Ramones: a versão cartoon do freakshow cretino da vida, por Pedro Ávila

Muitos chamam os Ramones de “os pais do punk” e coisas do tipo. Claro, é possível falarmos em “proto-punk”, bandas anteriores ao período de formação do punk-rock como gênero (meados de 1976~77, com os primeiros álbuns de bandas como os Ramones nos EUA e os Sex Pistols no Reino Unido): muito se fala, nesse aspecto, em The Stooges, The New York Dolls, Velvet Underground, MC5, The Monks, dentre tantas. Mas quando se pensa na imagem genérica de um dito punk — o arruaceiro de cabelo espetado à Bob Cuspe — , tende-se a imaginá-lo ouvindo Nevermind the bollocks, here’s the Sex Pistols (1977), não o garage-rock/rock experimental/etc. dos anos 60.

Foto para cartaz promocional do filme O Massacre da Serra Elétrica 2 (1986), de Tobe Hooper (ou seria mais uma formação dos Ramones?)

E, óbvio, mas curiosamente, não é difícil imaginar nosso Bob Cuspe da vida escutando Ramones. A banda é das mais icônicas e influentes do gênero, mas curiosamente toda essa imagética punk (dá até pra pensar em mitologia) não tem tanto a ver com a música dos “pais do punk”. Essa discrepância já começa por como se apresentavam ao vivo: de jaqueta de couro e jeans rasgados, sim, mas cabeludos, lembrando mais metaleiros ou até motoqueiros (em sua autobiografia, Commando, Johnny Ramone conta sobre serem confundidos com uma Hell’s Angels da vida), do que outras bandas punk antológicas do início do gênero (pense nos cabelos espetados e piercings dos Sex Pistols ou The Clash). Semelhantemente, a letra dos Ramones, por mais raivosa e irônica que fosse, raramente era política. Inclusive, eles foram uma banda bem inconsistente ideologicamente. As imagens trazidas por suas canções (o “cancioneiro ramonesco”?) são de natureza cartunesca e cínica, traço em comum com grande parte das bandas punks, contudo, raramente esse traço era usado pela banda como uma crítica direta ao “sistema”, ou a qualquer autoridade. O próprio visual uniformizado deles, semelhante ao de grupos pré-anos 70 (pense na cabeleira e terninho dos Beatles), é diferente do de outras bandas, que buscavam uma certa individualidade. Ramone nem era o sobrenome de nenhum deles 1: os membros da banda eram quase personagens de desenho animado, sempre com as mesmas roupas, caricatos como seu som.

“Blitzkrieg Bop”, provavelmente a mais famosa de suas músicas, é ambígua e quase imagista, lembrando a condensação poética de uma Hilda Doolittle. Quem mais traçaria semelhanças entre uma blitzkrieg e um concerto de bebop? A música frenética e as pessoas dançantes são aproximadas ao brutal ataque surpresa de uma blitzkrieg e o desespero das vítimas. É uma imagem extrema, que sobrepõe a violência bélica da guerra-relâmpago a um concerto de música pop. Contudo, não chega a ter um discurso ideologicamente definido. A canção não condena a guerra nem o consumo de música pop. No mais, a canção pode servir como uma síntese do som da banda: divertido e simples como a música popular americana de sempre, mas agressivo e rápido como um ataque blitzkrieg. Os Ramones habitam as contradições.

Junkers Ju 87 sobrevoando a Polônia, Setembro–Outubro de 1939

 

Em “Oh Oh I love her so”, o eu-lírico canta como conheceu o amor de sua vida no Burger King, ao lado de uma máquina de refrigerante. A letra e a animada instrumentação tomam como referências a música pop romântica de conjuntos como The Ronettes (cuja canção “Baby I love you” eles regravaram, tendo Joey Ramone até colaborado com Ronnie Spector em “Bye bye baby”, uma canção bem água com açúcar). O vocal de Joey Ramone tem muito mais a ver com os cantores pop e r&b do que com os berros rasgados de tantos vocalistas punk imitadores de Iggy Pop. Contudo, há diferenças notáveis entre a abordagem dos Ramones e dos girl groups de outrora. A rapidez com que a banda toca é óbvia, mas a diferença principal é o tom debochado com que a tratam do romance. Uma lanchonete de fast food é o cenário do encontro amoroso. É um romance sem glamour, em que a cultura de consumo e o universo de referências pop estão presentes. Em “7-11”, os amantes se conhecem numa loja  7-Eleven, enquanto ela jogava Space Invaders no fliperama (música doppelgänger de “Oh oh O love her so”). Em outras canções, o eu-lírico pode estar entediado comendo frango enquanto zanza por uma avenida se queixando de não estar com sua paquera (“I just want to have something to do”). É até difícil afirmar se os Ramones são kitsch por sinceridade ou cinismo. Provavelmente os dois. Mas mesmo nas canções de amor, a violência se torna presente. Pode ser referente à cultura pop, como “Chain saw”, com suas referências ao filme de terror O massacre da serra-elétrica (1974), de Tobe Hooper, ou, de novo, relacionada à guerra, como no caso da infame “Today your love, tomorrow the world”, cujo título brinca com o slogan “Hoje a Europa, amanhã o mundo”, supostamente dito por Adolph Hitler. A conquista do amor comparada à conquista armada, o amor como guerra.

