

Solomon: Totalmente, mas deixe-me voltar um pouco e falar sobre os “Twilight Psalms” em geral.

Primeiro de tudo, o tema apocalíptico parece perpassar todo o meu trabalho – desde o final de Nocturne até a última cena em Remains to Be Seen e a tempestade de poeira em The Exquisite Hour. Em Remains, há o clarão cósmico apagando os dois personagens na praia. The Secret Garden às vezes parece um dilúvio ou uma cidade em chamas – pensava nisso como o fim do mundo. Eu não sei exatamente de onde vem essa tendência em mim e no meu trabalho, exceto que eu costumava ter sonhos recorrentes de maremotos em que eu estaria na praia e veria a onda chegando e estaria fugindo dela.

MacDonald: Eu tive minha versão desse sonho.

Solomon: Até hoje não o vi realizado em filme, exceto, devo dizer, em The Perfect Storm [2000], que apresentava falhas, embora a onda digital tenha chegado muito perto da onda dos meus sonhos. Eu sei que o sonho vem de quando eu era criança em Asbury Park e uma criança da vizinhança me empurrou para o oceano de brincadeira. Eu pensei que iria me afogar.

Mas sempre fui atraído por visões apocalípticas em geral: as pinturas de Bosch, certos tipos de filmes de terror. Então, quando cheguei à impressão óptica, foi um impulso natural avançar para o fantástico, o horrífico. Quando meus pais adoeceram e morreram, num período de três anos, isso se tornou um assunto dominante no meu trabalho por um longo tempo. Eu acho que o cinema é particularmente hábil em invocar perdas. O cinema é como uma sessão espírita: você pode conjurar espíritos, despertar os mortos.

MacDonald: Walking Distance se assemelha um pouco ao Triunfo da Morte de Pieter Brueghel, o Velho [1562].

Solomon: Sim, e também Francis Bacon e Albert Pinkham Ryder. Edith Kramer [diretora do Pacific Film Archive em Berkeley] me aplicou em Ryder, e fiquei impressionado com quão evocativas eram suas pinturas e suas texturas eternamente derretidas e rachadas. Eu sempre estive intrigado pelo escuro, pela noite.

Cheguei a um certo ponto do meu cinema em que senti que precisava enfrentar questões maiores do que minha biografia reprimida. Além disso, eu queria trabalhar em um projeto maior, um projeto sobre o milênio, embora não quisesse lidar com o peso de um único filme longo, especialmente porque eu trabalho quadro a quadro. Com 1.440 quadros por minuto, cinco minutos é um filme longo!

Estava intrigado com como Stan e outros artistas faziam o uso de séries. Por isso, pensei em fazer uma série de filmes e criei um título geral, os “Twilight Psalms”. Normalmente trabalho da maneira oposta: começo o filme e o título aparece em algum momento do processo. The Twilight Zone [Além da imaginação] foi formativo para mim; quando criança, ficava assustado e emocionado com a série. E apreciava sua qualidade moral – todo episódio era sobre uma questão moral.

Comecei a coletar episódios de Twilight Zone em laser disc e a revê-los. Eu amei alguns dos títulos, então comecei com eles. Walking Distance vem de um episódio com Gig Young, uma pessoa de quase cinquenta anos, em traje de flanela cinza, no momento da crise da meia-idade. Seu carro quebra a uma curta distância de sua casa de infância, então ele vai visitá-la e volta no tempo – vê-se quando criança e encontra seu pai. Ele tenta falar consigo mesmo quando criança; ele quer avisar o garoto para aproveitar sua infância agora porque a vida fica muito difícil. O pai finalmente o confronta e diz que precisa sair: é a hora dele, não a sua. Achei isso muito comovente, e é o tema subjacente de Walking Distance. Há um ponto no filme em que meu pai aparece e sinto que estou nadando em direção a ele.

Você conhece o trabalho de Robert Wilson?

MacDonald: Um pouco, sim.

Solomon: Eu gosto da maneira como Wilson trabalha com personagens históricos: Einstein, Poe, quem quer que seja. A pessoa histórica é um ponto de partida para seus sonhos teatrais. Isso é basicamente o que eu tinha em mente. Eu pensei que Walking Distance seria o Twilight Psalm I e que seu foco seria Harry Houdini, como um emblema do século XX. Em 1999, muitas pessoas estavam refletindo sobre o século passado, e eu estava lendo sobre Houdini e lembrando do filme de Tony Curtis, que foi poderoso para mim quando eu era criança. No começo do meu filme, você vê o verdadeiro Houdini amarrado em uma cadeira, lutando para sair, e mais tarde ele está tirando uma camisa de força. Você também vê o Houdini de Tony Curtis.

