Poucos escritos – por Lourenço Gontijo

O estado da arte disciplinar

Em algum algum lugar do mundo existe o policial artista.
Com sua formação nas artes plásticas (da mais alta plasticidade) ele monta e remodela habilmente a argila humana, mais sutil que qualquer mármore.
Seu pulso oferta a cadência minuciosa da sinfonia agonizante que tem de conduzir. E que trabalho difícil para o nosso artista, mas ele persevera na adversidade. Afinal de contas, ele tem um dever a fazer, uma obra para terminar.
A composição de roxos e vermelhos envergonharia até Matisse, mas o nosso artista é modesto, ele está imerso no momento, não quer comparações levianas. Comprometimento verdadeiro.
O policiamento pode não ser uma arte, mas esse autor está na esteira dessa revolução. Já temos nossos policiais particulares, e não há nada mais íntimo e querido para um policial que perceber sua vitória no sujeito. O nosso agente disciplinar agora eleva esse processo de subjetivação à experiência estética plena, afinal de contas o desejo já deseja a repressão do desejo.
Logo aparecerá o policial pastor, o policial filósofo, cada um nos iluminando com sua forma elevada de racionalizar um novo campo da pressão. Re ou ex pressão.

A morte me cumprimenta na noite de quarta-feira.

Hoje, no dia trinta e um de outubro de dois mil e dezenove, eu vi um gato ser atropelado. A rua nunca esteve tão iluminada.
Estranhei a nova claridade que tinha se instaurado na rua. Era como se alguém tivesse jogado uma lanterna sobre aquela estação de ônibus (que sempre era escura e erma [ainda é erma…]).
Ao longe, chovia. Os relâmpagos que riscavam o céu pareciam tornar aquela cena ainda mais luminescente, clareando o horizonte por um breve e intenso instante.
As gotículas que caíram em meu corpo não me incomodaram, não mais que a fumaça do cigarro que tragava ao esperar pacientemente a chegada de meu ônibus.
Foi como o relampejar. Só foi necessário um momento de vislumbre desinteressado para a avenida, com suas células biomecânicas transitando automaticamente. Como o raio que partira as trevas, um dos veículos parou em plena correnteza de gente.
Ele era laranja. Do tipo de pelo laranja que continha traços de branco. Provavelmente do tipo que me interditaria em minha caminhada para me arriscar a um breve contato, quiçá um afago. O carro sinalizava para a esquerda. O gato se contorcia violentamente sem direção e sentido definido.
Mudou de faixa e seguiu o seu caminho. O bicho, também, permaneceu agonizando em plena avenida. Não sei ao certo quanto tempo ele ficou consciente (também devo confessar que quando o vi, intuí que fosse um atropelamento. Algo me disse que era a morte em plena quarta-feira, e tão logo quanto intuí, me assegurei de meu palpite).
Um transeunte adentra o trânsito, desviando de um carro que o identificaria com o gato. Em um gesto ligeiro segura a cauda do animal e o carrega, como uma sacola cheia de frutas estragadas ou um pano que pingasse de sujeira e podridão, deixando o que outrora fora o felino debaixo de uma árvore ao lado da via automobilística. Tão rápido quanto o fez, seguiu seu caminho.
Breve aceno da morte, com toda a banalidade que sempre é.
Apaguei meu cigarro.
Pensei em escrever.
Sem pensar, pego meu ônibus e volto, mudo por dentro.

 

Lourenço Gontijo
Quase-bacharel em Filosofia pela UFMG. Ocasionalmente irrompendo em alguns escritos esporádicos e fragmentários, ou talvez os textos escrevam a si próprios. Pesquisa, também, no mesmo movimento caótico que todo o resto. Interessa-se amplamente na filosofia, mas se apega aos eventos recentes que dialogam com os franceses do século XX. Aprofunda seu desconhecimento no aceleracionismo, na filosofia de Deleuze e Guattari, e em variações contemporâneas do niilismo e anti-humanismo.

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