Edição #2 – Editorial e Índice

Editorial

Esta é a segunda edição do blog-revista-sem-ISSN-coisa casulos , que é também a terceira (é uma longa história). Sem mais degolongas desculpas suspiros e tamborilos, eis o índice:

ÍNDICE

Cascando, de Samuel Beckett
(tr. Alan Cardoso da Silva, comentário de S. Lawlor e J. Pilling)

VIOLETA VIOLENTA em: um banho de beijos
por Isabel Ávila

NAVIO NEGREIRO, de Amiri Baraka
(tr. Alan Cardoso da Silva)

Dois poemas de Adrienne Rich
(tr. Pedro Ávila)

Críticas
por Giuliana Zamprogno

O Tao do Pernalonga, por Fred Camper
(tradução de Pedro Ávila)

Arte Pública, Hoje
por Lucas Almeida

Duas pausas em Spray Jet – uma nova atração na tela?
por Lucas Almeida

 

 

Dois poemas de Adrienne Rich traduzidos

 

Venho humildemente compartilhar minhas traduções de dois poemas da grande Adrienne Rich (1929-2012), publicados pela primeira vez em seu livro Snapshots of a Daughter-in-Law, de 1963.  Humildemente não só por Rich ser uma das vozes mais importantes da poesia estadunidense, mas por se tratar de uma primeira tentativa de abordar e verter (como também sorver) a poesia da autora. Quem me sugeriu traduzir esses poemas foi a professora Olga Kempinska, por volta de 2020 ou 2021. Foi o que fiz, com algumas sugestões dela e de  Alan Cardoso da Silva, a fim de estudar a poesia de Rich e como ela trabalha a alteridade em seus poemas. Como sempre, traduzir aguça nossa leitura e apreciação das qualidades do texto fonte. Daí, a humildade, tão cristã, ao traduzir uma poeta judia: me aproximei dos dois poemas e sei o quão bons eles são.

Enfim, de lá para cá, resolvi remexer um pouco nas duas traduções, revê-las com novos olhos, mudar o que fosse. Talvez eu tenha pecado, especialmente na tradução de “Prospective immigrants please note”, ao me ater, na medida do possível, à métrica dos versos, sacrificando o tom por vezes prosaico, apesar de rígido, do poema. Ainda assim, replicar as qualidades sintéticas do inglês, assim como a brevidade dos versos, é um quebra-cabeça que sempre me atrai. Daí, na potencial traição, me mantive fiel a meu eu de alguns anos e ao que o fascinou na poesia de Rich, sempre atenta às alteridades, como também a visão de si enquanto outro, estrangeiro.

Quanto a “The Roofwalker”, literalmente “o caminhante/andarilho de telhados”, vale notar que o termo parece ter sido inventado por Rich. Seria, portanto, justo reinventar o termo em português, algo como “vaga-telhas”, “telherrante” ou “telhandarilho”. Contudo, o trocadilho me parece soar mais marcado em português do que a invenção de Rich em inglês, idioma que aceita mais facilmente a  composição de palavras novas por meio da justaposição de termos. Cheguei a considerar “flâneur de telhas”, realçando, assim, as possíveis associações entre o ofício dos poetas e o dos construtores que andam sobre telhados. Por fim, cogitei não traduzir como um substantivo, mas como verbo que descreva a ação dos gigantes no verso “Giants, the roofwalkers”: “Gigantes, cruzando telhas”. “Cruzar” foi escolhido por remeter à ideia de “cruzar a rua”, ao mesmo tempo ainda pode suscitar a imagem de trabalhores telhando uma casa. Sinto, contudo, que perdi um tom quase fantástico do poema, no qual “roofwalkers” parece designar um tipo de criatura ou uma espécie de classe.

Como com qualquer tradução, há outras tantas questões e decisões que podem ser debatidas ad infinitum. É bom lembrar que estas não são necessariamente traduções definitivas, mas abordagens de um primeiro encontro com o outro, a poeta, seu(s) poema(s):

 

The Roofwalker

—for Denise Levertov

Over the half-finished houses
night comes. The builders
stand on the roof. It is
quiet after the hammers,
the pulleys hang slack.
Giants, the roofwalkers,
on a listing deck, the wave
of darkness about to break
on their heads. The sky
is a torn sail where figures
pass magnified, shadows
on a burning deck.

I feel like them up there:
exposed, larger than life,
and due to break my neck.
Was it worth while to lay—
with infinite exertion—
a roof I can’t live under?
—All those blueprints,
closings of gaps,
measurings, calculations?
A life I didn’t choose
chose me: even
my tools are the wrong ones
for what I have to do.
I’m naked, ignorant,
a naked man fleeing
across the roofs
who could with a shade of difference
be sitting in the lamplight
against the cream wallpaper
reading—not with indifference—
about a naked man
fleeing across the roofs.

 

Pelos telhados

—para Denise Levertov

Sobre as casas mal acabadas
anoitece. Construtores
de pé no telhado. Está
quieto sem os martelos,
as roldanas pendidas.
Gigantes, cruzando telhas,
num convés oblíquo, a onda
de trevas prestes a quebrar
sobre eles. O céu
como vela rota onde vultos
vão ampliados, sombras
num convés em chamas.

Me sinto como eles:
exposto, descomunal,
a quebrar o pescoço.
Valeu erguer um teto—
com esforço infinito—
onde não posso viver?
—Todas as plantas,
buracos tapados,
medições, cálculos?
Uma vida que eu não quis
me quis: nem
minhas ferramentas
servem ao meu propósito.
Estou nu, ignorante,
um homem nu fugindo
pelos telhados
que podia em sombra diferente
estar à luz do abajur
contra a parede creme
lendo—não indiferente—
sobre um homem nu
fugindo pelos telhados.

(tradução: Pedro Ávila)

 

***

 

“Prospective Immigrants Please Note”

Either you will
go through this door
or you will not go through.

If you go through
there is always the risk
of remembering your name.

Things look at you doubly
and you must look back
and let them happen.

If you do not go through
it is possible
to live worthily

to maintain your attitudes
to hold your position
to die bravely

but much will blind you,
much will evade you,
at what cost who knows?

The door itself makes no promises.
It is only a door.

 

“Potenciais imigrantes, atenção”

Você pode
atravessar
ou não esta porta.

Se atravessar
existe sempre o risco
de recordar o seu nome.

Coisas te olham duplas,
você deve olhar
para trás, ceder.

Se não atravessar
é possível ter
uma vida digna

preservar suas posturas
manter sua posição
morrer valente

mas muito vai te
cegar e evadir,
quem sabe a que custo?

A porta em si nada promete.
é somente uma porta.

(tradução: Pedro Ávila)

Críticas — por Giuliana Zamprogno


Dois dias de ida, dois dias de volta

Karioka (2014), de Takumã Kuikuro, é um registro de viagem e também um relato de espera. Um casal kuikuro e seus dois filhos viajam até a capital do Rio de Janeiro, onde passeiam, brincam e se divertem no mar. Para aqueles que ficam na aldeia, no estado do Mato Grosso, as conversas são permeadas pelas especulações do que acontece na cidade grande, pelas experiências daqueles que já estiveram lá e, entre contos e causos, também pelos receios causados pelas notícias de violência da televisão.

Pela articulação das palavras de quem espera com as imagens de quem é esperado, Karioka constrói uma ponte área narrativa em que diferentes subjetividades são atravessadas pela viagem. A inscrição desse caráter dialógico também ocorre quando o diretor opta em não ser o único narrador da história, o que poderia acontecer com o recurso da voz over. Assim, é pela presença de múltiplas vozes que o filme compõe um ambiente íntimo, familiar e comunitário, superando a estrutura por vezes asséptica do “diário de viagem” ou do “álbum de fotos em família”.

Então, quem filma não narra e nunca aparece no quadro. Ele é abraçado e as pessoas ao seu redor se dirigem a ele. E do ponto de onde ele vê, que é também por onde eu vejo, tudo é feliz. Hoje, pensando em como a pandemia afetou a dinâmica das relações sociais e familiares, parece impossível não sentir o confortável calor do sentimento compartilhado entre os personagens de Karioka. Alegria e medo integram a experiência coletiva e aqui, curiosamente, dão a sensação de segurança em conjunto.

Nós, como espectadores, temos acesso privilegiado aos dois lugares, aos dois tempos, numa situação (ou ilusão) de simultaneidade que só o cinema consegue criar. O retorno à terra natal ganha força porque é o ponto de cruzamento das expectativas de lá e de cá. Quando essas duas extremidades finalmente se unem no momento do reencontro, ideias abstratas e associações especulativas sobre os laços de parentesco ganham sua última materialidade para quem assiste.


Sob o real risco do real

Como dar forma ao absurdo com um celular na mão? Talvez essa seja uma das perguntas que mais instiguem, no redemoinho da internet e da vida hiperconectada, quando pensamos nos tipos de registros que de alguma forma conseguem captar a vida em seu caráter magicamente acidental, despretensiosamente. Em Homem vai relatar temor por barragem e flagra acidente de trânsito, alguém aponta para uma certa represa de rejeitos e comenta as alterações topográficas na região causadas pela empresa mineradora, sempre evocando seu interlocutor “Xavier”. Com um traço imaginário no ar, esse homem desenha com o dedo o caminho do que, segundo ele, irá desembocar num futuro túnel onde possam caber mais rejeitos de mineração. Nada mais atual do que um crime ambiental, ou nada mais atual do que o tremor e temor por um desastre que ainda não aconteceu.

Quando o homem com a câmera está prestes a pisar na rodovia para completar sua explicação, eis o inesperado: uma batida de carros violenta acontece bem na sua frente. O homem dá uns passos para trás, mas a câmera empunhada registra toda a ação, num plano tão casual, num enquadramento com tão poucos movimentos bruscos, como se tudo aquilo, apesar da fala extasiada (“Puta que o pariu uma batida aqui agora. Nossa senhora que porrada. Puta que o pariu. Quase que me pega, nó, puta merda. Puta que o pariu, nossa senhora”), fizesse parte da paisagem que há pouco ele intencionava mostrar. Ao som da música sertaneja que não parou, os dois condutores saem, não se cumprimentam e dão a volta em seus respectivos automóveis para medir o estrago, em uma coreografia estranhamente sincronizada. O absurdo carrega consigo um caráter de encenação.

