Tiro certeiro: “Incidente” de Amiri Baraka, por Alan Cardoso da Silva e Pedro Ávila

Amiri Baraka (1934–2014) foi escritor americano, poeta, dramaturgo e ensaísta, além de ter trabalhado como crítico musical. Nascido LeRoi Jones, em Newark, Nova Jérsei, trocou seu nome para Amiri Baraka em 1965, após o assassinato de Malcolm X, figura central no movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Assim como Malcolm X, Baraka foi uma personagem polêmica, mas de extrema relevância política, tendo sido um grande movimentador das lutas afro-americanas em busca de afirmação identitária e maior presença na política, participando de grupos como o Black Arts Movement.

A controvérsia dos textos de Baraka deriva de sua escrita inquieta e confrontacional. Sempre politicamente engajado, seus escritos possuíam um teor ácido, altamente crítico ao racismo e às instituições norte-americanas. Essa sua crítica ferrenha, que intencionava incomodar as sensibilidades e ideologias do status quo, acoplada à constante mudança de sua trajetória política, que o fez adotar diferentes opiniões ao longo de sua carreira — passando de ideias pacifistas ao apoio e incentivo à violência na ação política, ou de movimentos como o Nacionalismo negro para os de liberação do terceiro-mundo —, contribuiu para que sua obra, apesar de influente, não fosse elevada ao cânone nem tão estudada.

Contudo, a poética de Amiri Baraka não se vale apenas de provocações controversas. Ele é considerado por muitos um dos escritores mais respeitados e publicados do século XX, além de ter sido um grande promovedor da poesia nos Estados Unidos, tendo fundado revistas como Kulchur e Floating Bear (1961–1969) — essa última junto de Diane di Prima. Ao longo de sua carreira, manteve contato com grandes nomes e movimentos da literatura norte-americana de vanguarda, poetas como: Allen Ginsberg, da Geração Beat; Charles Olson, do grupo Black Mountain; Langston Hughes, do Harlem Renaissance; Frank O’Hara, da New York School; e Ishmael Reed e Lorenzo Thomas, que, como o próprio Baraka, foram ligados ao Nacionalismo Negro.

Com sua então esposa, Hettie Cohen, também fundou a editora Totem Press nos anos 1950, que, além de seus livros, publicou muitos dos autores já citados. Assim como grande parte desses poetas, a música é essencial à poética de Amiri Baraka que, além de crítico de música, publicou livros como Blues people (1963), um estudo da música afro-americana, passando do blues ao jazz, cujos ritmos, improvisos e ligação com a cultura popular das ruas, tanto influenciaram a escrita norte-americana na segunda metade do século XX. Vale notar que, no universo do jazz, Baraka esteve próximo a músicos de vanguarda, como os gigantes Ornette Coleman e Albert Ayler, com quem colaborou em discos e leituras ao vivo de poemas. Na verdade, é possível ver como o verso livre do poeta se relaciona com o o fraseado livre desses jazzistas, seu próprio uso de repetições (como será demonstrado em “Incidente”) aponta para uma escrita musical, de um ritmo não fixo mas nem por isso menos presente. Não à toa em 2017 o álbum Far from Over do sexteto do pianista Vijay Iyer contou com uma faixa em sua homenagem, “For Amiri Baraka”.

Estando clara a relevância das contribuições de Amiri Baraka no cenário da arte norte-americana, surge a questão: o poeta já foi traduzido para o português? Não há no presente momento nenhuma tradução integral de seus livros nem edições antológicas, sendo possível encontrar traduções de apenas alguns poemas espalhados por blogs e revistas online de poesia, como a Modo de Usar & Co., que em janeiro de 2014, no dia de seu falecimento, publicou uma tradução de “In memory of radio”, feita pelo poeta brasileiro Dirceu Villa.

Buscando somar nossas vozes às de outros tradutores de Baraka no Brasil, traduzimos em 2019 o poema “Incident” 1, que pode ser conferido a seguir, contando com comentários sobre o processo tradutório:

 

Incident

He came back and shot. He shot him. When he came
back, he shot, and he fell, stumbling, past the
shadow wood, down, shot, dying, dead, to full halt.

At the bottom, bleeding, shot dead. He died then, there
after the fall, the speeding bullet, tore his face
and blood sprayed fine over the killer and the grey light.

Pictures of the dead man, are everywhere. And his spirit
sucks up the light. But he died in darkness darker than
his soul and everything tumbled blindly with him dying

down the stairs.

We have no word

on the killer, except he came back, from somewhere
to do what he did. And shot only once into his victim’s
stare, and left him quickly when the blood ran out. We know

the killer was skillful, quick, and silent, and that the victim
probably knew him. Other than that, aside from the caked sourness
of the dead man’s expression, and the cool surprise in the fixture

of his hands and fingers, we know nothing.

