O Tao do Pernalonga, por Fred Camper (tradução de Pedro Ávila)

Esse texto foi publicado originalmente em inglês, no dia 1 de março de 2001, pela revista Chicago Reader e pode ser lido aqui. Escrevendo a propósito de uma exibição de curtas de animação de Chuck Jones, estrelando os famosos Looney Tunes, o artista plástico e crítico norte-americano Fred Camper reflete sobre o estilo autoral de Jones e seus desenhos animados produzidos e lançados pela Warner Brothers por volta dos anos 1940 e 1950. O próprio Camper disponibilizou algumas de suas obras e outros textos sobre cinema, arte, dentre outros assuntos em seu site.

Assim como as notas, as imagens não estão presentes no texto original, foram escolhidas pelo tradutor para melhor ilustrar as sequências comentadas por Camper.

 

Charles Martin “Chuck” Jones

 

O Tao do Pernalonga

Um dia de semana à tarde, em 1972, visitei um colega aficionado por filmes em seu lar em Los Angeles. Diversas outras pessoas interessadas em cinema também estavam lá. De repente, às 3 da tarde, todos se juntaram ao redor de uma velha televisão preto & branco. Autorista [auteurist]1 de longa data, imaginei que clássico obscuro comandava suas atenções. Acabou que era uma exibição diária de desenhos animados de Hollywood dos anos 40 e 50 – todos tentavam adivinhar os diretores. Lembro de pensar: “Isso é levar autorismo longe demais”.

Mas no ano seguinte fui convertido por uma das pessoas presentes, Greg Ford, que fez a curadoria de uma série de desenhos animados no já extinto New York Cultural Center, com programações inteiras dedicadas a desenhos dirigidos por Chuck Jones, Tex Avery, Frank Tashlin, dentre outros. Desde então, essa série entrou para os livros de História da animação como a primeira apresentação auterista de desenhos animados, e agora Marty Rubin – que patrocinou a série original de Ford e é atualmente diretor associado do Gene Siskel Film Center – novamente colaborou com Ford para apresentar oito programas de desenhos animados de Chuck Jones ao longo de oito dias, começando dia 2 de março. A maioria são cópias de estúdios ou colecionadores raramente exibidas, então essa pode ser a chance única de poder assistir num cinema a boas cópias dessas alegres, por vezes hilárias, joias cinematográficas, da maneira como foram feitas para serem vistas. Apesar de Jones ser mais conhecido por criar Papa-Léguas e por ajudar a definir Pernalonga, Patolino, e outros personagens, seus desenhos com criaturas menos conhecidas (muitos dos quais estão incluídos na programação) são tão gloriosos quanto.

Em tempos recentes, a Warner Brothers passou a capitalizar sobre o trabalho criado por Jones e outros, vendendo acetatos de animação2 e outros produtos, além de licenciar o uso dos personagens para comerciais. Jones, ainda firme e forte aos 88 anos 3, faz o mesmo em www.chuckjones.com, que também possui uma filmografia completa. Os desenhos podem ser vistos na televisão, mas muito se perde assim. A arte de Jones depende de estabelecer e depois perturbar tempo e ritmo – você deve ser comovido pelo poder ilusionístico da situação dada. Quando as geringonças do Coiote desabam sobre ele, o impacto do acontecimento depende do estabelecimento de sua presença física, uma ilusão prejudicada pelo vídeo. E é possível argumentar que as linhas do vídeo alteram mais as cores sólidas e saturadas dos desenhos animados do que as texturas da face humana.

O grande tema de Jones é controle: as pelejas de seus personagens uns contra os outros, contra o ambiente ao seu redor, e contra si mesmos. Seus desenhos animados são comoventes em parte porque ele cria personalidades reais; Jones reune mais complexidade psicológica em seis minutos do que muitos diretores de hoje transmitem em duas horas de explosões. Seus personagens experienciam dor, duvidam de si mesmos e possuem sonhos. Às vezes eles enlouquecem ou são levados ao suicídio. Criando expressões faciais radicalmente diferentes em rápida sucessão, Jones não apenas mostra um personagem perdendo o controle das circunstâncias como sugere uma vida interior dividida.