Mas o homem com a câmera continua. Ele termina de cruzar a rodovia para confirmar sua tese do outro lado do túnel (“Aqui ó, deixa eu acabar de falar, deixa eu acabar de falar, aonde eles vão colocar ela aqui ó, eles vão fazer outro buracão aqui embaixo, ó”). Ele até consegue concluir seu intuito inicial de narração, mas o acidente exerce sobre ele uma força tão irresistível que o sentimos oscilando no emaranhado das duas narrativas (“Bicho que porrada aqui, olha. Esse povo é tão fia-da-puta, Xavier, que eles já vão reflorestando justamente pra tapar a visão. Deixa eu acabar de ver esse acidente aqui peraí”). Para além da inocência enternecida do absurdo in loco, há algo ali que se constrói a nível perceptivo. É como se esse homem estivesse no meio da encruzilhada das linhas de força do discurso, vacilando entre o tempo lento da narração (do conto, do causo) e a sedução imediata do evento (da informação, da notícia, do aqui e agora, etc.). E, pensando nos atravessamentos entre o virtual e o real, principalmente numa era de lives e outras formas de sincronicidade – isso de se estar em dois lugares ao mesmo tempo –, talvez esse vídeo nos mostre curiosamente o inverso, a ideia de que alguém, um dia, pode estar em dois tempos no mesmo lugar.

A presença do encontro, do acontecimento, mete um rasgo na tessitura da vida, como nos momentos em que a memória salta aos olhos e intercepta por alguns segundos a visão do agora. A imagem que irrompe é também um acidente e, tal qual esse homem, podemos ficar absortos e sair cambaleando. Nós não escolhemos nossos traumas; espiar de rabo de olho ou encara-los finalmente são algumas maneiras de lidar com eles, só não parece existir ignorância completa: “desver” ou “desviver” nunca é uma opção. A lembrança súbita é então um mecanismo pirata no processo de pensamento, em que diferentes momentos, selecionados por um eu do passado, nos invadem e se reincidem no presente. De alguma maneira, todos nós estamos em mais de dois tempos no mesmo lugar.


Separar é colocar espaço

Tirar um órgão é também inserir certo vácuo no corpo, mesmo que momentâneo, já que logo depois as entranhas dão jeito de preencher.

Uma primeira visão de Ob scena (Paloma Orlandini Castro, 2021) poderia começar por seu título, o espaço em branco deixado na separação da palavra ou na retirada de um dos ovários. Essa intervenção inevitavelmente altera os estatutos da sentença e do corpo, e também pode ser encarada como uma proteção necessária ou não à aproximação proposta pela personagem/realizadora.

Ob, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: prefixo latino que exprime a noção de “diante de”, “em face de”, “contra”. E que também diz respeito à atitude analítica própria do filme: dissociando as partes, para então submetê-las ao exame, a narradora encara a cirurgia sofrida na infância e elabora suas repercussões com as ferramentas lexicais da sua própria formação (ontológica, familiar). Nesse sentido, cria-se uma pequena máquina ótica para se estar diante da cena, onde também a fala e os cortes na matéria sonora conduzem e controlam a cadência dos movimentos subjetivos do filme, seja diante da cena da performance da artista com o dinheiro, ou diante da cena pornográfica com a mulher negra.

Se a repetição é um dos traços inconscientes mais presentes em Obscena (repetição da profissão dos pais, tios e avôs; repetição de impulsos e comportamentos; repetição da performance vista no livro, etc.), ela também é confrontada por sua faceta consciente dentro do próprio texto fílmico. A decomposição de imagens eróticas em traços montáveis e remontáveis, assim como todo o processo de reelaboração do arquivo e da memória, além da montagem, enfim, se fazem pelo viés da repetição.

Mas a exposição de Ob scena não acontece pela carne. Ela se dá antes no gesto da narradora que manuseia papéis antigos e documentos sobre sua vida com luvas de látex, organizando um contato tão íntimo quanto estéril. Assim, diante de si, o corpo é revestido pela sensorialidade do silicone, como em preservativos, sex toys e alguns artigos hospitalares — algo que reaparece em Mon Iris (Anabelle Abdul, 2021), na sequência. Esses dois filmes, na verdade, seguem o fluxo de seus próprios sujeitos ou objetos de investigação. Castro realmente segue o tratado médico da sua experiência, com textura de enciclopédia anatômica. Por sua vez, a dublagem de Iris reforça a profilmia pornográfica, seguindo o pacto da performance nas telas.

Dentro do esforço de reelaboração da experiência altamente subjetiva de Obscena, o contato intermediado por superfícies ou aparelhos (de todos os tipos: luvas, lupa, câmera) vai arquitetando um branco espaço de entre, um distanciamento preciso talvez para poder lidar com (e remexer) a dor: colocar o dedo na ferida, sim, sem no entanto reproduzir a incisão.

 

* As três críticas foram escritas no âmbito do Laboratório de Crítica da Revista Cinética em parceria com o IMS e também do Corpo Crítico de 2021 do FestCurtasBH.

Arte Pública, Hoje — por Lucas Almeida

No Brasil das décadas de 1960 e 1970 foram realizados vários filmes sobre arte. Em sua maioria de curta-metragem, influenciados pela recente onda europeia de filmes do gênero, como Van Gogh (1948) e Paul Gauguin (1950) de Alain Resnais ou Le Mystère Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot1, esses filmes estavam também em consonância com a então voga do documentário brasileiro moderno de tendência “verista” e sociológica –  focado em “registrar” as manifestações da cultura brasileira – que se desenvolveu a partir do início dos anos 1960 e se desdobrou em novas experiências na década de 1970. Dentro desse quadro, porém, alguns dos filmes sobre arte se destacam por não se encaixarem muito bem – em forma, ideia ou intenção – nem no conceito clássico de documentário sobre arte e nem na ideia tradicional de documentário.

Assim como Jean-Claude Bernardet, em Cineastas e Imagens do Povo, localiza uma outra vertente de filmes que rompem com o modelo sociológico e com a ideia de documentário como “registro do real” e optam por trabalhar a linguagem cinematográfica em busca de uma melhor problematização do tema tratado – e, por conseguinte, da realidade – , no âmbito dos filmes sobre arte é possível detectar operações similares. No artigo A Máquina Antes de Cézanne, escrito por ocasião de uma sessão de filmes sobre arte no Festival JB de 1980, Ronaldo Brito discorre sobre as implicações de uma aproximação desse tipo entre a linguagem do cinema e a das artes plásticas. Para o crítico, ao abordar a arte através do cinema é preciso ter em mente as diferenças e descontinuidades entre as duas linguagens. Sendo impossível evitar a diferença – sob o risco de uma espécie de “retorno do recalcado” –  é necessário, então, trabalhar com e a partir dessa diferença, afastando-se da “ideologia do documentário” e operando “cinematograficamente com a inteligência dos trabalhos”, internalizando na linguagem cinematográfica as suas questões2.

Brito se aproxima da ideia de André Bazin, apresentada no artigo Pintura e Cinema, de que “os próprios filmes são obras” e que “não se deve julgá-los somente com referência à pintura que eles utilizam, mas em relação à anatomia, ou antes, à histologia desse novo ser estético, que surgiu da conjunção da pintura e do cinema”3. No caso dos filmes tratados por Brito, que surgem a partir da década de 1960 no Brasil, é preciso atualizar a ideia de filmes sobre pintores/escultores para filmes sobre artes visuais e artistas, e considerar que alguns desses filmes se encontram em uma situação de completa união com o campo da arte, sendo realizados por críticos de arte e também pelos próprios artistas4- em um momento em que o registro fotográfico (e também cinematográfico) passa a ter maior protagonismo no meio da arte, sendo pensado e utilizado “como meio de veiculação, mas, também, lugar de acolhimento da expressão da obra na imagem, na ampla rede que constitui o trabalho”.5

 Letreiros de abertura de Arte Pública e Arte Hoje.

Arte Pública (Jorge Sirito e Paulo Martins, 1968) e Arte Hoje (Antonio Manuel, 1976) são ambos filmes que buscam retratar e divulgar um conjunto de artistas representativos de um momento específico da arte brasileira – contemporâneo à realização do filme. Ambos, também, têm em sua realização a mão de um artista atuante no contexto retratado. Pedro Escosteguy roteiriza e escreve o texto de Arte Pública e Antonio Manuel escreve e dirige Arte Hoje: histórias verídicas. O fato de artistas estarem envolvidos com os filmes (nesse caso, filmes documentários e não “filmes de artista”) não é mero detalhe, e explicita algumas questões em voga no meio artístico a partir da década de 1960, como a exploração de novas formas de veiculação da arte em busca de um maior contato com o público (fora do circuito tradicional) e a ocupação do campo discursivo (teórico e crítico) por parte dos próprios artistas .

Em artigo sobre Pedro Escosteguy, Arthur Freitas define Arte Pública como “(…) uma síntese da vanguarda nacional anterior ao AI-5 – um resumo sintomático de suas ideias e impasses”6. Realizado em 1967 por ocasião da IX Bienal de São Paulo – a “bienal pop” – , e na esteira da Nova Objetividade e de outros eventos e textos que proclamavam uma vanguarda brasileira engajada politicamente e compromissada com a experimentação dentro do contexto das discussões sobre as novas figurações e o “novo realismo”, Arte Pública fica a meio caminho entre um documentário e um explícito manifesto dessa vanguarda “pré AI-5”, representada pelos artistas focalizados e principalmente pelo texto de Escosteguy. Se Arthur Freitas aponta que “a ideia básica consistia em celebrar, por meio de alguns artistas pontuais, o caráter crítico e ao mesmo tempo experimental da produção artística brasileira recente, ali resumida na expressão ‘arte pública'”, o que transparece é que há uma certa tensão entre esse intuito e a sua realização fílmica. No limite, embora Arte Pública reste hoje, nas palavras de Freitas, como “o mais importante registro audiovisual já realizado sobre a vanguarda brasileira dos anos 1960”, a impressão que fica é que estamos diante não de um manifesto mas de um filme institucional da vanguarda.

