Começo este ensaio refazendo algumas das principais perguntas sobre a natureza da literatura que surgiram ao longo da história (algumas delas com respostas já tomadas como verdade absoluta). A ficção é um artifício intrínseco de todo ser humano, independente de sua cultura e seu tempo? E exclusivamente do humano? Possuiria ela uma função na sociedade ou no espírito do homem? Quanto dela depende de seu produtor e o quanto depende de seu receptor? O que define sua qualidade ou falta dela? A ficção pode ser considerada uma representação da realidade ou algo além disso?
Arrisco-me a dizer que pode ser interpretada como uma representação da realidade quando pensamos em seu funcionamento, não em seu conteúdo. A vida, assim como a literatura, sempre instigou no ser humano as mais diversas perguntas. Estamos aqui por algum motivo ou é tudo um grande acaso? O tempo existe realmente ou é mera alucinação? Da onde vem nossa vontade de entender nossa natureza e o mundo? O amor existe de fato ou é apenas uma invenção humana para tornar a realidade mais suportável?
Tanto na literatura quanto na vida é inquestionável o surgimento de perguntas que nos instigam sem nunca poderem ser respondidas com certeza, levando-nos muitas vezes ao desespero existencial e acadêmico. Proponho uma única possível certeza (perdoem-me a contradição) que podemos ter sobre ambas: acontecem através da exploração. A energia colocada na busca pelas respostas não pode encontrar outra saída sem ser explorar e experimentar para todos os lados e para dentro. Se andamos às cegas e, ainda assim, somos obrigados a andar, temos que usar o corpo e os outros sentidos para guiar o caminho, por mais que a existência desse caminho seja incerta.
Para muitos estudiosos a literatura teria uma função específica, seja a de organizar a nossa realidade, de nos livrar dela ou de modificá-la. Por minha vez, não acho que exista uma função. A exploração não é o motivo, a função ou a consequência da vida e da literatura, é apenas seu modo de ser. Tomando então o caráter exploratório como ponto de partida, tentarei analisar o processo de criação literária.
Pode-se dizer que a exploração começa antes mesmo da criação; uma vez que não sabemos de onde viemos e por quê, temos que inventar nosso ponto de partida. É curiosíssimo como todas as estruturas existentes -das mais simples às mais complexas- se constroem em cima de uma fundação feita de nada ou de mistério, o que nos faz questionar o sentido de tudo o que foi construído a partir daí. É como se ao tomar a consciência disso percebêssemos repentinamente que estamos num mar aberto que não nos dá pé. Essa incerteza do sentido das coisas pela falta de fundação pode nos dar dois caminhos opostos; o do medo ou da coragem. Temos medo de nos mexer para criar algo e acabar afogando no mar dos mistérios, por isso muitas vezes acabamos não criando nada, optamos por boiar, inertes. Por outro lado, se não existem o sentido e a segurança, pode-se perder o medo de errar na criação, uma vez que ela não significa nada. Talvez então a literatura tenha duas características intrínsecas: a exploração e a coragem. Eis o primeiro paradoxo: o processo criativo se dá justamente na medida em que se toma consciência do vazio que ele esconde. O escritor é tomado pela adrenalina de não ter nada a perder e de poder errar, pela sensação de liberdade plena. Daí se constroem a vida e a ficção.
Deste ponto de vista pode ser proposta uma discussão sobre a qualidade da literatura. Quanto mais desprovida de função e de motivo, maior seu potencial. É claro que existem criações literárias complexas e muito admiráveis que possuem um objetivo da parte do autor. Estas têm sua qualidade averiguada por outros pontos de vista, como o impacto social, a expressividade lírica, o trabalho com a palavra e com a língua, etc. Sugiro, entretanto, que haja sempre um componente inconsciente da coragem advinda do vazio existencial.
Colocados os pontos iniciais sobre a falta de pontos iniciais, pensemos agora sobre como se dá o processo criativo-exploratório na literatura. Quando falamos em criatividade logo penso numa das reflexões mais famosas da história: “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.” Talvez possamos reformulá-la um pouco, com minhas sinceras desculpas a Heráclito: Através da destruição e da criação, tudo se transforma. (esclarecendo aqui que nada “se perde” simplesmente. As coisas são destruídas por outras. Seja por armas, pelo tempo, pelos vermes). Já há algum tempo formei uma opinião sobre a destruição e a violência: não são de todo negativas. São, na verdade, necessárias, e até mais, inevitáveis. A criatividade requer indiscutivelmente a destruição. São as duas principais potências da Natureza e os dois lados da moeda da transformação. Seus análogos na psicanálise provam meu ponto: funcionamos na contradição (ou contradução) eterna entre Eros e Thanatos.