Nascido em Spokane, Jones iniciou a carreira nos anos 1930, ajudando a criar acetatos de animação. Seus primeiros desenhos enquanto diretor, começando em 1938, mostravam uma influência de Disney, mas logo divergiram dessa estética; de fato, muito do que a Warner Brothers produziu parece intencionalmente oposto aos desenhos suaves, açucarados e sanitizados da Disney, nos quais a norma são personagens bonitinhos e fofos. O desenhos de Jones são cheios de quebras intensas, transições abruptas, contradições desconcertantes; sua aparência, sensação e espaço são tão irregulares e esfarrapados quanto os pelos do coiote logo depois de ter sido chamuscado por uma de suas próprias explosões. No mundo pertubado de Jones, personagens são menos passíveis de ter seus conflitos resolvidos do que terminar num “Hospital Psicopático”.

A maioria dos defensores de Jones argumentam que esses desenhos animados se adequam aos sofisticados gostos dos adultos, mas creio que algo se perde ao não levar em conta o público-alvo original: crianças. Aqueles momentos que desafiam a gravidade, quando um personagem se lança para fora de um penhasco, percebe que está no ar e se espatifa no chão, podem ser associado às tentativas de uma criança de reconciliar as fantasias de voar com a descoberta dos limites físicos. A forma com que os personagens se esforçam para dominar seus arredores, com suas táticas que frequentemente saem pela culatra, reflete os primeiros tropeços de uma criança; controle e sua perda espelham as tentativas de uma criança de afirmar sua autonomia em face a pais aparentemente onipotentes.

Assistir a uma obra-prima de Jones simultaneamente evoca a experiência infantil da risada incontrolável (dado o ritmo acelerado das piadas) e põe em xeque a solidez e estabilidade do mundo, uma vez que o chão parece literalmente se deslocar sob você. Em geral, Jones brinca com a ilusão, fazendo referências à produção cinematográfica, que podem variar do mundano em Beanstalk Bunny (1955), Patolino diz para o pé de feijão: “É melhor eu deixar de moleza e escalar esse troço senão não teremos filme algum” até o inventório virtual de técnicas de animação em Duck Amuck (1953).

Jones às vezes expressa o tema do controle na linguagem de seus desenhos animados. Em Rabbit Seasoning (1952), Pernalonga confunde as tentativas de Patolino de convencer o caçador Hortelino Troca-Letras de que na verdade é temporada de caça ao coelho, até Patolino acabar gritando “Atire em mim!”, uma exortação que Patolino mais tarde diagnostica como “problemas pronominais”. Mas o mais frequente é Jones realizar o tema do controle através de rupturas espaciais, ritmos dessincronizados ou super-sincronizados, e alterações no sistema representacional do desenho animado, dispositivos frequentemente presentes numa mesma obra, apesar de um ou outro poder ser dominante. Todos dependem de um tempismo preciso [precise timing]4 para nos surpreender: as explosões de Jones sempre parecem surgir um pouco cedo ou um pouco tarde. Na primeira queda do Coiote em Fast and Furry-ous (1949), ele cai fora do quadro enquanto olhamos o céu azul estático. Na segunda, Jones corta de maneira ainda mais perturbadora de uma tomada ao nível dos olhos do Coiote, em seus skis motorizados por um refrigerador, para uma visão de cima para baixo de um canyon espetacularmente profundo.

Fotograma de Rabbit Seasoning (1952), Patolino depois de levar um tiro de Hortelino.
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)

Mouse Wreckers (1949) é um grande exemplo de alterações no espaço. Dois camundongos procurando um novo lar decidem levar o gato residente, o qual ganhou um punhado de troféus de “Melhor Caça-Ratos”, à loucura. Depois de arrastar o gato por um cano de escoamento, a última travessura deles é pregar toda a mobília no teto enquanto o gato dorme, exceto uma lâmpada de teto, que pregam no chão. O gato acorda e, aterrorizado com esse mundo às avessas, tenta se agarrar ao tapete no teto. Primeiro, nós o vemos de cabeça para baixo, mas em seguida o enquadramento rotaciona e nós o vemos de cabeça para cima – o que torna o corte para uma tomada de cabeça para cima no quarto ao lado, onde a mobília está no teto, ainda mais desorientador. Incapaz de processar a mudança, o gato agarra a lâmpada de teto, daí olha por uma janela e vê que a paisagem está ao avesso; um corte revela que os camundongos colocaram uma foto invertida lá. Através de outra janela, a paisagem está de lado, e a visão de uma terceira faz parecer que a casa está submersa. O gato foge aterrorizado de sua casa e é visto pela última vez encolhido e de olhos esbugalhados no topo de uma árvore.

Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)

Long-Haired Hare (1949) é uma das várias excelentes animações musicais de Jones, nas quais a sincronização entre música e ação é bizarramente exagerada, ao contrário da pretensa imperceptibilidade da Disney. Pernalonga começa a cantar alegremente, acompanhando a si mesmo no banjo, “What do they do on a rainy night in Rio?”. Ele é ouvido de uma casa próxima por um cantor de ópera que ensaia, Giovanni Jones, o qual se irrita ao ver a si mesmo por acaso cantando “What do they do in Mississippi/ When skies are drippy?”. Ele sai de casa e quebra o banjo na cabeça de Pernalonga.

Pernalonga é mais tarde visto no topo da concha acústica onde Giovanni Jones está cantando. Acertando o telhado com uma marreta, Pernalonga causa reverberações que fazem Giovanni ricochetear através do palco. Na sequência final, Pernalonga aparece com uma peruca branca e vestindo um traje para concertos, sendo reconhecido pelos músicos como “Leopold”. Quebrando em dois o bastão de maestro, Pernalonga passa a controlar completamente tanto orquestra quanto cantor com suas mãos, cujas posições e movimentos se correlacionam exatamente com o tom e ritmo da música: o condutor como ditador e diretor de cinema (tal qual os camundongos em Mouse Wreckers). Pernalonga quase mata seu cantor: tirando sua mão da luva, ele a põe para o alto no ar e sai andando enquanto Giovanni muda de cores variadas ao tentar manter a nota aguda, eventualmente levando a concha acústica ao chão.

Giovanni Jones, em Long-Haired Hare (1949) sendo ricocheteado pelas vibrações causadas pelas marretadas de Pernalonga na concha acústica.

 

Pernalonga sendo reconhecido como “Leopold” pela orquestra em Long-Haired Hare (1949)
A luva de “Leopold” permanece no ar, Long-Haired Hare (1949)
Giovanni Jones chega a mudar de cor e perder as roupas tentando manter a nota aguda enquanto a concha acústica desaba. Long-Haired Hare (1949)

Os melhores desenhos animados de Jones são auto-referenciais, rompendo com seus próprios sistemas representacionais e lembrando seu espectador dos artifícios da animação novamente ao contrário de Disney. É frequente que isso ocorra em prol de um tema social, coisa que poucos críticos além de Ford já mencionaram. A velocidade impossivelmente rápida de Papa-Léguas sugere o borrão de um automóvel passando por um pedestre seu “bip” até soa como a buzina de um carro o que dá matizes ecológicos aos fracassos sísifos do Coiote. E em uma de suas séries menos conhecidas, um lobo e um cão pastor que estão para lutar até a morte batem cartão. (Os chefes da Warner Brothers eram notórios por não apreciar os esforços de seus animadores; é dito que Jack Warner pensava que a companhia produzia desenhos do Mickey Mouse.)

Duck Amuck não é apenas a obra-prima de Jones mas uma das obras-primas definitivas da arte do cinema, explorando o processo de animação com uma profundidade digna das meditações sobre a produção cinematográfica em O Homem com a Câmera (1929), de Dziga Vertov, e em Blue Moses (1963), de Stan Brakhage. No começo, Patolino aparece vestindo um elaborado figurino de filme de época com um castelo ao fundo, pronto para um duelo de espadas. Mas enquanto a câmera o segue se movimentando para a esquerda, a cor desaparece do plano de fundo, deixando apenas as linhas do desenho, depois apenas o branco. Ao ver isso, Patolino passa a ralhar com um diretor que não vemos um monólogo que constitui a maior parte da conversa. Providenciado com o plano de fundo de uma fazenda, Patolino precisa trocar de figurino, quando o plano de fundo se torna de gelo, precisa trocar novamente. Apagado completamente, ele exige ser redesenhado. Redesenhado com um violão, ele não tem som. Exigindo som, ele toca o violão que acaba soando como uma metralhadora o primeiro de vários sons “errados” tão impressionantemente contraditórios quantos os do filme de vanguarda Unsere Afrikareise (1966), de Peter Kubelka. Os primeiros dois terços de Duck Amuck possuem a aparência de uma tomada única, servindo de pano de fundo para Jones realizar tomadas longas, close-ups e linhas de enquadramento errantes. Enfim, o exasperado Patolino exige ver o diretor ponto em que a câmera se afasta de um caderno de desenhos para revelar o eterno antagonista de Patolino.