O conteúdo político das canções dos Ramones é mesmo um assunto espinhoso. Assim como é difícil identificar se o lado kitsch é sincero ou puro deboche, as posições políticas da banda são bem conflituosas. O próprio estilo de vestimenta e performance no palco da banda remete a um rigor militar (exigido por Johnny, o comandante) que contrasta com o caráter juvenil das músicas 2. Foram a banda que buscou com mais intensidade sintetizar o rock e o pop norte-americanos numa fórmula sem firulas, destoando do virtuosismo do prog rock e do profissionalismo burocrático das bandas mais populares da época. Extraíram das origens do rock todo seu potencial rebelde, mostraram que não era preciso de superprodução nem entender de música pra fazer música. Tem atitude mais inspiradora para um adolescente revoltado? E ainda assim, os Ramones flertavam com um certo imaginário militar.

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Capa do único álbum de estúdio das Ronettes, Presenting the Fabulous Ronettes Featuring Veronica, de 1964.

Não é segredo o quão direitista e pró-republicano o guitarrista Johnny Ramone era. Em sua autobiografia ele faz algumas listas de top 10: bandas punk, guitarristas, filmes de terror, filmes do elvis. Temas nada inusitados considerando sua carreira musical. Ah, mas ele fez um top 10 membros do Partido Republicano 3. É quase caricatural, mas também não tão inusitado considerando canções que ele próprio escreveu como “Commando”, que por muito tempo interpretei como se estivesse zombando e criticando a política intervencionista dos militares americanos até ler Johnny dizendo que é 100% honesto. A letra que ele próprio escreveu, defendendo seus ideais políticos, mais parece uma paródia desses ideais (“First rule is:/ The laws of Germany/ Second rule is: Be nice to mommy/ Third rule is: Don’t talk to commies/ Fourth rule is: Eat kosher salamis”). Com o selo da águia-careca como sua logo e seu foguete para a Rússia, os Ramones são quase uma auto-paródia inconsciente dos EUA.

Logo dos Ramones, design de Arturo Vega, diretor criativo da banda.

Mesmo o que poderia ser um hino anti-conservador é filtrado pela perspectiva pulp da banda. “KKK took my baby away”, canção escrita pelo vocalista Joey Ramone inspirado por como sua namorada, Linda, o traiu com Johnny (com quem ela se casaria). Se Johnny não tem pudor em chamar Joey de “comunista” em seu livro, Joey usa “KKK” como metáfora para o companheiro de banda (mas não de amizade). A canção é uma dor de cotovelo justaposta à um thriller policial (“Ring me ring me ring me with the F.B.I/ And find out if my baby is alive”). Com os Ramones tudo parece destituído de pretensão ou peso, como se habitassem um mundo de Looney Tunes, naturalmente deformado e colorido, intensificado pelo pop agressivo do instrumental. Uma canção dos Ramones é o coyote explodindo com bananas de dinamite, o Tom tendo seu rosto deformado por uma martelada. Que outra banda regravaria por livre e espontânea vontade a abertura do desenho do Homem-Aranha  4? Ou regravaria “I don’t wanna grow up” do Tom Waits, uma canção torta e angustiada, usando “Eu não quero crescer” como uma afirmação de princípios (já com mais de 20 anos de estrada nas costas)? 5

100 Greatest Movies Month: Predator (1987) Review – Views ...
O ex-governador da Califórnia em seus tempos áureos, sendo caçado na América Central por um alienígena, em 1987.