Tomo aqui como matéria-prima da literatura a realidade bruta em que vivemos, e nossa imaginação como o artífice que escolhe quais partes dela irá destruir, usando a coragem e a violência de combustíveis. Escrever ficção pode então ser interpretado como o processo de exploração na medida em que é preciso destruir os galhos e entulhos para que se possa construir a própria trilha.
Mas não podemos tomar a realidade que exploramos como o caos sobre o qual se faz a literatura, uma vez que ela mesma é construída de representações, divisões e organizações sociais, como uma imensa biblioteca dinâmica. Não se cria destruindo o caos, e sim destruindo os compartimentos de realidade. (Esses compartimentos talvez possam ser comparados com os “frames” dos quais Luiz Costa Lima fala em “Representação social e mímesis). A ficção desafia o real na medida em que perdemos o medo de ir com toda a força contra os muros, sem hesitar. É mágica pois funciona como uma partícula lançada na velocidade da luz que atravessa compartições e capas de livros, levando os personagens de uma extremidade da biblioteca a outra, de um universo a outro.
A questão é como fazemos para romper as compartições da realidade na busca de outros universos. Receio que esta destruição só seja possível quando quebramos a primeira barragem: a individualidade. O abismo da linguagem, já pensado por vários estudiosos, é a expressão perfeita, pois a literatura nos lança -mais que qualquer outro tipo de escrita- para fora de nosso lugar, de nosso corpo, de nós mesmos. Tomemos aqui a metáfora como uma espécie de unidade mínima de ficção: algo que se transforma -pela destruição e criação de si- naquilo que, a princípio, não deveria ser. Isso possui a semente da violência presente na ficção complexa. Tornemo-nos então, para escrever e criar, quem, a princípio, não deveríamos ser. Volta o aspecto da coragem pois temos que destruir parte do que achamos que somos, de nossa individualidade feita de retalhos sociais, genéticos e psicológicos. Perdemos o medo de descobrir que talvez não tenhamos uma essência, algo único que nos defina e que nos prende a nós mesmos. Por essa ótica, a literatura é também um exercício contra o ego.
Esses desprendimentos podem ocorrer de diversas formas. Na metamorfose dos personagens, como em Kafka, na instabilidade dos pontos de vista de Virginia Woolf, na perda (ou destruição) das estruturas de Clarice Lispector, na destruição da barragem entre realidade e ficção de Tolstoi, no desespero existencial de Milan Kundera, na queda da sociedade das aparências de José Saramago, no showing de Hemingway, no qual o narrador abdica quase que totalmente de seu lugar de fala.
Admitindo minha parcialidade, confesso que prefiro as escritas lentas, uma vez que quanto mais o tempo se estica dentro do livro, mais o narrador se aprofunda na experiência de ser o outro e, consequentemente, mais se desprende de si. Igualmente acontece com o espaço, quanto menor é o ambiente do qual os personagens dispõem, mais profundamente são obrigados a explorá-lo.
Podemos perceber grandes reflexões em algumas novelas de Dostoievski que falam sobre a morte sobre esse impulso exploratório do humano (ou do além-humano) de destruição e criação na busca pelo Outro e sobre os diferentes modos de lidar com ele, direcioná-lo e manipulá-lo, amá-lo ou odiá-lo.
Talvez soe estranho a colocação de Memórias do subsolo como um livro que tem a morte como tema. Comecemos por este, então. Falo aqui da morte figurada do personagem que atingiu os limites de sua frustração existencial e que se considera “natimorto”. Da onde vem essa sensação de morte tão latente? A sugestão é que venha da pulsão acumulada do instinto exploratório que surge quando reconhecemos nosso vazio existencial. O personagem descobriu esse vazio, escolhe o caminho do medo e, por consequência da inércia. Mas busca desesperadamente a possibilidade de transgressão e da quebra da lógica e das regras do comportamento humano. Ele percebe que não há nada por baixo das estruturas e se vê na crise de tentar transgredí-las:
“Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apóie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los?”
Há uma rejeição das concepções positivistas sobre o ser humano e sobre boa moral. Para a personagem, são fórmulas que nos transformam em seres mecanizados como meras teclas de piano e que nos encadeiam numa estrutura previsível e eternamente infértil.
Falando sobre o interior de um homem de boa moral e de boas virtudes e vantagens, ele diz:
“Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isso fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário”
Trago estas passagens para uma reflexão sobre o ser como essa tecla de piano que não pode fazer nada a não ser obedecer o que lhe é previsto pela física e pela natureza. Temos um só tom e não podemos criar nada além disso.
