Cascando, de Samuel Beckett (tr. Alan Cardoso da Silva, comentário de S. Lawlor e J. Pilling)

 

Cascando

1

por que não só o desespero de

ocasião de

palavricídio

não é melhor abortar do que ser infértil?

as horas depois que você partiu são tão inertes

sempre vão se arrastando cedo demais

as garras arranham cegas a cama do desejo

trazendo à tona os ossos os outros amores

órbitas outrora cheias com olhos como os seus

sempre é melhor cedo demais do que nunca

o turvo desejo salpicando as suas faces

digo outra vez nove dias nunca içaram os amados

nem nove meses

nem nove vidas

2

digo outra vez

se você não me ensinar eu não vou aprender

digo outra vez há um último

até o último dos momentos

últimos momentos para implorar

últimos momentos para amar

para saber não saber fingir

até um último dos últimos momentos de dizer

se você não me amar eu não serei amado

se eu não amar você eu não amarei

o coágulo de palavras talha no peito outra vez

amor amor amor batidas do velho percutor

lascando o imutável

jugo de palavras

uma vez mais o medo

de não amar

de amar e não você

de ser amado e não por você

de saber não saber fingir

fingir

eu e todos os outros que vão amar você

se amarem você

3

a não ser que amem você


A “ocasião” que sugere o poema foi o encontro de Samuel Beckett, e a crença de ter se apaixonado, com uma amiga estadunidense de Mary Manning Howe, Betty Stockton Farley, que não era recíproca aos sentimentos de Beckett, logo esse “palavricídio” parece ter sucedido os sentimentos. […]

O termo “cascando” é (raramente) usado na música para distinguir um diminuendo no volume e/ou no tempo. Samuel Beckett usa a palavra “cascando” com referência a Esperando Godot em uma carta a Peter Hall de 14/12/55, e entitula sua peça de rádio de 1961 (originalmente escrita em francês), que não é tão obviamente sobre amor e muito mais preocupada com a escrita, Cascando (também o título em inglês), com música de Marcel Mihailovici. […]

N.T.: Traduzido a partir da edição crítica The Collected Poems of Samuel Beckett (2012), da qual também retirei e traduzi trechos dos comentários dos editores, precisamente das páginas 352-353.

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