Venho humildemente compartilhar minhas traduções de dois poemas da grande Adrienne Rich (1929-2012), publicados pela primeira vez em seu livro Snapshots of a Daughter-in-Law, de 1963. Humildemente não só por Rich ser uma das vozes mais importantes da poesia estadunidense, mas por se tratar de uma primeira tentativa de abordar e verter (como também sorver) a poesia da autora. Quem me sugeriu traduzir esses poemas foi a professora Olga Kempinska, por volta de 2020 ou 2021. Foi o que fiz, com algumas sugestões dela e de Alan Cardoso da Silva, a fim de estudar a poesia de Rich e como ela trabalha a alteridade em seus poemas. Como sempre, traduzir aguça nossa leitura e apreciação das qualidades do texto fonte. Daí, a humildade, tão cristã, ao traduzir uma poeta judia: me aproximei dos dois poemas e sei o quão bons eles são.
Enfim, de lá para cá, resolvi remexer um pouco nas duas traduções, revê-las com novos olhos, mudar o que fosse. Talvez eu tenha pecado, especialmente na tradução de “Prospective immigrants please note”, ao me ater, na medida do possível, à métrica dos versos, sacrificando o tom por vezes prosaico, apesar de rígido, do poema. Ainda assim, replicar as qualidades sintéticas do inglês, assim como a brevidade dos versos, é um quebra-cabeça que sempre me atrai. Daí, na potencial traição, me mantive fiel a meu eu de alguns anos e ao que o fascinou na poesia de Rich, sempre atenta às alteridades, como também a visão de si enquanto outro, estrangeiro.
Quanto a “The Roofwalker”, literalmente “o caminhante/andarilho de telhados”, vale notar que o termo parece ter sido inventado por Rich. Seria, portanto, justo reinventar o termo em português, algo como “vaga-telhas”, “telherrante” ou “telhandarilho”. Contudo, o trocadilho me parece soar mais marcado em português do que a invenção de Rich em inglês, idioma que aceita mais facilmente a composição de palavras novas por meio da justaposição de termos. Cheguei a considerar “flâneur de telhas”, realçando, assim, as possíveis associações entre o ofício dos poetas e o dos construtores que andam sobre telhados. Por fim, cogitei não traduzir como um substantivo, mas como verbo que descreva a ação dos gigantes no verso “Giants, the roofwalkers”: “Gigantes, cruzando telhas”. “Cruzar” foi escolhido por remeter à ideia de “cruzar a rua”, ao mesmo tempo ainda pode suscitar a imagem de trabalhores telhando uma casa. Sinto, contudo, que perdi um tom quase fantástico do poema, no qual “roofwalkers” parece designar um tipo de criatura ou uma espécie de classe.
Como com qualquer tradução, há outras tantas questões e decisões que podem ser debatidas ad infinitum. É bom lembrar que estas não são necessariamente traduções definitivas, mas abordagens de um primeiro encontro com o outro, a poeta, seu(s) poema(s):
The Roofwalker
—for Denise Levertov
Over the half-finished houses
night comes. The builders
stand on the roof. It is
quiet after the hammers,
the pulleys hang slack.
Giants, the roofwalkers,
on a listing deck, the wave
of darkness about to break
on their heads. The sky
is a torn sail where figures
pass magnified, shadows
on a burning deck.
I feel like them up there:
exposed, larger than life,
and due to break my neck.
Was it worth while to lay—
with infinite exertion—
a roof I can’t live under?
—All those blueprints,
closings of gaps,
measurings, calculations?
A life I didn’t choose
chose me: even
my tools are the wrong ones
for what I have to do.
I’m naked, ignorant,
a naked man fleeing
across the roofs
who could with a shade of difference
be sitting in the lamplight
against the cream wallpaper
reading—not with indifference—
about a naked man
fleeing across the roofs.
Pelos telhados
—para Denise Levertov
Sobre as casas mal acabadas
anoitece. Construtores
de pé no telhado. Está
quieto sem os martelos,
as roldanas pendidas.
Gigantes, cruzando telhas,
num convés oblíquo, a onda
de trevas prestes a quebrar
sobre eles. O céu
como vela rota onde vultos
vão ampliados, sombras
num convés em chamas.
Me sinto como eles:
exposto, descomunal,
a quebrar o pescoço.
Valeu erguer um teto—
com esforço infinito—
onde não posso viver?
—Todas as plantas,
buracos tapados,
medições, cálculos?
Uma vida que eu não quis
me quis: nem
minhas ferramentas
servem ao meu propósito.
Estou nu, ignorante,
um homem nu fugindo
pelos telhados
que podia em sombra diferente
estar à luz do abajur
contra a parede creme
lendo—não indiferente—
sobre um homem nu
fugindo pelos telhados.
(tradução: Pedro Ávila)
***
“Prospective Immigrants Please Note”
Either you will
go through this door
or you will not go through.
If you go through
there is always the risk
of remembering your name.
Things look at you doubly
and you must look back
and let them happen.
If you do not go through
it is possible
to live worthily
to maintain your attitudes
to hold your position
to die bravely
but much will blind you,
much will evade you,
at what cost who knows?
The door itself makes no promises.
It is only a door.
“Potenciais imigrantes, atenção”
Você pode
atravessar
ou não esta porta.
Se atravessar
existe sempre o risco
de recordar o seu nome.
Coisas te olham duplas,
você deve olhar
para trás, ceder.
Se não atravessar
é possível ter
uma vida digna
preservar suas posturas
manter sua posição
morrer valente
mas muito vai te
cegar e evadir,
quem sabe a que custo?
A porta em si nada promete.
é somente uma porta.
(tradução: Pedro Ávila)