Oito anos atrás, 26 de setembro de 2012, morria o poeta, pesquisador e ensaísta, meu vô, Affonso Ávila. Em homenagem à sua memória, eu e meu amigo, o poeta Alan Cardoso da Silva, escolhemos seis de nossos poemas favoritos do poeta poente para publicar aqui.
Nascido 19 de janeiro de 1928, o belorizontino com raízes em Itaverava (MG), foi um dos organizadores da Semana de Poesia de Vanguarda de 1963, em BH, além de um dos fundadores da revista de poesia Tendência (1957), que dialogava com os horizontes concretistas e seus amigos paulistas, Haroldo e Augusto de Campos.
Tentei eu mesmo descrever sua poesia, mas gosto tanto do que Paulo Leminski diz para a primeira edição de O visto e o imaginado, que achei melhor assinar em baixo das palavras do judoka bigodudo de Curitiba: “Affonso Ávila é um mestre. Em Minas, é o cara que consegue fundir a tradição, a cabeça lá no ano 2 mil. Barroco-ficção científica.”1.
Assim como Haroldo, Affonso foi um grande pesquisador do Barroco, tendo sido figura fundamental no levantamento e na preservação do patrimônio artístico e arquitetônico de Minas Gerais. Entre seus seus livros de ensaio, destacaria O lúdico e as projeções do mundo barroco (1971) e O poeta e a consciência crítica (1978), em que ele diz:
“E a nossa responsabilidade como artista paradoxalmente adulto, num país subdesenvolvido ainda como o Brasil, nos prescreve uma atitude de permanente consciência crítica, consciência tanto diante da realidade de nosso contexto, quanto da dignidade afirmadora de nossa própria arte. E só estaremos exercendo essa consciência quando formos capazes de inventar, pois — para utilizar aqui um conceito bem adequado de Michael Butor — ‘toda invenção é crítica’.”2
Alguns de seus livros ainda podem ser encontrados por aí, principalmente em sebos, mas toda sua produção poética de 1949 a 2005 foi reunida em Homem ao termo (2008), publicado pela editora da UFMG, faltando apenas seus últimos dois livros, Poeta poente (2010) e Égloga da maçã (2012). Vale dizer que a UFMG também publicou Inventário (2004), reunindo os poemas de 1951 a 2002, de Laís Corrêa de Araújo (1928-2006), sua esposa, minha vó.
Bem, é isso, espero que gostem dos poemas que escolhemos do vô Fonka. Acreditamos que conversam muito bem com o Brasil contemporâneo. Quem sabe não podem nos ajudar a nos manter conscientes e críticos, com o olhar que mira simultaneamente o Barroco colonial e o futuro incerto, sempre inventivos.
Pedro Ávila
(Código nacional de trânsito, 1972)
dentro da faixa
fora do perigo
dentro da fauna
fora do perigo
dentro da farsa
fora do perigo
dentro do falso
fora do perigo
dentro do fácil
fora do perigo
(Código nacional de trânsito, 1972)
LE BATEAU IVRE
Os jovens cabeludos da rua onde mora o poeta têm fama de fumar maconha
Os jovens cabeludos da rua onde o mora o poeta fumam maconha
Os jovens cabeludos fumam maconha na rua do poeta
Os jovens cabeludos fumam maconha na casa do poeta
Os jovens cabeludos fumam maconha em sua casa com o poeta
Os jovens cabeludos buscam maconha na casa do poeta
Os jovens cabeludos buscam droga na casa do poeta
Os jovens cabeludos saem drogados da casa do poeta
Os jovens são drogados pelo poeta
O POETA É UM TRAFICANTE DE DROGAS
(Discurso de Difamação do Poeta, 1976)
CHAFARIZ DA GLÓRIA
& desta água não bebere
i & deste álcool não me embebeda
rei & deste ácido não me esclero
sarei & deste asco não me e
nojarei &
(Cantaria Barroca, 1975)
RETRORETRATO
(Poeta Poente, 2010)
EXPRESSÃO CORPORAL
liberar o corpo deste pano grosso
deste pelo exposto caldo de cult
ura corte e costura mídia e ficçã
o meia-confecção apertada no pei
to afetada jaqueta de má consciê
ncia máscara de nascença arrocha
da ao rosto rótulo rubrica image
m impune ícone ideológico
liberar o corpo deste estômago sô
frego deste espaço da fome lugar
da devoração dia nunca da caça d
ia sempre do caçador dente moend
a do saque digestão do animal pr
edador praga do egito ave de ra
pina rato formiga gafanhoto gula
de pantagruel
liberar o corpo desse potro solto
deste pênis pênsil pater et circe
nsis regalo de galo guru do org
asmo ereção do rei salomão eros
do barba azul astral de serralho
sarraceno fatalidade do falo fú
ria fornicandis império dos sent
idos insânia semântica
a chave do código escreve-se strip-tease
(O visto e o imaginado, 1990)
NOTAS:
Sou suspeita pois sou filha, irmã e mãe de três gerações de poetas Affonso Ávila, Carlos Ávila e Pedro Avila e eu mesma sou uma historiadora da Arte e da Cultura poética, ainda que bissexta. A associação de Alan e Pedro me dão tranquilidade quanto ao futuro da literatura crítica no Brasil. O quê dizer mais do que casulos disse sobre o poeta Affonso Avila? Só tenho a acrescentar que este site soa límpido e ríspido como uma suite de Bach. Parabéns