Análise de Ts’ai Chi’h, de Ezra Pound – por Alan Cardoso da Silva

Análise de Ts’ai Chi’h, de Ezra Pound – por Alan Cardoso da Silva

Esta é uma análise sobre o poema “Ts’ai Chi’h” de Ezra Pound que figura no livro Lustra (1916), que em 2011 ganhou edição brasileira com tradução excelentíssima do poeta Dirceu Villa. Já que se reconhece o mau crítico quando começa a falar do poeta e não do poema, abstenho-me de informar-lhes da biografia do autor. Limito-me apenas a dizer seu nome, nascimento e morte: Ezra Pound (1885-1972).

O poema em questão é curto, três versos apenas, e tive contato com ele através da edição bilíngue de Lustra publicada pelo Selo Demônio Negro. A análise, porém, será concentrada em um aspecto que figura no original, mas que não está na tradução. Advirto, porém, antes que critiquem Dirceu Villa ou os tradutores todos por perder a “alma”, a “essência” do original, poupem-nos. Este não é um textículo sobre tradução, mas, se quiser saber argumentos a favor da possibilidade da tradução poética, recomendo que leia este um livro ao menos em que um dos capítulos elucida a abordagem jakobsoniana (e o desenvolvimento que Haroldo de Campos fez da teoria de Jakobson), a saber: Poética da Tradução (2003), de Mário Laranjeira. Poemas são compostos de linguagem, deixemos os transcendentalismos aos médiuns, tradutores não operam com almas, essências ou espíritos.

TS’AI CHI’H

The petals fall in the fountain,

the orange-coloured rose-leaves,

Their ochre clings to the stone.

TS’AI CHI’H

As pétalas caem na fonte,

folhas de rosa cor-de-laranja,

Seu ocre apega-se à pedra.

(Trad. Dirceu Villa)

O poema curto é um ótimo exemplo do pensamento de Pound acerca da poesia: condensação. Como elucida através de uma equação em seu ABC da Literatura (2013) – descoberta em um dicionário alemão-italiano por Basil Bunting: dichten = condensare, poesia é, portanto, “a mais condensada forma de expressão verbal”. Além disso, podemos lê-lo a partir do esquema fanopeia, melopeia, logopeia, proposto pelo próprio Pound, aos quais correspondem, respectivamente, as definições:

  1. Projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginação visual.
  2. Produzir correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala.
  3. Produzir ambos os efeitos estimulando as associações (intelectuais ou emocionais) que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou grupos de palavras efetivamente empregados.

(Ezra Pound, ABC da Literatura, 2013, p. 69)

Claramente o poema de Pound definir-se-ia aqui como uma refinada logopeia. Temos imagem projetada na imaginação visual perfeitamente, à semelhança de poemas contemplativos como os haiku; e temos o primor que é o ritmo desse poema, a título de curiosidade a escansão:

Percebamos atentamente como Pound nos encanta com seu ritmo jâmbico e insere algumas variações para impedir a monotonia. Desconsiderando os significantes das palavras, mas apenas o valor do acento da sílaba, temos verdadeira música:

No primeiro verso: da-DUM, da-DUM, da-da, DUM-da (dois jambos, um pirríquio e um troqueu).

No segundo verso: da-DUM, da-DUM, da-DUM-DUM (dois jambos e um báquio) ou, podemos ler também da-DUM, da-DUM, da-DUM, DUM-[da] (três jambos e um troqueu cuja sílaba breve foi suprimida).

No terceiro verso: da-DUM, da-DUM, da-da-DUM (dois jambos e um anapesto).

Experimente ler em voz alta esse esquema de acentuação. O ritmo do poema salta aos ouvidos, mas isso é só um detalhe. O que quero tratar especificamente é a finesse do segundo verso do poema “the orange-coloured rose-leaves”, numa tradução mais literal “as folhas alaranjadas das rosas”. Contudo, uma tradução literal jamais deu conta de traduzir um poema. Isso é paráfrase. Mais uma vez saliento que isso não é uma crítica à tradução de Villa por alguma eventual incapacidade (eu mesmo não tenho nenhuma solução melhor para a tradução, até agora, a de Villa é a melhor que li). A tradução dele é muitíssimo satisfatória e bonita, diga-se de passagem: tem imagem e ritmo correspondentes ao original.

O que abordo aqui é uma especificidade do sistema linguístico do inglês: a palavra “leaves” pode ser tanto o substantivo “folhas” quanto a conjugação da 3ª pessoa do singular do verbo “to leave”, “deixar”. O que me chama a atenção nesse verso é a sobreposição de três possibilidades de leitura, a saber:

the orange-coloured rose-leaves
“as folhas alaranjadas de rosa”

the orange coloured rose leaves
“a rosa alaranjada deixa (o ramo, em direção à fonte)”

the [color] orange leaves [the] rose coloured
“(a cor) laranja deixa a rosa tingida”

E é isso. Não pretendo chegar a nenhuma conclusão além da mera observação. Creio que frente a um poema tão bem composto a única alternativa é a apreciação. Se minha leitura desse verso em particular puder somar à apreciação de alguém, dou-me por satisfeito. Ezra Pound carrega nas costas a alcunha de um dos maiores poetas do séc. XX, e não creio que seja por acaso. Sou um assecla de Pound e, talvez, minha opinião seja um pouco parcial demais e devesse ser desconsiderada. Mas presto aqui meu elogio à síntese de il miglior fabbro. Que cesse a língua falha dos homens, falemos a língua sábia da poesia: afiada e objetiva.

*

Imagem: “Errática Cabeça Hierática de Ezra Pound”, fotomontagem de Alan Cardoso.


REFERÊNCIAS

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

___. Lustra. Trad. Dirceu Villa. 1ª ed. São Paulo: Selo Demônio Negro, 2011.

2 comentários em “Análise de Ts’ai Chi’h, de Ezra Pound – por Alan Cardoso da Silva”

  1. Muito boa a análise e sim, ela somou à minha apreciação do poema! Também estou lendo o Lustra, pela tradução do Dirceu.
    Traga mais leituras poundianas ao site!
    Um grande abraço.

    1. Obrigado! Feliz que mais pessoas estão lendo essa tradução de Lustra!
      Com certeza trarei Pound sempre que possível, um obra desse peso sempre merece espaço!

      Abraços,
      Alan.

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