Essa leitura biográfica de “The KKK took my baby away”, apesar de servir como anedota curiosa, é obviamente limitadora. Não precisamos ir atrás dos detalhes biográficos das briguinhas entre Joey, Johnny e Linda para perceber que a música é estruturada e performada como uma lovesong das Ronettes. O eu-lírico reclama que sua “baby” disse que ia sair de férias mas nunca mais voltou. É o “Ela partiu” dos Ramones: “Se souber onde ela está, diga-me/ Que eu vou lá buscar”; “Ring me ring me ring with the president/ To find out where my baby went”. O próprio uso da KKK como vilões serve pelas rimas fáceis de se obter: “KayKayKay”; “away”, “holiday”, “say”. Podemos até argumentar que a música torna o grupo terrorista em uma piada, ladrões de namoradas, só uns talaricos de merda.

O gosto da banda pela temática cartunesca, a distorção da realidade provocada pela televisão, os gibis e a música pop, está associada ao gosto pelo jogo de palavra. Os Ramones são lúdicos, suas músicas brincam. Seja com os brinquedos da cultura pop ou com as palavras. Não parecem ter nenhuma motivação crítica pra cantarem que todas as crianças querem cheirar cola (“Now I wanna sniff some glue”). Como já disse, é difícil entender o que é ironia ou honestidade, ou até se esses conceitos se aplicam à música do grupo. Segundo Johnny, eles simplesmente achavam engraçado. “Beat on the brat” é muito menos sobre bater num pirralho com um taco de baseball do que é sobre as aliterações e assonâncias da letra:

É mallarmaico: eles não escrevem letras com ideias, mas com palavras. “Beat on the brat” mais parece poesia concreta. Sua repetição é quase como João Gilberto repetindo a letra de “Águas de março” à exaustão, ou mesmo a palavra em branco “Undiú”, como um mantra 6. Mas é também a repetição da qual Benjamin fala em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936), que produziu o mundo em que os Ramones cresceram e viveram (nosso mundo).

Foi Miguel Javaral quem me alertou para a aproximação entre o punk-rock dos Ramones e a pop art: um fascínio com o consumismo norte-americano que não pode ser definido nem como exaltação nem crítica. Pensar as faixas e discos dos Ramones como as reproduções serializadas de Andy Warhol, variações de uma mesma “imagem”, impassíveis de comunicarem algo profundo, pois num mundo de superfícies não tem o que ser cavado. O 2-d em que os Ramones vivem é o do papel em que imprimiam quadrinhos de terror da EC Comics, das serigrafias da pop art. Suas músicas exibem um imaginário violento, arriscando soarem como piadas doentias, assim como a série Death and disaster de Warhol. O que é mais violento, um filme de Wes Craven ou um telejornal qualquer?

Andy Warhol (1928-1987) , Marilyn Monroe (Marilyn ...
Serigrafias de Andy Warhol a partir de foto de Marilyn Monroe, que tinha acabado de morrer em circunstâncias estranhas poucas semanas antes, em 1962. Ou: visualização de um conjunto de músicas dos Ramones.

 

Capa da edição 24 de Tales from the Crypt, publicado pela EC Comics, arte de Al Feldstein.

 

Os Ramones não foram uma banda punk inclinada à política (quantas realmente foram, no fim das contas?). Mas, com o caráter repetitivo de suas músicas e letras, seu gosto pelo cartum e sua exploração da iconografia do mundo da comunicação de massa, pode nos dizer mais sobre nossa vida esquizofrênica e americanizada do que tantas canções com filosofices e jargões pseudo-políticos de outras bandas punk. Os ramones pintam com tintas de um Chuck Jones a caricatura mais repulsiva e atraente possível da cultura do capitalismo neoliberal 7. A angústia e confusão mental (“Teenage lobotomy”), o tédio do presente e o medo pelo futuro (“I wanna be well”), povoados por agentes secretos (“Havana affair”), animais fora de controle e aberrações mutantes, todos curtindo um som das Shangri-Las no rádio do carro à caminho da praia (“Rockaway beach”), enquanto se esquartejam. Seus nomes? Muitos: Suzies, Judies e, claro, Sheenas. É um mundo de redobras, em que a vida imaginária dos meios de comunicação já se confundiu com nossa realidade, do qual nem as próprias canções dos Ramones estão alheias: em “7-11”, a garotada dança o “Blitzkrieg Bop”: a primeira banda punk já era meta-punk. Eles terem feito isso tudo não intencionalmente talvez seja o maior testamento pro fato de que o valor de suas canções não está em observar de fora os fenômenos da vida e analisá-los criticamente, mas em experienciá-los de dentro, em toda sua sujeira e glória. É a criatura feita de retalhos 8 do cotidiano fragmentado, reproduzível. É o rosto de Marilyn Monroe e os acidentes de carro de Andy Warhol 9.