Letreiro abertura de Arte Pública

O curta se divide em basicamente três partes. Primeiro, uma apresentação laudatória da Bienal de São Paulo, um “grande espetáculo de confraternização humana” que serve para apresentar ao grande público as mais novas tendências da arte, no caso da IX Bienal a “arte pública”, que “democratiza o consumo de suas experiências (…) contribuindo para a consolidação de um humanismo positivo, onde a cultura e a liberdade são bens de caráter público”. Após uma passagem pelas obras expostas na “bienal pop” e a defesa da “arte pública” como uma concepção genérica, há uma virada em que, tensionando o texto da narração com imagens de obras da Pop norte-americana, o filme sutilmente introduz a segunda parte: a apresentação dos artistas brasileiros que, na visão de Escosteguy, são os verdadeiros representantes de uma arte em que “se desmascaram os traficantes da guerra e da miséria” e “se descobre o germe que transforma os preconceitos que subvertem a realidade de uma civilização de característicos solidários”.

Na segunda parte a narração prossegue sua lógica, discorrendo sobre o “artista moderno” que trabalha e expõe suas obras, “ora no atelier, ora na fábrica, ora no campo estridente das relações urbanas”, “numa reflexão em termos de formas ou numa forma de mobilizar a reflexão do espectador em termos de participação”. Embalada por uma música lenta e melancólica (onipresente em quase todo o filme), a apresentação dos artistas se desenrola quase que num fluxo contínuo, dada a suavidade dos cortes e a fluidez da montagem. Primeiro, vemos Wesley Duke Lee em seu ateliê, rodeado de obras como Trapézio ou uma Confissão (1966) e Helicóptero (1967/1969). Depois de uma breve sequência marcada por um jogo de luzes e escuridão, talvez fazendo referência ao “happening” do João Sebastião Bar, o filme retoma sua música padrão com a apresentação de uma Vernissage de Antônio Dias e, na ordem, os artistas Glauco Rodrigues, Rubens Gerchman, Tomoshige Kusuno, Pedro Escosteguy, Carlos Vergara e Abraham Palatnik trabalhando ou exibindo seus trabalhos em seus ateliês ou residências.


F-111 de James Rosenquist na IX Bienal e Pedro Escosteguy em seu ateliê diante de Objeto Popular – Vote

Neste ponto, após a apresentação de Palatnik, a música se interrompe. Dá-se início à terceira e última parte, que ainda é a de apresentação dos artistas brasileiros, mas agora da tríade Lygia Pape, Hélio Oiticica e Lygia Clark. O que configura uma terceira parte é a característica das obras apresentadas, além da ruptura do ritmo e do ambiente até então predominante no filme. A narração agora dá ênfase à vertente da arte pública que “(…) entregue aos seus próprios recursos ou apta a se completar com a imaginação ou com o gesto do espectador (…)” e, “(…) plástica como um corpo humano, de que muitas vezes se apropria, parte para manifestações concretas, criando um novo instrumento de crítica e de afirmação”.

Ovos, Parangolés e Eu e Tu,  Arte Pública

Primeiro, são apresentados os Ovos, de Lygia Pape. Em um ambiente deserto e silencioso, no pé de uma montanha, jazem três cubos coloridos. A câmera se aproxima, na mão, silenciosa, até que sucessivamente os cubos se rompem, saindo deles três homens negros que puxam um samba a pandeiro, agogô e tamborim. O samba segue na trilha e um letreiro apresenta Lygia sentada diante dos cubos, os homens tocando samba ao fundo. Corta para outro cenário. O samba segue na trilha, agora mais lento, e num descampado vemos quatro homens vestindo parangolés e dançando ritmadamente em câmera lenta. Mais uma vez o artista entra em cena na frente de sua “obra”, sendo apresentado por um letreiro. Por fim, o samba cessa. Entra um comentário sonoro eletrônico e “futurista”, como que tirado de um filme de ficção científica. Em um ambiente escuro somos apresentados a três trabalhos de Lygia Clark, primeiro uma máscara sensorial, depois Eu e Tu (1967) e, fechando o filme, Cesariana (1968). Nesta última cena, o performer vagarosamente abre a bolsa-ventre, retira confetes de seu interior e os espalha pelo ar, simbolicamente semeando o futuro com novas formas de arte e de vida. A trilha tema do filme volta lentamente, o performer continua sua ação até o plano se congelar e subir o letreiro final: “A Arte Pública é uma convocação geral para a união de todos em torno dos temas primordiais da cultura e da liberdade”. O filme se encerra sintomaticamente de forma um tanto melancólica, com um texto utópico que – com a edição do AI-5 em dezembro de 1968 – se provaria insustentável.

Letreiro final de Arte Pública

Se Arte Pública possui toda uma carga utópica representativa do clima artístico e intelectual do período pré AI-5, de 1964 a 1968, marcado por anseios utópicos atrelados ao diálogo crítico com a realidade nacional – em meio a intensas trocas e tensões com o cenário artístico internacional – , há de se considerar – em especial a última parte dedicada ao desdobramento das experiências neoconcretas – que de fato é essa arte apresentada no filme, em suas questões formais e também políticas, que dará o tom à arte que será feita na década de 1970,7 uma arte que por um lado se “desmaterializa” e ataca com (os) novos meios e estratégias, mas que por outro se mantém combativa  – agora, não para mudar o mundo, mas para criticar e denunciar a situação política e cultural no Brasil e, também mas não menos importante, instituir um território profícuo para o desenvolvimento da arte contemporânea no país. Nesse ponto, após a arte revolucionária, viva e colorida de Arte Pública, chegamos em Arte Hoje, filme de Antonio Manuel que apresenta os desdobramentos da arte de vanguarda no Rio de Janeiro dos anos 1970, em especial através de uma geração de artistas que ficou conhecida como “geração ai-5” ou, nos dizeres de Francisco Bittencourt, “geração tranca-ruas”8 – artistas que iniciaram a década de 1970 com uma produção violenta e muitas vezes efêmera e precária que foi chamada de contra-arte e arte guerrilha por Frederico Morais.

Cildo Meireles, Arte Hoje.

Arte Hoje é um curta-metragem de 14 minutos, p&b, em que são apresentados 10 trabalhos de 10 artistas brasileiros. O filme é rápido, começa com uma série de fotos dos artistas acompanhadas de uma breve narração que descreve sinteticamente os trabalhos que iremos ver. Após essa introdução, o que vemos são dez pequenos episódios independentes introduzidos por um letreiro – que informa o nome do artista e do seu trabalho em questão. O primeiro episódio é Estômago Embrulhado, conhecida ação de Paulo Herkenhoff em que este devora jornais em frente a uma banca de rua. Na trilha, O Conto do Pintor, de Moreira da Silva. Depois vem Sal Sem Carne, de Cildo Meireles: um close no LP que gira na vitrola, a palavra PESQUISA em evidência. Na trilha, trechos do disco de Cildo. Seguem-se planos fechados da capa, algumas fotografias de indígenas e a contracapa, ambas, capa e contracapa, com a projeção de um arco de luz em rotação – reflexo do disco a girar. Com Porco na Festa, de Hermeto Pascoal, o Banquete de Rosa Correia é servido: no chão da sala de um apartamento um grupo devora com as mãos um leitão cozido. Pinturas da série Ocorrência de uma trajetória, de Raymundo Collares, são intercaladas a imagens de ônibus em movimento. Na trilha sonora, As Curvas da Estrada de Santos. Imagens de uma misteriosa Trouxa Ensanguentada, de Artur Barrio, em pontos marginais da cidade, são acompanhados na faixa sonora por Rogério Duarte falando sobre a morte, Deus e o infinito em Objeto Semi-Identificado, de Gilberto Gil. Sangue, Raça & Costumes, episódio de Alfredo Fontes, decompõe seu livro Origens em pequenas encenações, ao som de América do Sul, de Ney Matogrosso. Três passistas letargicamente desfilam os parangolés de Oiticica. Os Objetos de Sedução, de Lygia Pape, são apresentados ao som da banda sonora de seu filme Eat Me: A gula ou a luxúria. Um plano fechado alternando zoom in/zoom out focaliza um alto falante, a trilha é o trabalho: Cinco & Trinta da Tarde, de Guilherme Vaz. Por fim, TV News, de Luiz Fonseca, apresenta imagens da cidade do Rio de Janeiro filmadas através de acetatos com colagens feitas de adesivos de futebol e de propagandas da ditadura, alternando a marchinha/hino Cidade Maravilhosa e uma narração de um jogo do Flamengo. O filme acaba com a repetição – ligeiramente modificada – da frase que o inicia, agora proferida sobre os créditos finais: “São artistas. Com suas propostas radicais anunciam novas linguagens, novos comportamentos”.

Sangue, Raça e Costumes, de Alfredo Fontes e Banquete, de Rosa Correia

Iniciada na segunda metade dos anos 60, a produção de Antonio Manuel é marcada pelos anseios e dilemas de sua geração, como o empenho em produzir uma arte participante mas de viés construtivo, politicamente crítica mas comprometida com a experimentação, uma arte como “exercício experimental da liberdade” num momento em que arte e liberdade eram fortemente reprimidas pela ditadura. Expandir os limites físicos e conceituais da arte, aproximá-la da vida e do cotidiano, era o caminho do momento e intervir nos meios de comunicação de massa foi uma das estratégias possíveis para arriscar um choque ético-estético e alcançar o grande público. Trabalhando inicialmente com jornais, numa pesquisa que se desdobraria em vários projetos, passando pelos Flans, Clandestinas e o jornal-exposição Das 0 às 24 horas, Antonio Manuel chega ao cinema nos anos 1970, década em que realiza cinco curtas-metragens9. Arte Hoje é seu penúltimo filme, foi realizado por meio de um concurso para ser exibido em cinematecas e universidades10e, como todos os seus outros filmes, é realizado no limite das possibilidades técnicas e financeiras. Com película p&b, ausentes de som direto – mas com um criativo trabalho na banda sonora -, filmados e montados com um rigor matemático que acaba por controlar a crueza de uma linguagem que se mostra a nu, sem fazer concessões nem apelar a floreios e disfarces, seus filmes nos remetem ao cinema de Júlio Bressane e também de Lygia Pape, além de outras experiências do cinema brasileiro que podemos colocar sob a frágil alcunha de “marginal”.