O que sugiro aqui, entretanto, é que a criação seja necessariamente um produto feito na transgressão de si. Pois se a música é uma criação que se dá na manipulação do tempo e do silêncio, ela precisa de várias teclas, que transgridem o tempo na medida em que conversam entre si. É isso o que falta ao protagonista para que possa liberar sua pulsão exploratória. Dostoievski nos fala sobre as causas primeiras da melancolia e da literatura. A necessidade de violência, de sofrimento e de grotesquidade do homem vem da urgência pela imprevisibilidade e pela fuga da sanidade que nos é imposta. Talvez Memórias do subsolo seja um anti-manual de como lidar com esse vazio existencial e essa percepção da falsidade das estruturas. O protagonista direciona de modo deficiente essa necessidade acumulada de destruição e fica, consequentemente, preso ao próprio ego e à autopiedade devastadora. A destruição vai para dentro da alma em vez de ir em direção aos compartimentos de realidade que desembocariam na criação.
Entretanto, percebemos que é uma pulsão imbatível: ele se perde em seus devaneios compulsivos, que podem ser considerados uma forma obstruída de ficção. Daí talvez a única verdade sobre a natureza: os seres sempre terão a necessidade de destruição e criação e ela se manifestará de uma forma ou de outra, queiramos ou não. Daí também surgem essas obsessões com pequenos detalhes que se tornam gigantes, como a vontade de esbarrar nas calçadas da cidade com um indivíduo socialmente superior: é a tentativa inconsciente de se encontrar com o diferente, misturar-se fisicamente com ele.
Quando pensamos no Sonho de um homem ridículo, o caminho é outro. O protagonista tem a mesma percepção do vazio existencial daquele de Memórias do subsolo, tudo sempre começa aí. Os caminhos tomados, entretanto, são aquilo que possibilita as diferentes formas de criação. À beira do suicídio -talvez, uma destas formas de “tornar-se outro- ele tem o imprevisto de um sono profundo e acaba tomando outro caminho: o do sonho. Este sonho pode ser interpretado de inúmeras formas. Arrisco-me no palpite de que seja uma viagem astral no espaço-tempo de volta ao paraíso. No passado sublime quando todos os seres falavam a mesma língua e se amavam igualmente, sem luxúria ou ódio, sem regras ou transgressões e, principalmente, sem barreiras, estruturas e compartimentos de realidade. O real era puro e cru. Mas tudo mudou. O homem que sonhava trouxe-lhes o fruto proibido. A língua acabou por fragmentar-se, as pessoas conheceram o ódio, o ego e a luxúria e a realidade dividiu-se inteira: surgiram as barreiras do mundo como vemos hoje, todo quebrado. Pode-se pensar que a ficção, além de destruição de compartimentos da realidade e de nós mesmos, tenha a ver com uma nostalgia desse mundo sem barreiras, com uma língua que não era violenta e não mutilava a nossa natureza inteira. Buscamos pela escrita tanto a aventura de explorar as possibilidades deste mundo quanto a volta ao mundo primitivo, sublime e silencioso, pré-humano e além-do-humano.
Aí está outra contradição (lembrando de Roland Barthes): a fruição do texto literário nasce da fricção entre a vontade de explorar para frente e a vontade de voltar para o passado. Contradição esta que não é negativa, mas produtiva e muitas vezes responsável pelo ritmo do texto, além de sua fruição.
Pode-se dizer até que, em certo aspecto, a ficção se comporta como ciclo fechado em relação à realidade. Veja bem, temos a realidade crua do sonho do homem ridículo, perfeita e fluida, natural e sem barreiras. Depois chega a realidade humana e a separa toda, formando as individualidades, burocracias e estruturas. Após isto, através da destruição das estruturas para a criação de coisas novas (sendo estas qualquer tipo de arte ou transgressão no geral) que acontece na experienciação do outro e na troca de pontos de vista, vamos em direção ao que tinha embaixo, à pureza vazia do mundo que não possui significados e significantes, o causador tanto de nosso vazio existencial quanto de nossa nostalgia de não sentir nada.
Outra contradição: temos simultaneamente medo e desejo por este vazio inalcançável que nos ameaça constantemente e foge quando tentamos aceitá-lo de uma vez por todas. Daí talvez a obsessão de Dostoievski e da psicanálise com o tema da morte. A única escapatória para o desespero dessa inconstância humana entre o vazio e o significado é a arte, irrompendo como a lava de um vulcão em erupção, que somos nós.
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Thais Carvalho Azevedo nasceu em Botucatu, interior de São Paulo. Morou em Macaé, Ribeirão Preto e Niterói. Faz Letras na UFF, pesquisa Clarice Lispector. Gosta de pesquisar, mas ama ensinar. Quer ser professora de crianças e adolescentes. É escritora desconhecida.
Parabéns Thais entre ficção e realidade está realmente um vazio que ocupamos com perguntas, não respostas, contraditórios , bom você me deixou pensando…