Fotograma de Duck Amuck: Patolino vestido de fazendeiro reclama da falta de consistência do diretor/animador que não para de trocar o cenário do desenho animado.

 

Fotograma de Duck Amuck: Patolino, depois de ser apagado e redesenhado, tem seu som tirado pelo diretor.

Fotograma de Duck Amuck
Fotograma de Duck Amuck

Filmes cujas narrativas são possíveis metáforas para o fazer cinematográfico, como Napoleão (1927), de Gance, e Um Corpo que Cai (1958), de Hitchcock, tratam sobre os esforços de artistas em controlar o mundo. Identificando o sadismo do cineasta em Duck Amuck, Jones explicita algo implícito em muitas outras de suas animações: que há genuíno prazer nessas fantasias infantis de dominação e submissão. Apesar de seus desenhos terem sido criticados por sua violência – que é claramente proibida para menores nos parâmetros de hoje -, essa crítica me parece absurda. Qualquer criança consegue ver Jones desmascarando ilusões e sabe que suas criaturas maleáveis estão encenando fantasias de onipotência, não realizando-as.

NOTAS:
  1. À sugestão de Lucas Almeida, segui o exemplo da tradução de Fernando Mascarello de Introdução à teoria do cinema, de Robert Stam. Como diz Mascarello numa nota do capítulo “Culto ao autor”, do livro de Stam: “Adotamos ‘autorismo’, um neologismo de uso infrequente em português, e não ‘política dos autores’ ou ‘teoria do autor’, porque o sentido com que Robert Stam [como Fred Camper] utiliza o termo auteurism no original em inglês abarca tanto essas duas noções (a primeira crítica, a segunda teórica […]), como o aspecto cinefílico do culto ao autor nos anos 50 e 60 [e 70].”) (Campinas, SP: Papirus, 2003) ^
  2. Cell animation ou animação sobre acetatos: também conhecida como animação manual. Processo essencial para animação do período clássico – localizável desde a segunda metade da década de 1930 e ao longo da década de 1940 -, desenvolvido por Earl Hurd e John Bray em 1915. Define-se através do suporte utilizado: acetatos, celuloides ou cells, lâminas de plástico transparente em cima dos quais se desenha ou se situam as figuras que se deseja animar. Uma cena pode conter várias camadas de acetatos superpostas. […] Seu êxito reside no fato de permitir que uma parte de cada composição seja repetida quadro a quadro, com o que se economiza tempo e mão de obra, encurtando o período de produção, ou seja, possibilita não ter que desenhar toda a cena, incluindo os elementos imóveis (como fundos ou personagens estáticos) cada vez que se cria um novo quadro.” (REYES, Dean Luis. A forma realizada: o cinema de animação (tradutor Sávio Leite), BH: Pimenta Filmes e Edições, 2020) ^
  3. O texto de Camper é de 2001, um ano antes do falecimento de Jones, aos 89 anos.^
  4. Timing“, segundo Dean Luis Reyes (traduzido por Sávio Leite), “Refere-se à velocidade com que se executa uma ação na animação e a particular economia de ritmo e de pausa na execução do movimento. Trata-se de um dos aspectos decisivos do caráter final da peça de animação, pois supõe não somente a administração da dinâmica física, da percepção da massa, o peso e a escultura de um objeto, mas também a dosagem da manifestação do universo afetivo e emocional do personagem animado. Isso define, por exemplo, a quantidade de quadros necessários entre ações” (REYES, 2020). Dada a dificuldade de traduzir “timing“, cogitei criar um neologismo, como “momentagem”, mas acabei optando por “tempismo”, termo italiano que se aproxima do original, ao mesmo tempo que soa familiar a ouvidos acostumados ao português, na prática funcionando como um neologismo, mesmo.^

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