Em algum momento do processo, fui diagnosticado com uma grave condição pulmonar, e o filme mudou do meu pensamento sobre o século XX para o problema pessoal em questão. Comecei a me identificar com as imagens de Houdini, ou seja, comecei a pensar mais seriamente em minha própria morte e em como eu poderia não escapar dessa doença. Uma história sobre Houdini que me intrigou – pode ser uma lenda – foi quando o jogaram, dentro de um cofre, em um buraco no gelo, e ele não conseguiu encontrar o caminho de volta à superfície. A história é que ele respirou através desses pequenos bolsões de ar sob o gelo e ouviu a voz de sua mãe, que o guiou de volta ao buraco – e sua mãe morreu naquela noite.

Agora, não me lembro de quanto de verdade havia nessa história, mas sei que mais tarde Houdini ficou obcecado com a vida após a morte e em desmascarar picaretas que alegavam falar com os mortos. Em Walking Distance, senti como se estivesse tentando entrar em contato com minha mãe e meu pai. De certa forma, o filme foi uma oração para eles, pedindo orientação e ajuda. Ambos estão lá, assim como eu enquanto criança. Então esse era o meu assunto, como o conteúdo latente de um sonho, que ninguém saberia apenas vendo o filme. Mas o sentimento está todo lá.

O filme começa com um personagem suspenso de cabeça para baixo em uma corda, como algum tipo de casulo, e a última imagem é de um equilibrista em algum tipo de jornada, como a ascensão de Orfeu. Assim, a corda se move da vertical para a horizontal no decorrer do filme, de um fio para um chão trêmulo. O que há entre as cordas é com você.

Tecnicamente, em Walking Distance eu estava, novamente, tentando fugir da tirania do corte. Imaginei a emulsão criando o filme enquanto você o assiste, como se estivesse solta, derretida e escorrendo pela tira de filme no projetor, e às vezes coagulando em imagens que depois se dissolvem de volta ao caldo. Como o oceano de memórias em Solaris [1972, Andrei Tarkovsky]. Eu acho que é assim que a consciência funciona.

MacDonald: Nos últimos anos, você trabalhou em vários filmes em parceria com Brakhage. Como você e ele começaram a colaborar?

Solomon: Em 1991 me candidatei para um emprego que abriu em Boulder. Eu nunca tinha realmente encontrado com Stan, apesar de obviamente tê-lo visto exibir filmes muitas vezes. Como parte da minha entrevista, havia um almoço. Eu estava muito nervoso. Não sabia o que esperar e principalmente não sabia o que esperar dele em relação ao meu trabalho. Acho que a surpresa mais bonita da minha vida artística foi a resposta de Stan quando o encontrei: ele estava com os braços bem abertos para um abraço.

Nossa colaboração começou como dois caras em uma cidade pequena, sem mais nada para fazer. Inicialmente, eu estava apenas tentando ajudá-lo com alguns problemas financeiros que ele estava tendo devido a todas as impressões ópticas que estava fazendo na Western Cine. Eu tinha uma impressora óptica em minha casa, então ele veio e trabalhou lá. Inicialmente, pensei que estava apenas ajudando-o a imprimir esse trabalho pintado à mão que ele estava fazendo, mas de repente estávamos trabalhando juntos como dois músicos. O que foi incrível foi quão sincronizados estávamos acerca de quais “frases” de tinta em movimento estavam articuladas e quais não. Stan normalmente trabalha no que ele chama de transe, e eu tenho minha própria versão disso – mas esse era um tipo social de criação, um dueto, e grande parte da alegria e energia criativa entre nós foi parar nesse trabalho. Elementary Phrases é uma espécie de cartilha de técnicas de impressão óptica e pintura sobre película.

Desde então, colaboramos várias vezes, sobretudo em The Seasons, que foi difícil para mim, mas interessante. O que aconteceu foi que Stan sofreu um câncer e passou a acreditar, com base nas informações médicas que obteve, que os corantes de alcatrão de carvão dos marcadores que ele estava usando poderiam ser uma causa. Ele parou de pintar com os marcadores e começou a gravar e arranhar, entalhar o filme, com ferramentas dentárias. Foi incrível vê-lo se voltar para essa forma tão primária com tanta invenção.

A certa altura, perguntei a Stan se eu poderia ter um pouco do material que ele estava arranhando, para ver se eu conseguia editá-lo. Típico de sua generosidade, ele me deu tudo, e eu fui trabalhar. Assim que havia começado, mostrei um rolo do filme no salão7de domingo à noite, e alguém disse que uma seção do rolo “parece outono” e pensei: sim, é o que é; é uma estação. Isso estimulou minha edição e um dia mencionei a Stan, “Preciso de um verão” e, em dois dias, apareceu um envelope na minha caixa de correio da escola, rotulado “Verão, para Phil”. Típico do Stan.