Mas não tema, como as pessoas apresentadas como aberrações no show de horrores em Freaks (1932), eles aceitam cada um de nós como um deles: “Gabba gabba we accept you one of us!”. Os Ramones vivem e nos convidam pra dentro do freak show, para saltarmos em seus concertos como os cretinos que somos 10.

WE’RE A HAPPY FAMILY: THE CRETINS OF THE RAMONES – Green ...
Joey Ramone ao lado de seu irmão Mike Leigh, fantasiado como Pinhead, o mascote da banda, inspirado em Schlitzie Surtees, ator em Freaks.

 

[Observação (outubro de 2021):

Gostaria de deixar claro que esse texto não é uma tentativa de reivindicar que os Ramones não são politicamente questionáveis, nem que bandas de rock não possam escrever letras críticas e anti-sistêmicas. O fato de os Ramones terem flertado com um imaginário conservador e violento, assim como os Sex Pistols terem aparecido na TV com suásticas nas camisetas, contribuiu para grupos racistas e perigosos se sentirem bem-vindos à cena punk e não nunca foi minha intenção relativizar esse tipo de boçalidade da banda. Relendo esse texto quase um ano depois, senti a necessidade de deixar claro que as canções dos Ramones, apesar de serem um caso interessante a ser estudado, já que revelam tudo que a de mais grotesco com os EUA, podem sim ter implicações desastrosas se levados a sério. Daí é sempre bom lembrar do recado dos Dead Kennedys. Agora, vale lembrar algumas músicas que deixam de lado, as quais vão explicitamente contra à direita conservadora, como: “My brain is hanging upside down (Bonzo goes to Britburg)”, que indagava porque diabos o Ronald Reagan visitou um cemitério militar alemão, no qual estavam os corpos de soldados e oficiais da SS; ou “Howling at the moon (Sha-la-la)”, cuja letra exclama: “I wanna take from the rich and give to the poor” (“Eu quero tirar dos ricos e dar aos pobres”). Segundo Johnny Ramone em sua autobiografia, o guitarrista republicano não se importou com essas músicas por achar que podiam ajudar a vender a banda aos jovens punks que tendiam a ser de esquerda (o que mostra o quanto ele se importava com seus valores). É bom frisar que foram Joey (que era judeu e de esquerda) e Dee Dee escreveram essas músicas, que existem e são parte do legado dos Ramones tanto quanto bizarrices como “Today your love, tomorrow the world”. Ouçam Crass e Chumbawamba e é isso.]

 

NOTAS:
  1. “Ramone” vem do sobrenome falso que Paul McCartney usava para se disfarçar nos registro de hotéis ^
  2. Seriam os Ramones soldadinhos de chumbo?^
  3. Reagen está em primeiro lugar, Schwarzenegger também tá no meio. Entre outros políticos atores de filmes e celebridades pop que aparecem na lista: Vincent Gallo, Charlton Heston e Ted Nugent.  ^
  4. Bom lembrar que The Who fez uma gravação da abertura do seriado do Batman. ^
  5. Ambos singles, “Spiderman theme” e “I don’t wanna grow up” ganharam video clipes em animação, sendo a arte do segundo de autoria de um tal de Daniel Clowes. ^
  6. Alguém ousado o bastante poderia comparar a forma com que João Gilberto regravou clássicos do cancioneiro brasileiro com as regravações dos Ramones de singles pop do passado. Na verdade, um texto sobre as regravações da banda em geral daria muito pano pra manga. ^
  7. Mais tarde, os Dead Kennedys criariam com suas músicas um universo cartunesco para zombar da política e cultura estadunidense de maneira mais direta. Os Ramones não exatamente criticam o grotesco dos EUA, eles mais residem nele, vivem suas contradições como sujeitos, não o observam de fora. ^
  8. Talvez seu melhor álbum, o que melhor capta a agressividade de seu som, é o ao vivo de 78 It’s alive!, título que é a exclamação do Dr. Frankenstein quando sua criatura se move, na adaptação de James Whale, de 1931. ^
  9. Em “7-11”, o benzinho do eu-lírico morre num acidente de carro.^
  10. There’s no stoppin’ the cretins from hoppin’/ You gotta keep it beatin’ for all the hoppin’ cretins.^

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