TV News, de Luiz Fonseca

Não por acaso, a estrutura de Arte Hoje faz lembrar um cinejornal (“no jornal anda todo o presente”) – o que seu subtítulo, histórias verídicas, ironicamente endossa. Não há, porém, narração (de fato) ou cartelas informativas e o máximo de informação verbal que o filme apresenta são os nomes dos trabalhos e dos artistas, além da sua breve narração inicial – mais paratática que discursiva – que não entrega nada a mais que as imagens e os sons que veremos a seguir. Não há aqui, em se tratando de um filme sobre arte encomendado como material didático e de divulgação, a menor abertura à “ideologia do documentário”. E nesse sentido podemos traçar uma analogia com os próprios escritos de Antonio Manuel que, nas palavras do crítico Guilherme Bueno, “(…) têm o impacto imediato da comunicação, mas o fazem pelo viés de um choque surdo – seu sentido requer a ruptura do leitor com seus hábitos interpretativos arraigados, é reivindicado um leitor inconformado e inconformista”11. Tal movimento de se apropriar de uma linguagem de massa almejando a comunicação direta, mas não aquiescer em baixar a “taxa de informação” e, ao contrário, insistir na comunicação de estruturas novas que exigem a participação do espectador, vai de encontro à ideia exposta por Décio Pignatari em Teoria da Guerrilha Artística12: na vanguarda, assim como nas guerrilhas, o que importa é “a informação (surpresa) contra a redundância (expectativa)”13.

Episódio de Raymundo Collares, Arte Hoje

O que Manuel faz em Arte Hoje é “experimentar cinematograficamente” o trabalho de cada artista, como queria Ronaldo Brito. Em vez de registrar e comentar discursivamente, “traindo” o trabalho de arte e o próprio cinema, Manuel inventa a cada vez uma forma de apresentação, impregnando som e imagem de formas e sentidos (lineares ou não) em conexão direta com o trabalho enfocado, sem se preocupar, porém, em exagerar essas relações, mantendo ainda alguma fé na objetividade indicial da imagem cinematográfica – o que não é nenhuma contradição, a imagem cinematográfica também como registro.

Curiosamente, a estrutura do filme se aproxima também da ideia de organização de Ondas do Corpo – pesquisa realizada por Manuel na década de 1970 e ainda inédita em livro. Além das relações diretas com Arte Hoje, da coincidência de artistas e trabalhos focalizados, sua estrutura é pensada como uma soma de partes abertas para veiculação dos trabalhos, em que “cada artista é parte de um todo e os pontos abordados por cada um, na sua totalidade, formam um corpo”14, organizado, editado e assinado por Antonio Manuel. E nesse sentido é preciso considerar, também, o próprio filme como um trabalho de arte, um caso especial de metalinguagem no limite das intenções do artista e da instituição que o produziu. Sabendo que o filme foi encomendado para mostrar “jovens criadores da cultura brasileira”10, nada mais justo que fosse realizado por um desses “jovens criadores” e que, dando um passo além, o próprio filme fosse a materialização do “assunto” tratado, oportunidade de contato direto com a forma de arte sobre a qual o espectador incauto gostaria de se informar 15.


Estômago Embrulhado, de Paulo Herkenhoff. Arte Hoje


SOS de Rubens Gerchman, Arte Pública

Voltando ao Arte Pública, não é esse “estatuto de obra” que necessariamente faz falta ao filme, mas é o desnível entre a arte apresentada (fundada na surpresa) e a forma cinematográfica que a apresenta (redundante, condizente à expectativa de um documentário qualquer), que o limita. Não que no filme faltem momentos de singular beleza, e nem que não seja um potente registro visual da arte daquele momento. Mesmo em algumas passagens, há sim uma intencional contaminação da forma fílmica pelos sentidos amplos dos trabalhos artísticos – na já citada cena de Wesley Duke Lee, que reflete o misterioso, o lúdico e o sarcasmo presentes em sua obra – além de, com o jogo de luzes a ligar e desligar, remeter ao “happening” do João Sebastião Bar; na passagem de Gerchman, em que o detalhe de sua serigrafia SOS, ampliado, se transforma em letreiro e grito do próprio filme; nas partes dedicadas à Op Art ou mesmo na sequência dos parangolés que, apresentados em câmera lenta e em película colorida, fazem mais jus à relação do movimento, da dança e da cor na constituição de um “espaço ambiental” (no caso, fílmico), do que no filme de Antonio Manuel.

Mas tanto a trilha sonora de Arte Pública, que poderia muito bem ser muzak e que, a despeito disso, não tem nada a ver com a produção exibida – essa, muito mais ligada à música erudita de vanguarda da época e ao rock Iê Iê Iê da Jovem Guarda, sem falar na Tropicália que também apareceria no ano de 1967, -, quanto o texto relativamente rebuscado de Escosteguy, piorado pela seriedade e empolação do locutor, diluem as partes positivas do filme num todo que quase chega à desdiferenciação e que, o que é pior, acaba passando um já referido senso de melancolia – que, mais uma vez, não tem a ver com a arte da vanguarda brasileira dos anos 1960 naquilo que lhe era constitutivo, mas sim com seu destino, o desmanchar de sua utopia a partir do AI-5. Em suma, a arte de vanguarda recebe por parte de Paulo Martins e Jorge Sirito um tratamento elevado, distinto, quando era no nível do chão da rua, das quermesses e parques de diversão que aquela produção vicejava. Arte Hoje, fiel aos trabalhos que apresenta, traz na forma a contingência e a invenção, ao mesmo tempo que o precário, a virulência e o desespero que a arte naquele momento transpirava.

Décio Pignatari, no já referido Teoria da Guerrilha Artística, coloca Terra em Transe em questão indicando que Glauber Rocha “não soube criar o hibridismo entre dois veículos” – a poesia linear (“vigente há uns cinco lustros”) que guia o filme ficando em descompasso com a imagem estruturada por simultaneísmo (contemporânea). Já Bernardet, ao tratar das problemáticas entre a intenção e a linguagem de Viramundo, documentário de Geraldo Sarno, sentencia: “usamos uma linguagem ao mesmo tempo que somos usados por ela, não é possível fazer dela um instrumento neutro, vazio de significação, adquirindo apenas as significações que queremos lhe atribuir”16. Para fechar, e apelando para analogias já um tanto gastas mas que por isso mesmo não são de todo equivocadas, o descompasso que vemos nos filmes do Cinema Novo que ainda insistiam no substrato literário (“história com estória e alguma parataxe”) mesmo quando já confrontados pelos filmes “marginais” – em especial de Sganzerla, Bressane e Candeias (“história paratática sem estória17”) -, é o descompasso que sentimos entre Arte Pública e Arte Hoje. De toda forma, são ambos documentos valiosos sobre a arte brasileira das décadas de 60/70 e é uma pena que sejam, hoje, tão pouco vistos. Os filmes estão disponíveis no youtube (link nas notas)18.

Referências:

BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. 326p.

BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. 197p.

BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016.

BRITO, Ronaldo. A Máquina Antes de Cézanne. in: Filme Cultura, Embrafilme n.35-36, p. 37, 1980.

BUENO, Guilherme (org). Antonio Manuel : eis o saldo : textos, depoimentos e entrevistas.  Rio de Janeiro, Funarte, 2010. 137 p.

FERREIRA, Gloria. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. 575 p.

FERREIRA, Gloria; FARIAS, Agnaldo.; ANJOS, Moacir dos.; HERKENHOFF, Paulo. INSTITUTO TOMIE OHTAKE. Meio século de arte brasileira = Half century of brazilian art. São Paulo: Instituito Tomie Ohtake, 2007-2009. 4 v. (Meio seculo de arte brasileira).

FREITAS, A. Notas sobre o amor: Pedro Escosteguy em Curitiba. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 127–143, 2017. DOI: 10.24978/mod.v1i1.734. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8662258. Acesso em: 30 nov. 2022.

VOROBOW, Bernardo (org). ADRIANO, Carlos (org). Julio Bressane : cinepoética.  São Paulo, Massao Ohno, 1995. 174 p.

NOTAS:

  1. Os filmes sobre arte foram objeto de críticos e teóricos a partir da década de 1940. Sobre o tema, são célebres os escritos de André Bazin, Henri Lemaitre e Jean Mitry. Outro dado curioso de indicar, sobre esses filmes no contexto brasileiro, é que a sessão de inauguração do Departamento de Cinema do MAM-RJ, em 1955, foi dedicada a “filmes sobre arte”, tendo sido exibido o Van Gogh de Resnais, dentre outros filmes.^
  2. Ronaldo Brito – “A Máquina Antes de Cézanne”, Filme Cultura, Embrafilme n.35-36, p. 37, 1980. ^
  3. BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 176.^
  4. Por exemplo, os críticos Wilson Coutinho e Olívio Tavares de Araújo realizam filmes – sem falar dos audiovisuais de Frederico Morais -, assim como Antonio Manuel realiza Cultura e Loucura e Arte Hoje, Raymundo Amado, poeta, realiza Apocalipopótese como artista integrante da manifestação e Pedro Escosteguy roteiriza e escreve o texto de Arte Pública.^
  5. FERREIRA, Glória. Anos 70 – arte como questão. in: Meio século de arte brasileira. São Paulo: Instituito Tomie Ohtake, 2007-2009. 4 v.^
  6. FREITAS, Arthur. Notas sobre o amor: Pedro Escosteguy em Curitiba. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, SP, v. 1, n. 1, p. 127–143, 2017. Toda a descrição e parte da análise exposta abaixo sobre Arte Pública é devedora do texto de Freitas.^
  7. nesse sentido é curioso notar que os filmes Arte Pública, Ver Ouvir e Apocalipopótese estiveram presentes na mostra Information realizada no Moma em 1970, representando a produção brasileira junto, por exemplo, dos registros cinematográficos da Situação T/T1 de Artur Barrio.^
  8. A geração tranca-ruas. In: BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016. P. 33. Artigo com entrevista de Frederico Morais, por ocasião da manifestação Do Corpo À Terra, realizada em abril de 1970 em Belo Horizonte^
  9. São eles: By Antonio Manuel, 1972. 16mm; Loucura & cultura, 1973. 35mm; Semi-Ótíca, 1975. 35mm; Arte Hoje, 1976. 16mm; Uma Parada, 1977. 16mm^
  10. A arte abrange tudo – é uma experiência vital. In: BITTENCOURT, Francisco, LOPES, Fernanda. Francisco Bittencourt : arte-dinamite. Rio de Janeiro : Tamanduá Arte, 2016. P. 184.^^
  11. BUENO, Guilherme (org). Antonio Manuel : eis o saldo : textos, depoimentos e entrevistas.  Rio de Janeiro, Funarte, 2010. Introdução, p. 15.^
  12. publicado em 1967, foi um importante ensaio para a configuração das estratégias da vanguarda brasileira na virada da década de 60Frederico Morais o tomou como inspiração para desenvolver a ideia de arte de guerrilha^
  13. PIGNATARI, Décio. Teoria da Guerrilha Artística. In: FERREIRA, Gloria. Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006.^
  14. “Estabelecemos na estrutura do livro a ideia de abrir novos espaços para veiculação dos trabalhos – dividir por partes, ou seja, por nomes dos artistas e seus discursos sobre o corpo. Nesse sentido cada artista é parte de um todo e os pontos abordados por cada um, na sua totalidade, formam um corpo. Nossa intenção é fundir os sentidos individuais num corpo próprio e coletivo.” In: Ondas Do Corpo, Antonio Manuel. Inédito. ^
  15. seja na forma de documentação de ações e obras (Estômago embrulhado, Banquete, pinturas de Collares), de “performances” feitas para a câmera e para o próprio filme (Sangue, Raça e Costumes), da realização fílmica de obras que existem de outra forma fora do filme (Tv News) e, por fim, o próprio filme Arte Hoje.^
  16. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 214^
  17. PIGNATARI, Décio. História sem estória. In: VOROBOW, Bernardo; ADRIANO, Carlos (orgs.). Júlio Bressane: Cinepoética. São Paulo, Massao Ohno, 1995. 174 p.^
  18. https://www.youtube.com/watch?v=tteMewMZn14   e   https://www.youtube.com/watch?v=BFuZFyx_tMM&t=24s^