MacDonald: Deve ser muito estranho estar em Boulder sem Stan.

Solomon: É incrível como esse lugar é chato sem ele. Ele não teve uma boa morte, receio. Estava com dores quase até o fim.

MacDonald: Mas, surpreendentemente, ele estava conversando com pessoas e trabalhando, mesmo em seus últimos dias. Ele lutou contra a dor de maneira notável.

Solomon: Ele era heróico. Verdadeiramente heróico. E um amigo maravilhoso. Eu tenho um projeto inacabado que estava fazendo com Stan.

MacDonald: Qual é o projeto?

Solomon: Nós sempre quisemos fazer um musical; costumávamos chamá-lo de “Fred e Ginger”, porque um de nossos colegas, que odiava filmes experimentais, adorava musicais. Stan pensou que fazer um musical abstrato seria uma vingança digna. Acho que vou usar as sequências dele que ficaram fora do corte final de Elementary Phrases e terminar o filme, em memória.

Também temos os dois últimos filmes de Stan, Stan’s Window [2003], muito simples, muito livre – Mary Beth Reed o montou de acordo com as instruções de Stan – e The Chinese Series [2003], que Stan estava arranhando em filmes de 35 mm com as unhas durante seus últimos dias – são apenas alguns segundos, mas simbolicamente tem de estar no mundo.

MacDonald: Seu filme mais recente, Night of the Meek, me parece algo como um pesadelo apocalíptico pós 11 de setembro, embora suas alusões remontem ao passado: reconheço imagens de M [1931] e de The Golem [1920], e há imagens de tropas de assalto nazistas.

Solomon: Certo, The Golem e Frankenstein [1931] são as principais fontes.

MacDonald: Então, o filme, em sua mente, estava conectado a eventos recentes?

Solomon: Tenho certeza de que foi influenciado pelo 11 de setembro, mas lembre-se de que todo o projeto “Twilight Psalms” foi planejado como um projeto de fim de milênio, como um resumo de algumas ideias sobre o último século. Quando mapeei os vários Salmos [Psalms] em minha cabeça, sabia que The Night of The Meek seria sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Eu não poderia abordar o século XX sem lidar com isso.

Anne Frank também foi uma grande parte desse projeto (o filme é dedicado a ela), e uma das coisas que o provocou foi assistir a um documentário maravilhoso, Anne Frank Remembered [1995, John Blair], que inclui no final a única imagem em movimento dela que existe. Foi encontrado em um filme caseiro de um casamento que ocorreu do lado de fora de seu prédio; a câmera se move do casamento para a janela onde ela morava, e lá está ela – isso é antes de ela estar escondida – com a cabeça para fora da janela; e ela se move. Vê-la se mover foi espantoso. Pensei que incluiria essa imagem, e cheguei a filmá-la, mas no final, não consegui trabalhar com ela – tive que deixar de fora.

Pensando sobre ela, e depois pesquisando sobre o golem – lendo diferentes variações dessa história – e relendo o Frankenstein de Mary Shelley, comecei a pensar em monstros e nessas garotinhas: Anne Frank; Elsie, a garotinha que é assassinada em M; e, é claro, a garotinha de Frankenstein que faz amizade com o monstro e depois é morta inadvertidamente. E no filme The Golem, uma garotinha salva todo mundo puxando a estrela do golem, e ele desaba. Na história do golem, esse rabino cria uma criatura de barro para salvar os judeus de um pogrom, mas sai pela culatra. Muitas pessoas têm visto o golem como uma metáfora da tecnologia que sai pela culatra; também é sobre a arrogância do rabino: sua suposição de que ele poderia ser um deus, que ele poderia controlar o mundo, que ele poderia criar vida a partir do nada. Portanto, essas referências estão todas lá, misturadas em um caldo histórico.

O filme começa com o mundo – a tomada inicial é a Terra – e, às vezes, parece que a Terra está se desfazendo durante o filme, e no final, depois que a garota puxa a estrela do golem e ele desaba, há uma tomada da Terra, ainda lá, tirada de imagens da NASA. Isso é o mais positivo que posso me permitir. O mundo continua girando; e as crianças ainda estão aqui.