 

Incidente

Na volta ele atirou. Atirou nele. Quando
voltou, atirou, e caiu, trôpego, mata
adentro, duro, furo, corpo, morto, estourado.

Na sarjeta, sangrando, estirado. Ele morreu, ali
depois de cair, a bala a zunir, estourou seu rosto e
sangue jorrou fino na luz cinza e no assassino.

Fotos do morto, por todo lado. Seu espírito
suga luz. Mas ele morreu no escuro mais escuro
que sua alma e tudo oscilou com a morte dele

escada abaixo.

Nada se sabe

sobre o assassino, tirando que ele voltou, de algum lugar
e fez o que fez. E atirou só uma vez no mirar dele e
deixou ele correndo quando o sangue escorreu. Sabe-se

que o assassino é hábil, ágil, silencioso e quiçá conhecido
da vítima. Além disso, tirando o duro azedume no olhar
fixo do morto, e a surpresa na falta de reflexo

das suas mãos e dedos, nada sabemos.

*

Palavras como “shot”, “dead”, “killer” e “blood” ajudam a compor o tom de violência no texto. Ainda assim, alguns versos pareciam não se encaixar totalmente ao tema; e a partir dessa dissonância começamos a perceber a recorrência de palavras que apontavam para o campo semântico da fotografia, como “pictures”, “light” e até mesmo “shot” (que pode se referir tanto a um projétil ou ao ato de atirar quanto a uma fotografia ou ao ato de fotografar). Dessa maneira, além dos aspectos mais formais como ritmo, aliterações, assonâncias etc. demos prioridade também à ambiguidade da palavra “shot”, à tensão entre os temas assassinato/fotografia. E, apesar de nosso trabalho ser na verdade uma retradução, já que a poeta e professora universitária Luci Collin já traduziu esse mesmo poema, cremos que nenhuma outra tradução para o português do Brasil, disponível até a escrita deste artigo, fazia tal associação temática.

Em nossa tradução, portanto, privilegiamos manter a ambiguidade tanto do uso de pronomes quanto das palavras que simultaneamente criam a imagem de um corpo morto e de um retrato fotográfico. Além de tentar reproduzir um ritmo equivalente ao do orginal, adaptando o verso livre de Baraka por um verso livre em português, atentando-nos também para outras questões relativas ao ritmo, como as aliterações e as assonâncias. Assim, a palavra “shot” foi um desafio, como também as referências a luz (“shadow”, “light”, “darkness”, “fixture”), e à fixidez (“to full halt”, “fixture”) que tecem a relação entre a luz da câmera fotográfica e da arma de fogo, assim como à fixidez do homem morto e a de seu retrato inerte nos jornais. Sem uma palavra ambígua como “shot” em português optamos por usar flexões do verbo “atirar”, assim como palavras que remetem em sua forma ao verbo, como “estirado” e “tirando”, utilizando também o verbo “mirar” no lugar de sinônimos como “olhar”, uma vez que pode remeter à mira de uma arma de fogo. Quando os signos que remetem à luz não puderam ser recriados em posição equivalente, tentamos colocá-los em outras partes do poema: sem conseguir traduzir termos como “blindly”, fizemos escolhas como, por exemplo, utilizar a palavra “estourado”, no lugar de “to full halt”, que restaurava também uma ambiguidade entre o estourar do som do tiro, do corpo da vítima e da fotografia. A ambiguidade de “fixture”, que pode remeter tanto a fixidez, inércia, quanto a um candeeiro (portanto, outra imagem relacionada ao campo semântico da luz), não pôde ser recriada, fazendo-nos optar pela palavra “reflexo”, que pode remeter à espelhos, portanto, algo que remete ao olhar (que necessita de iluminação) e à reprodução, como a fotografia, mas também a uma reação involuntária, um espasmo.

 

A interpretação do conteúdo político e carregado da poesia de Amiri Baraka fica a cargo dos leitores. Quem é esse corpo morto, preso num jogo de luz e sombras? Quem o matou? Quem fixou essa morte numa fotografia e com que propósito? Mas esperamos contribuir para que o poeta seja um pouquinho mais acessível para leitores do português, apresentando também, através dos comentários, o quão hábil Baraka era com as palavras, como as moldava criativamente para atirar em cheio nas feridas abertas da sociedade estadunidense, que tanto gostamos de imitar por aqui.

NOTAS:
  1. O poema pode ser encontrado na antologia de 1969 Black Magic: Sabotage, Target Study, Black Art; Collected Poetry, 1961-1967, publicado pela Bobbs-Merrill Co..^

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