Duas pausas em Spray Jet – uma nova atração na tela? — por Lucas Almeida

Pintei um quadro só por fora das molduras
Eu joguei tinta nas paredes todo mundo achou legal
Dei cambalhotas e as madames exclamaram
“Esse Moreira é um artista genial!”
O Conto do Pintor, Moreira da Silva.

Na década de 1980 Ana Maria Magalhães dirigiu dois curtas-metragens com o intuito de “fazer uma cobertura da cultura daquela época”.1 São eles: Assaltaram a Gramática (1984) e Spray Jet (1985). Respectivamente um filme sobre poesia e outro sobre artes plásticas, ambos com um recorte muito bem definido de “atores” e práticas. O primeiro versa sobre a poesia e os poetas marginais da década de 1970, que estavam sendo publicados comercialmente pela primeira vez no início dos anos 1980. O segundo, sobre a “Geração 80” e a “volta da pintura” em voga naquele momento, representada no filme pelos jovens artistas José Leonilson, Leda Catunda e Ciro Cozzolino. Afora o contexto histórico de suposta euforia pela abertura política e uma estrutura fílmica semelhante – decupagem clássica, cenas documentais entremeadas com encenações e “performances”, cores quentes e na trilha sonora o que ficou conhecido como “rock brasil” – os dois filmes compartilham uma característica que, não por acaso, combina com a forma cinematográfica de ambos: são filmes que tratam de atividades e atores “da moda” na cultura e “em alta” no mercado da época.2 Não que sejam exatamente filmes de propaganda mas, feitos no calor do momento, se deixam contaminar pelos discursos midiáticos acerca da prática específica que cada filme enfoca, tendo, por isso, forte apelo publicitário.

Em geral, Spray Jet se divide em blocos de depoimentos individuais de cada artista, com imagens de cobertura de passeios pela cidade, ruas, lojas, parques e um museu (MASP); imagens das pinturas e da prática de cada artista; uma vernissage e algumas encenações. Dos depoimentos e das imagens pode-se tirar, em síntese, algumas ideias que eram apontadas como características da produção dos jovens artistas dos anos 1980, como a retomada da pintura e a ruptura deliberada com a arte da geração anterior, conceitual e difícil, “jogo dos paradoxos” no dizer de Leonilson; a assunção da pintura como uma prática visceral, “expressionista” e, ao mesmo tempo, prazerosa, “uma forma legal de viver”, ligada à vida íntima e cotidiana dos artistas e dos espectadores; e, por fim, a apropriação de imagens da história da arte e da indústria cultural misturadas e reconfiguradas num “citacionismo” plástico.

Embora nessa época a produção de cada um dos três artistas já apresentasse uma evidente singularidade, e por mais que o filme dê algum espaço para a manifestação de suas diferenças, há um direcionamento no sentido de construir um discurso comum, retratando a dita “volta da pintura” como um movimento, os pintores como uma geração, suas práticas como necessariamente relacionadas e embasadas nas características acima referidas. Assim, o filme se aproxima das manifestações críticas/publicitárias sobre a nova pintura, emitindo juízos que, de acordo com Basbaum (2001, p. 311), “não foram gerados em contato direto com essa nova produção, mas a partir de um conceito de pintura mais amplo, tão genérico quanto indeterminado”, apelando-se em especial para uma dimensão comportamental que supostamente estaria inscrita na produção. Por serem ideais, esses juízos se fragilizam com muita facilidade.3 Aqui, iremos nos deter em duas partes encenadas do filme em que tal discurso chega a ser confuso e contraditório.

Fotogramas de Spray Jet; Maria Gladys e Helena Ignez

Em uma das cenas ficcionais que entremeiam os depoimentos e as tomadas “documentais” de Spray Jet, vemos Maria Gladys e Helena Ignez a atuar como empregada e madame, respectivamente. Nesta cena, enquanto a empregada (des)ajeita um quadro pendurado na parede – uma pintura de José Paulo Moreira da Fonseca -, a madame reclama da ousadia do “menino” artista – provavelmente seu filho – , recolhe alguns objetos em sua sala de estar – carcaça de violão, garrafa, o que parece ser um jogo americano cheio de areia, e um ovo, todos “arte” do menino – e ordena que a empregada guarde uma parte na cozinha e jogue o resto fora. Assim o faz Maria Gladys, ou Dinalva, mas jogando-os direto da janela para a calçada. Os objetos caem, ouve-se um carro freando bruscamente e, na sequência seguinte, Leda Catunda, de dentro do carro, observa o entulho e exclama: “oba, é arte!”. Só que a sequência não acaba aí e, já sem som, é possível ver que, depois da exclamação afirmativa, a artista, com um semblante confuso, põe em cheque a sua afirmação.

Fotograma de Spray Jet; Leda Catunda

Nessa cena, temos que o artista é filho da madame, e que ele produz uma arte objetual que remete de alguma forma à ideia de ready-made, embora não possamos assegurar suas ideias e preferências artísticas. Fato é que ele não pinta, e que não há nada de expressivo em um ovo. Dinalva, no começo da sequência, (des)ajeita uma pintura, arte que a madame provavelmente aprecia e contrapõe à produção disparatada de seu filho. Como vimos, a produção do filho vai parar na calçada, jogada fora como lixo, e Leda Catunda – apresentada nos créditos de abertura como pintora e não simplesmente como artista -, menos do que ficar confusa, aparenta algum constrangimento diante de sua afirmação, quase como que após um ato falho. Bem, seria o filho da madame um jovem pintor da “Geração 80” ou um anacrônico vanguardeiro perdido na década errada?

Por mais confusa que seja essa cena, resta claro pelo desenrolar do filme que sua função é a de caracterizar comportamentalmente a nova geração de artistas, colocando-os como jovens transgressores (“que ousadia desse menino!”) que operam uma ruptura (alegre e disparatada – “oba!”) na forma de fazer e entender arte das gerações anteriores (pintura bem comportada com chassi – de extração modernista). O que podemos pensar, porém, considerando os exemplos de “nova arte” que o filme apresenta, a pintura na parede e os objetos que são jogados fora – além da confusão de Leda Catunda – é que a madame mercado, mãe do(s) artista(s) do Brasil, ainda naquele momento renega a produção “conceitual e difícil” das décadas de 1960/70, preferindo uma pintura à qualquer coisa de arte contemporânea. E podemos dar continuidade a esse entendimento quando chegamos na cena da vernissage, em que a madame também está presente – apenas não é mais representada por Helena Ignez.

Fotograma de Spray Jet; Vernissage

O que temos, portanto, não é apenas uma retomada da pintura – claro, agora uma pintura de grande formato, mal comportada, sem chassi e muitas vezes irônica – mas uma continuidade das vendas. Aqui vale fazer menção a “Lugar Nenhum: o meio de arte no Brasil”. Publicado por Paulo Venâncio Filho em 1980, o texto traz um diagnóstico do meio de arte no Brasil, que “ (…) não sabe se existe ou se não existe”, e que “(…) Quanto mais procura existir, menos consegue” (2001, p. 216). O ponto do texto é que não há no Brasil – até aquele momento, 1980 – “um meio eficaz para a sobrevivência da produção”, e isso se dá, propositalmente, pelo modo de funcionamento do mercado de arte brasileiro, instaurado na década de 1960 sob “uma ideologia conservadora, originária da elite que o detinha”, e que antagoniza com a produção restringindo-a aos limites do consumo. Como consequência, a arte brasileira não encontra em solo nacional uma verdadeira dimensão cultural, existe apenas “enquanto satisfação de consumo, simples objeto decorativo, signo de distinção social”, sendo antes disso, em certos momentos, apenas uma boa forma de investimento (2001, p. 218).

Outra característica que Venâncio aponta no texto é a pouca ou nenhuma absorção da produção contemporânea pelo mercado, que sobrevivia até então da reapropriação da arte já institucionalizada, em especial da pintura dos modernistas históricos. Ele atesta, porém, que “um dia o estoque do mercado estará esgotado, e o confronto com os trabalhos contemporâneos será inevitável. Entretanto, pode-se prever que a sua simples apropriação não deverá modificar substancialmente o meio” (2001, p. 222). É justamente isso que ocorre alguns anos depois, no início da década de 1980. O mercado brasileiro busca se aquecer rapidamente por meio do trabalho de jovens artistas que praticam pintura, servindo-se da institucionalização internacional do “retorno da pintura” para legitimar mercadologicamente a incipiente produção. A inserção da produção contemporânea no mercado foi, porém, apenas mais um artifício para se atrair capital de forma rápida. Mais uma vez, “a legitimação do trabalho através do capital vai pagar sua entrada para uma história imediata, ou seja, o consumo” (VENÂNCIO FILHO 2001, p. 216). Aqui voltamos à Madame. Não seria difícil imaginar Dinalva tirando poeira de um Leonilson.

Fotogramas de Spray Jet; artistas produzindo e Ciro Cozzolino atirando lata de tinta.