Eu sabia realmente o que estava fazendo com este filme. É o primeiro dos meus filmes que não é sobre mim. Eu pensei que Walking Distance não seria sobre mim, mas depois fiquei doente, e acabou sendo sobre a minha doença. Mas Night of the Meek não tem nada a ver comigo diretamente. Como resultado, é o meu filme quanto ao qual me sinto mais confuso, mais incerto.

MacDonald: O que é o som? Há várias camadas de som, mas no início há esse rugido muito poderoso. . .

Solomon: estou tocando isso em um teclado; foi feito com ventos e variações de fluxo de lava. Essencialmente, é o ruído branco que estou modulando em um teclado. Ao fundo você pode às vezes ouvir uma canção de ninar, e também no final do filme você ouve uma pessoa cantando, um cantor de salmos da virada do século passado que eu tratei eletronicamente. É uma estratégia sonora semelhante à de Walking Distance: uma espécie de vento primitivo com fantasmas e ecos por de baixo. 

MacDonald: Como um fluxo de consciência com coisas brotando de baixo.

Solomon: Exatamente.

Eu estava muito nervoso com a peça. Após a exibição do Festival de Cinema de Nova York, vi Ken e Flo [Jacobs] deixando a discussão mais cedo, e me perguntei se eles tiveram uma reação ruim ao filme.

MacDonald: Eu não posso imaginar que eles não admirariam o filme.

Solomon: Bem, Ken e Stan não conversaram por dois anos por causa do 23rd Psalm Branch de Stan [1966/1978].

MacDonald: Eu não sabia disso.

Solomon: Ken disse-lhe: “O que você fez aos meus judeus!” Stan havia pintado as imagens do Holocausto, e eles tinham uma divergência real quanto a isso. Mas acontece que Ken e Flo gostam muito de Night of the Meek.

 

***

Traduzido por Pedro Ávila e Lucas Almeida.
*tradução não autorizada e não oficial feita para fins de divulgação e pesquisa.

 

 

NOTAS:
  1. A impressora óptica – mais ou menos semelhante à truca de animação – é um dispositivo que permite refilmar um filme. Basicamente, consiste em uma câmera com um sistema de lentes, um projetor com uma fonte de luz. O projetor e a câmera ficam voltados um para o outro. O filme exposto anteriormente avança através da janela do projetor, onde é iluminado pela fonte de luz e (re)fotografado pela câmera, quadro a quadro. A impressão óptica permite uma grande variedade de manipulação da imagem original durante o processo de refotografia. Pode-se controlar a velocidade das imagens, reenquadrá-las, iluminá-las e cromatizá-las alternadamente ou criar composições complexas servindo-se de mais de uma imagem no mesmo quadro. A impressora óptica foi muito utilizada pelos grandes estúdios de hollywood já a partir da década de 1920 tanto para fazer efeitos especiais quanto para copiar películas, e a partir da década de 1960 tornou-se instrumento fundamental para boa parte do cinema experimental estadunidense. [N.T] ^
  2. O “pré-médico” (premed) é um período de formação que os estudantes de graduação nos Estados Unidos e no Canadá precisam cursar antes de se tornarem estudantes de medicina. [N.T.] ^
  3. Cem pés equivale a aproximadamente 03 minutos de imagens em 16mm a 24 quadros por segundo; dois mil pés, aproximadamente 55 minutos. [N.T.] ^
  4. Bipacking, ou bipack, é o processo de colocar dois rolos de filme em uma câmera, para que ambos sejam expostos ao mesmo tempo. Enquanto na dupla exposição as áreas claras (transparentes) são somadas, no bipack as áreas de densidade (de “sombras”) serão somadas. [N.T.] ^
  5. Generational rephotography no original; algo como refotografar uma imagem sucessivamente, refotografando a imagem que foi gerada na refotografia anterior e assim por diante. Técnica usada no filme Print Generation de J.J. Murphy.  [N.T.] ^
  6. Em 1998, Steve Anker e Jytte Jensen fizeram a curadoria de Big as Life: An American History of 8mm Films, patrocinado pelo Museu de Arte Moderna e pela Cinemateca de São Francisco; o catálogo, Big as Life: An American History of 8mm Films, foi editado por Albert Kilchesty. ^
  7. Durante anos, Brakhage organizou um “salão” em Boulder nas noites de domingo, onde ele exibia filmes e os discutia com pequenos públicos. No início, esse evento formal era realizado de forma intermitente na casa de Brakhage, mas mais tarde Suranjan Ganguly, então presidente do departamento de estudos de cinema da Universidade do Colorado, sugeriu que o salão fosse realizado no campus. De 1993 até Brakhage deixar Boulder em 2002, o salão era um evento regular. O cineasta Phil Solomon esteve muito envolvido durante toda a existência do salão. ^