A cena final do filme se passa, emblematicamente, num grande terreno baldio, “lugar nenhum” em que os três jovens artistas pintam energicamente as suas telas e jogam “para o alto qualquer coerência”.4 Nesse ponto, Leonilson diz: “O filme vai ser um testemunho. É como se eu tivesse escrevendo uma parte de uma coisa”, e Ciro Cozzolino completa: “Eu tô achando que é um filme, e é um documento, de um instante assim, que eu não sei se é muito importante também, assim como não é muito importante que a obra permaneça”. Ao fim e ao cabo, Spray Jet resta como um documento desse momento – mais discursivo do que real – da pintura brasileira do início dos anos 1980, em que esforços confluíram no sentido de criar um movimento, legitimar uma nova produção e inseri-la no circuito, mas não de estabelecer uma estrutura institucional e mercadológica saudável e orientada para a promoção da arte contemporânea. Embora com algum trânsito pelo exterior – no filme há referência à participação de Leonilson na Bienal de Paris de 1985 -, representados por galerias e produzindo intensamente, na realidade os jovens – e também e especialmente os não jovens – artistas brasileiros da década de 1980 estavam construindo suas obras – e o próprio circuito – num terreno baldio, entre lamaçais e mamoneiras.

Fotograma de Spray Jet; artistas e suas telas

A década de 1980 foi passando e a “pintura jovem”, de tanto ser tratada como moda, rapidamente tornou-se démodé.5 Com o arrefecimento da “volta da pintura” no cenário internacional, no Brasil a “Geração 80” também foi perdendo seu apelo e se mostrando, afinal, apenas como um bom slogan. Houve um movimento por parte da crítica e, em especial, dos artistas, de se afastar desse momento e seguir na construção de suas pesquisas artísticas individualizadas. Do discurso de promoção anteriormente propagado ficou claro que não só não houve uma “volta da pintura” – que sempre persistiu em existir, isso sem falar que o neoexpressionismo alemão por exemplo datava já da década de 1960 (ARCHER, 2012, p. 160) – , como também que havia mais continuidades do que rupturas na produção da década de 1980 com a arte das décadas de 1960 e 706 – como bem demonstrou Basbaum (2001) – e que o discurso de ruptura serviu internacionalmente como uma forma de promoção mercadológica da pintura em detrimento de outras formas de arte, sendo a produção madura de boa parte dos artistas relevantes envolvidos na “Geração 80” muito mais influenciada por questões da arte experimental das décadas anteriores do que por questões da pintura “expressionista”, como defende Hal Foster em termos mais amplos (FOSTER, 2017, p. 52).7 Mas nem tudo é de todo mal, e como atestou Milton Machado em conferência de 1992:

Melhor que fiquemos, com Nietzsche, na crença de que a produção de mentiras da arte adquire sua nobreza pelo fato de que é assim que ela produz novas verdades. A essas alturas, os bons artistas da “Geração 80” já se afirmaram como tais – alguns, até merecidamente, como “os tais”; muitos conseguiram finalmente adquirir suas genuínas individualidades, resgatá-las àquela “individualidade grupal” – norma e paradoxo – que se lhes tentou colar à testa como um rótulo. Todos finalmente e felizmente muito “mal comportados”, em suas buscas profissionais de coerência, quaisquer que sejam elas. A crítica , que na época se manifestava com euforia, hoje parece ter revisto algumas daquelas posições. E seria injusto não reconhecer entre os resultados de seus esforços a emergência de um momento – não de euforia, mas – de grande dinamismo, de participação, capaz de atrair a atenção de um público anestesiado à produção e de revitalizar o mercado, e do qual todos nós , de certa maneira, nos beneficiamos (MACHADO, 2001, p. 339).

 

Referências

ARCHER, Michel. História da Arte Contemporânea. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 2.ed. p.155 – 199.

BASBAUM, Ricardo. [1988] “Pintura dos anos 80: algumas observações críticas”. In: Idem (org.). Arte contemporânea brasileira. Texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 299-317.

CHIARELLI, Tadeu. [1987] “Considerações sobre o uso de imagens de segunda geração na arte contemporânea”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 257-270.

FOSTER, Hal. O Retorno do Real: A vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

MACHADO, Milton [1992] “Dance a noite inteira mas dance direito”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p.321-344.

MONTEIRO, Fabiana Della Coletta. Da geração 80 na arte contemporânea brasileira: profissionalização e permanência no ambiente artístico paulista. 2016. 157 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

MORAIS, Frederico. [1984] Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você? In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias.Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p.224-230.

SESC TV. Sala de Cinema: Ana Maria Magalhães. Brasil: SescTV, 2011. 1 vídeo (55 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IzNDTWTSdYo&t=2216s. Acesso em: 01 jul. 2022

SPRAY Jet. Direção: Ana Maria Magalhães. Brasil, Embrafilme, 1985. 35mm, COR, (14 min)

VENANCIO FILHO, Paulo. [1980] “Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil”. In: BASBAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira. Texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 216 – 223.

 

NOTAS:
  1. SESC TV. Sala de Cinema: Ana Maria Magalhães. Brasil: SescTV, 2011. 1 vídeo (55 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IzNDTWTSdYo&t=2216s.^
  2. Os ‘atores’ de Assaltaram a Gramática – Chico Alvim, Waly Salomão, Paulo Leminski, Chacal (e Ana Cristina César, que havia falecido em fins de 1983 e é homenageada numa cena em que aparece lendo um trecho do poema Samba Canção) são todos poetas que viveram e desenvolveram boa parte de sua obra nos anos 1970, e que estavam naquele começo de década sendo lançados pela Editora Brasiliense. Assaltaram a Gramática, porém, é bem mais político (e apocalíptico) do que Spray Jet. Talvez pela idade dos poetas, talvez por ser a poesia, no dizer de Décio Pignatari, a arte do anticonsumo.^
  3. Utilizo como referência principal o texto Pintura dos anos 1980: algumas observações críticas, publicado por Ricardo Basbaum em 1988, em que o autor analisa alguns textos escritos pelos críticos Roberto Pontual, Frederico Morais e Marcus de Lontra Costa para promover a pintura nos anos 1980.^
  4. Faço referência ao texto “Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você?”, em que Frederico Morais escreve: “O jovem artista dos anos 1980 não se sente absolutamente comprometido com temas, estilos, suportes ou tendências. Joga para o alto qualquer coerência” (2001, p. 227). E brinco com o fato de que, no filme, Ciro Cozzolino, no terreno baldio, joga para o alto uma lata de tinta.^
  5. Faço referência à frase de Hal Foster: “Tratado como moda, o pós-modernismo tornou-se démodé.” (2017, p. 187) ^
  6. É curioso notar que a última imagem do filme – na qual os três artistas empunham suas telas sem chassi (tecidos) – possibilita uma analogia visual direta com os parangolés de Hélio Oiticica.^
  7. “No entanto, estamos diante de um falso testemunho, pois na década de 1980 o minimalismo era descrito como redutor e retardataire para que o neoexpressionismo parecesse expansivo e de vanguarda, e desse modo as diferentes políticas culturais dos anos 1960 minimalistas e dos anos 1980 neoexpressionistas foram mal-interpretadas. Apesar de suas aparentes liberdades, o neoexpressionismo participou das regressões culturais da era Reagan-Bush, ao passo que, apesar de suas aparentes restrições, o minimalismo abriu um novo campo da arte, que a arte de ponta do presente continua a explorar (…)” (FOSTER, 2017, p. 52).^

NAVIO NEGREIRO, de Amiri Baraka (tr. Alan Cardoso da Silva)

 

NAVIO NEGREIRO

um espetáculo histórico


ELENCO

PARTES FALANTES

ESCRAVOS AFRICANOS – VOZES DE ESCRAVOS AFRICANOS

1º Homem (o que reza – esposo de Dademi)

2º Homem (o que xinga)

3º Homem (o que luta)

1ª Mulher (a que reza)

2ª Mulher (a que grita – atacada)

3ª Mulher (grávida)

Dançarinos

Músicos

Crianças

Vozes e corpos no navio negreiro

o escravo Velho Tom

novo Tom (Pastor)

HOMENS BRANCOS – VOZES DE HOMENS BRANCOS

Capitão

Marinheiro

Dono da fazenda – “Eterno Opressor”

ADEREÇOS

Efeitos olfativos: incenso…cheiro de terra/de sujeira/de corpos

Correntes pesadas

Tambores (Tambores bata africanos, e atabaque e bateria)

Chocalhos e tamborins

Música de banjo para atmosfera de fazenda

Sons de navio

Sinetas de navio

Oscilação e sons de água do mar

Armas e cartuchos

Chicotes/sons de chicote

Todo o teatro escurecido. Preto. Por muito tempo. Só preto. Um som ocasional, como navio rangendo, chiando, balançando. Cheiros do mar. Na escuridão. Deixar as pessoas no escuro, e gradualmente os odores do mar, e os sons do mar, e os sons do navio, da tripulação. Queimar incenso, mas fazer subir um cheiro notável, quase sufocante. Mijo. Merda. Morte. Processos da vida que acontecem de qualquer jeito. Comer. Esses cheiros e gemidos, os golpes e as lacerações de chicote, numa total sensosfera, alcançada de algum jeito.

Tambores africanos como os do culto de Orixá. Obatala. Chocalhos Mbwanga dos sacerdores. BamBamBamBamBum BumBum BamBam.

Balançar do navio negreiro, na escuridão, sem som. Mas com cheiros. Então um barulho. Agora, devagar, para fora da escuridão, com cheiros e tambores em staccato, os gritos medonhos. Todas as mulheres juntas, gritam. AAAAAIIIIEEEEEEEEEEEE. Tambores voltam, oscilando, oscilando; trevas pretas do navio negreiro. Cheiros. Tambores bem alto. Param. Grito. AAAAAIIIIEEEEEEEEEEE. Tambores. Trevas pretas com cheiros.

Correntes, o chicote, e pessoas gemendo. Ouve-se o som que sai dos atores. Sons de serem jogados para dentro do porão. AAAAIIIEEEEEEEEE. De gente, lançada nas trevas, amedrontadas, com raiva, espremidas juntas num terror compartilhado. As sinetas do navio. Vozes de Homens Brancos, do topo, prontos para zarpar.

VOZ 1: Vamos embora! Mas que carga boa de ouro negro, vamos! Vamos para o Oeste! Para o Oeste. (Risada longa) Ouro negro no Oeste. Temos uma bela carga.

VOZ 2: Sim, sim, Capitão. Seguimos nosso rumo. América! (Risos)

VOZ 1: Sim, ricos, seremos ricos! Seguimos nosso rumo. América! (Risos)

(Há apenas uma luz baça no topo do palco, para indicar onde as vozes estão…)

(Tambores africanos. Com o som de rapidez de dança, mas correndo em direção ao pesar que as trevas impõem. Os tambores desaceleram. O som vence a treva. “Onde estamos, Deus?”. Os murmúrios de resmungo ressoam abaixo. O zumbido de terror. As vozes começam a batucar contra as trevas.)

MULHER 1: Ooooooooooooooo, Obatalá!

MULHER 2: Xangô!

MULHER 1: Ooooooooooooooo, Obatalá…

(Choro de crianças no porão, e as mulheres tentando confortá-las. Tentando manter suas sanidades também)

MULHER 3: Moshake, chile, calma, foco. Moshake chile. Ah calma, Orixás, nos salvem!

MULHER 2: AAAIIIEEEEEEE

HOMEM 1: Quieta, mulher! Quieta! Guarda tua força pra tua cria.

MULHER 2: AAAIIIIEEEEEEE

HOMEM 1: Quieta, mulher estúpida! Calada!

MULHER 3: Moshake, amor, chile, calma, calma, isso vai te, ooooooooo

HOMEM 1: Xangô, Obatalá, façam sua luz, forjem o espírito brilhante com caminhos para o seu povo. Forjem, forjem, forjem.

(Tambores soam, mas eles são batidas nas paredes e no chão. Correntes chacoalham. Arrastar de correntes.)

(Temos a sensação de muitas pessoas amontoadas, homens, mulheres, crianças, sofrendo nas trevas. As correntes. Os chicotes, aumentar correntes e chicotes. Serem arrastados juntos. A dor. O terror. As mulheres começam a gemer e entoar canções, “Canção africana da tristeza”, com o roçar do chão e correntes como acompanhamento)

HOMEM 2: Fukwididila! Fukwididila! Fukwididila! Fodam-se, Orixás! Deus! Onde você está? Onde você está, Deus Preto? Me ajude. Eu ser um guerreiro forte, não mulher. E eu resisto a estas correntes! Mas você devem me ajudar, Orixás. Obatalá!

HOMEM 3: Quieto, imbecil, você assusta as mulheres!

(As mulheres continuam cantando, gemendo. Crianças choram agora. Mães tentam confortá-las. Sensação de pessoas se movendo, tropeçando umas sobre as outras. Gritando enquanto tentam achar um “lugar” no fundo do navio, e então o longo fluxo de vontades diferentes, articuladas como gritos, grunhidos, choros, canções et cetera)

HOMEM 3: Puxe-as, puxe, quebre-as…puxe

MULHER 1: Ah, Obatalá!

MULHER 3: Oh, chile…minha chile, por favor, escape…você destrói…eu

HOMEM 3: Quebre-as…quebre

TODOS: Uhh, Uhhhh, Uhhh, Uhhh, OOOOOOOOOOOOOOOOOOO.

MULHERES: AAAAAIIIIIIIEEEEEEEE.

TODOS: Uhhh, Uhhhh, Uhhh, Uhhh, OOOOOOOOOOOOOOOOOOO.

MULHERES: AAAAAIIIIIIIEEEEEEEE.

(Tambores baixos, como um tamborilar, tornam-se batidas no chão, nas paredes, chacoalhar, e arrastar de correntes, sons de percussão que as pessoas fazem no porão de um navio. Os gemidos e a agonia de estarem amontoados. Crianças chorando incessantemente. As mães tentando confortá-las. Mais de uma criança. Meninas com medo de serem violadas. Homens tentando se libertar, ou se tornando crianças amedrontadas. Famílias separadas pela primeira vez)

MULHER 2: Ifanami, Ifanami…cadê você?? Cadê você? Ifanami.

(Chora)

Por favor, ah, Deus!

HOMEM 1: Obata…

(Tambores suaves…começam a cantarolar…hummmmmmmmmmm, hummmmmmmmmm, como mulheres pretas velhas cantarolando por três séculos na miséria vagarosa da escravidão…hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm, hummmmmmmmmmmmmmm)

(As luzes lampejam nos homens brancos em roupas de marinheiros curtindo seus vícios…vozes baixas…hummmmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmm. As luzes para iluminar as pessoas brancas são repentinas, muito brilhantes e ofuscantes. Os homens brancos começam a rir e apontar, como se apontassem para a sujeira e para a miséria, e para a degradação das pessoas pretas. Eles riem. HAAAAAAAAHAAAAAHAAAHAAHAAAHAAHAAHAA. Quando são mostrados de novo eles estão rolando de felicidade. Apontando, dançando, pulando para cima e para baixo, HAHAHA hahaha Haaa…)

(O riso é abafado pelos tambores. E então a canção-gemido das mulheres…depois silêncio. Voltam os tambores, mais suaves, então o cantarolar, sem parar, numa enlouquecedora, crescente paciência-morte, rompida pelos gritos, e os bebês e os peidos, e os bebês chorando por luz, e jovens esposas chorando por homens. Gente velha clamando a Deus. Guerreiros clamando liberdade. Alguns praguejando contra os homens brancos.

HOMEM 3: Demônios! Demônios! Demônios! Monstros brancas! Filhos da puta! Monstros!

(Eles batem contra as paredes, e tentam romper as correntes presas nas paredes)

Brancos filhos da puta.

MULHER 3: Aiiiiieeeeeeeeeeeee.

HOMEM 1: Deus, ela se matou e matou a criança! Deus! Deus!

(Gemidos. Gemidos. Tambores leves, e o constante, quase enlouquecedor cantarolar…hummmmmmmmmmmmm, hummmmmmmmmmmmmmmm…como velhas pretas cantarolando para sempre numa paciência mortífera…hummmmmmmmmm hummmmmm hummmmmm)

MULHER 1: Ela se enforcou com a corrente. Sufocou a criança. Ah, Xangô! Nos ajude, Senhor. Ó, por favor.

MULHER 2: Por que nos deixou, Senhor?

HOMEM 1: Dademi, Dademi…ela morta, ela morta…Dademi…

(Ouve-se um homem destroçado com gemidos de morte, gritos)

Dademi, Dademi!

(Hummmmmmmmmmmmmmmmmm, Huuuuuuuuuuuuuuuuuuuum, Hummmmmmmmm, Hummmmmmmmmmmmmmmmmmm. Tambores baixos, e gemidos…as correntes, e pessoas pretas sendo empurradas umas contra as outras, lutando por ar e espaço para sobreviver. Os homens pretos choram por suas mulheres. As mulheres pretas choram por seus homens juntas nas trevas, algumas chamam por Deus)

MULHER 2: Por favor, não me toque…Por favor…

(Agitada)

Ifanami, cadê você?

(Grita contra alguém que a toca na escuridão, apalpando-a, tentando arrastá-la para as trevas, empurrando-a contra o chão)

Akiyele…por favor…por favor…não, não me toque…por favor, Ifanami, cadê você? Por favor, me ajude…De…

HOMEM 1: O que você está fazendo? Sai de perto desta mulher. Ela não é sua mulher. Você vira um monstro também.

(Briga de dois homens nas trevas tentando matar um ao outro. Luzes mostram homens brancos sorrindo silenciosamente, os chicotes pendendo, em pantomima, ainda apontando)

HOMEM 3: Demônios. Demônios. Seus merdas sem alma.

(Todos os sons grotescos juntos.)

(O cantarolar recomeça. Sinetas do navio. Silêncio, e gemidos, e cantarolar, e movimentação de pessoas na escuridão. Indo para frente e para trás. Tentando sobreviver, e agora, sobre isso tudo, o som constante da risada dos marinheiros)

MARINHEIROS: AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAAAAAHHAHHHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH

HOMEM 3: Eu mato vocês, demônios. Eu quebro essas correntes.

(Som de homens sofrendo com correntes pesadas)

Eu rasgo a sua cara. Esmago seu pescoço. Demônio. Demônios.

MULHER 1: Ah, ah, Deus, ela morta…e a criança.

(SILÊNCIO/Som do mar…se dissipa)

TODOS: (Cantatolando) HMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMMMMMMMM

(As luzes se acendem repentinamente, mostram um “Negro” se arrastando. Luzes apagadas…tambores de guerreiros africanos antigos tocam…guerreiros heróis. As luzes piscam e acendem, mostram o homem preto se arrastando, chapéu na mão, coçando a cabeça. Luzes apagadas. Tambores de novo. O homem dançando no escuro, com sinos, como se estivesse livre, dançando velhas selvagens danças. Dançando nas trevas…dança iorubá. Luzes piscam brevemente, neste exato momento a dança para. Apagam. Acendem, para mostrar o Escravo, bunda esfarrapenta, chapéu esfarrapado na mão, se arrastando em direção ao público, se arrastando, coçando a cabeça e a bunda. Balançando a cabeça para cima e para baixo, concordando, concordando e concordando, enquanto os chicotes estalam. Luzes apagadas, piscam, e os marinheiros, com chapéus trocados para mostrá-los como donos de fazenda, ainda estão rindo; sem som, mas rindo e apontando, segurando seus flancos, e eles riem e apontam)

ESCRAVO: (Nas trevas)

Sim, sinhô, sim Seu Tim, sim, sinhô.

(As luzes acendem)

Tô feliz como um macaquinho, sim, sinhô, sim, Seu Tim, sim, Seu Booboo, tô tão feliz que num sei o que fazê. Sim, sinhô, o sinhô é tão lindo e tão bom, e charmoso também, sim, tô tão feliz que fico à toa coçando minha bunda escurinha.

(As luzes acendem no Escravo dançando para o senhor; quando ele para de dançar, faz uma reverência e se coça.)

(Luzes apagadas…aquele mesmo hummmmmmmmmm soa…com tambores baixos, mas o hum fica alto e abafa os tambores…hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm  hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm. O riso sobressai ao cantarolar, aquela mesma risada fria e medonha, ficando mais alta)

MULHER 3: (Murmurando depois da morte)

Moshake…Moshake…Moshake chile, calma, amor.

(A mulher cede e chora um pouco, sem nenhum outro som que distraia, só o seu gemido e choro tristonho, pelo seu bebê. Correntes. Correntes. Arrastar de correntes. O cantarolar. Hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm)

MULHER 2: AIEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE

Todos: Uhh, Uhhh, Uhhh, Uhhh, Oooooooooooooooooooo.

(Silêncio)

(No começo, bem leve, mas aumentando o som. De banjos da plantação)

ESCRAVO 1: Reverendo, o que vamo fazê quano sinhô chegá?

(Ele parece amedrontado)

ESCRAVO 2: Nós vamo cortá o pescoço desse desgraçado!

(Banjos)

(Cantarolar…Hummmmmmmmmmmmmmmmmmmm)

ESCRAVO 1: Reverendo, o que vamo fazê quando o homem branco chegá?

ESCRAVO 2: Nós vamo cortá o pescoço desse desgraçado!

ESCRAVO 3: Demônio. Monstro. Assassino de mulheres e crianças. Filho da puta sem alma!

ESCRAVO 1: Reverendo Turner, sinhô, o que vamo fazê quando o sinhôzinho chegá?

ESCRAVO 2: Cortá o pescoço daquele desgramado.

(As luzes acendem no mesmo escravo tipo “Tom”, ainda coçando a cabeça, mas aparentemente falando com um homem branco)

ESCRAVO: Hã, tá bem, Seu Tim…eles vão voltá

VOZ BRANCA: É o quê? Votar? Endoideceu?

ESCRAVO: Não, sinhô…Eu disse voltá…hã…tipo revoltá

(Risos…surgindo por de trás do diálogo)

VOZ BRANCA: Quando, rapaz?

ESCRAVO: Ahhh, essa noite, sinhô…eles dize que vão…cê me perdoe o palavreado…cortá o seu..hã…pescoço…

VOZ BRANCA: (Ri)

E quem está liderando essa “volta”

ESCRAVO: Hã…Reverendo Turner…sinhô

VOZ BRANCA: É o quê?

ESCRAVO: Hã…é isso…Reverendo Turner…sinhô…Agora posso ganhar aquele punhadinho a mais que o sinhô prometeu?

(Gritos, assim que as luzes apagam. AIEEEEEEEEIEIEIEIEIEIE. Armas de fogo, uma combinação de navio negreiro com início da revolta. Vozes dos senhores e escravos em combate)

VOZ BRANCA: Eu mato vocês, seus pretos. Pretos selvagens.

VOZ PRETA: Monstros brancos. Demônios infernais.

(Uma voz, cantarolando, cantarolando devagar, uma paciência mortífera hum HUMMMMMMMMMMMMMMM)

(Tambores de África, e os gritos de pretos e brancos em combate.)

(As luzes acendem em Tom, chorando como se estivesse se escondendo do combate, mastigando charque. Vozes de homens brancos celebrando a vitória. Outro pedaço de charque sai da escuridão. Tom agarra e enfia tudo na boca, rindo e se arrastando de um jeito esquisito, cantarolando enquanto come)

MULHER 3: (Voz morta sussurrando)

Moshake, Moshake…chile…calma, calma…vai ficar tudo bem,…Moshake, se acalma…

HOMEM 1: Monstros brancos!

Todos: Uhh. Ohhh. Uhhh, Uhhh

(Como se empurrassem algo muito pesado)

Uhh. Ohhh. Uhhh. Uhhh. Uhhh.

MULHER 1: Ifanami…

HOMEM 1: Dademi…Dademi.

MULHER 2: Akiyele…Akiyele…Senhor, marido, cadê vocês?…me ajudem…

HOMEM:…segura minha mão…mulher…

MULHER 2: Ifanami!

MULHER 3: Moshake!

(Agora as mesmas vozes, mas como se transportadas no tempo para fazendas de escravos, chamam nomes, nomes de escravos em inglês)

Todos: (Alternadamente, homem e mulher perdendo o parceiro para a morte, ou para o comércio de escravos, ou a aura de um constante medo da separação…)

HOMEM: Sarah.

MULHER: John.

MULHER 2: Everett. Meu deus, mataram ele.

TODOS: Mamãe, mamãe…vó, vovó. Willie. Ahhh, Senhor…morreram todos.

TODOS: Uhh. Uhhh. Uhh. Obatalá. Obatalá. Nos salve. Senhor. Xangô. Senhor das florestas. Devolva as nossas forças.

(Correntes. Correntes. Pessoas grunhindo e sendo arrastadas, espremidas umas contras as outras)

(Ouve-se um “Ó, Senhor, me leve, Senhor” e agora gritos de “JESUS, SENHOR, JESUS…NOS AJUDE, JESUS…”)

HOMEM 1: Ogum. Me dê armas. Me dê ferro. Minha lança. Meu osso e músculo, faça eles firmes com tensão para lutar. Ogum, me dê fogo e morte para que enfrente os monstros. Saravá! Saravá! Ogum!

(Tambores de fogo e sangue, brevemente altos e rompendo contra as trevas, mas depois se acalmam, se dissipam, até que se ouça apenas os gemidos, e o mesmo cantarolar paciente…de mulheres, agora nenhum homem, só mulheres…versos de “The Old Rugged Cross”…e apenas as mulheres e o cantarolar…o tempo passando na escuridão, um choro fraco, fraco, lastimoso, “Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…”)

(As luzes acendem, e o pastor de terno em pé com um chapéu na mão. Ele é o mesmo Tom de antes. Ele fala com sua congregação: “Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus”. E então, com um sorriso malicioso, tagarelando de forma pseudo-inteligente, como fala com seu senhor. Ele tenta ser, na verdade, crê que é, digno, tenta manter uma postura elevada, mas só consegue ficar reto de um jeito esquisito, como um poste)

PASTOR: Sim, nós entendemos…o problema. E, pessoalmente, eu acho que algum acordo pode ser alcançado. Nós não vamos ser violentos…no mínimo…porque entendemos a dignidade de Labaxúrias e do Espírito Sebento. Claro, que um trago não é um estrago mas um trato. Os pinguins fariam o mesmo. E eu tenho um bisonho que os merdas-cheirosas não vão integrar. Cabeça no presente. Eu tenho um bisonho…um tonho, nas colinas, com a sua mulher.

MULHER 3: (Voz de uma mulher gritando em busca de sua criança)

Moshake! Moshake! Moshake! beeba…beeba…Wafwa ko wafwa ko fukwididila

(Gritos…gemidos…tambores…um tom de luto…O pastor observa, cabeça virada só um pouquinho, como se estivesse com vergonha, ainda tentando conversar com os homens brancos. Então, um dos homens pretos, sai da escuridão e senta diante do Tom, com um embrulho que é o corpo ensanguentado de um bebê queimado, como se tivessem retirado-no de uma igreja que explodiu, deixa o corpo na frente do pastor. Ele para. Olha para a “pessoa”, ele age como o Tom de antes, com o é tenta esconder o corpo do bebê atrás de si, sorrindo, fazendo graça, o tempo todo mostrando os dentes e sendo “digno”)

PATOR: Éeeeeee…como eu dizia…Sinh..hã..Senhor Tastyslop…Nós escurinhos tamos prontos pra integrar…eu subi no monte, aleluia, um ministério. Sim. Sim. Sim!

(No fundo, enquanto o pastor está parado na sua postura de bobo, o som estridente de um saxofone acompanhado de bateria. O saxofone rompe a escuridão. Com o saxofone, outros instrumentos e bateria bem altos, começam as vozes gritando…)

HOMEM: Monstros! Monstros! Monstros! Ogum. Me dê lança e ferro. Me deixe matar…

(O cantarolar de antes…demorado…incrivelmente paciente, como se fosse durar para sempre, mas torna-se um OMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM: todos entoam e o criam um clímax)

 

(As luzes apagam. O som de Ommmmm misturado com os sons do navio negreiro, do saxofone e da bateria. Som das pessoas sendo jogadas umas contra as outras, mas agora é como se tentassem todos se levantar, se recompor. O som das pessoas se recompondo. Como mortos se reerguendo. E, junto disso, os mesmos sons do navio negreiro. Riso dos brancos sobre tudo isso. Riso de branco. A canção abaixo começa acompanhada de saxofone e bateria. Primeiro cantada)

 

TODOS:

Levanta, Levanta,

Corta as amarras, Preto, levanta

Seremos o que somos…

(Todos cantando “When We Gonna Rise”)

Quando vamos levantar, irmão

Quando vamos ultrapassar o sol

Quando vamos levantar nossas cabeças e vozes

Quando vamos mostrar ao mundo quem somos

Quando vamos levantar, irmão

Quando vamos tomar nosso lugar, irmão

Como se o mundo começasse agora

Quando vamos levantar nossas cabeças e vozes

Mostrar ao mundo quem somos

Deuses-guerreiros, apaixonados, os Primeiros Homens a pisar nessa astro

Sim, sim, os primeiros a pisar nesse astro

Quanto tempo vai levar

Quando o mundo vai ser meu e seu

Quando vamos levantar, irmão

Quando vamos ultrapassar o sol

Quando vamos tomar nosso lugar, irmão

Como se o mundo começasse agora?

(Arranjo de bateria, sax e canto)

(Corpos sendo arrastados, na escuridão)

(Luzes acendem no pastor em outra parte do palco. Ele fica de pé, tagarelando coisas sem sentido com um homem branco. E o riso do homem branco pode ser ouvido tentando se sobressair à música, mas a música fica mais alta)

(Pastor vira para olhar para a escuridão e para as pessoas sendo arrastadas atrás de si, com vergonha, mas então começa a ficar assustado. A risada assume um tom menos arrogante.)

MULHER 3: Moshake. Moshake.

HOMEM: Ogum, me dê o aço.

TODOS: Uhh. Uhh. Ohh. Uhh. Uhhh

(O cantarolar fica mais alto também, no fundo. Ainda cantam “When We Gonna Rise”. O pastor se contorce, se vira para olhar, e repentinamente seus olhos se abrem muito, as luzes ficam mais claras, muito, muito lentamente, quase que imperceptivelmente. Pode-se ouvir uma cantoria, misturada com tambores africanos, e vozes, gritos, resmungos, do navio negreiro. O pastor fica inquieto, como se não quisesse estar onde está. Ele olha para o senhor procurando ajuda. Sua voz trêmula, enquanto as luzes acendem e todos vemos as pessoas no navio negreiro dançando “Miracles/Temptations’”. Alguns fazem danças africanas. Outros fazendo um novo Boogaloo, mas todos indo em direção ao pastor e em direção à voz. É uma nova dança ancestral, boogalooiorubá, mulheres, crianças, todos se movendo, estalando os dedos, cantando, e os bateristas, tocando o novo e o velho, se movendo, todos se movendo. Por fim, o pastor fica envergonhado e clama pela ajuda da voz branca.)

PASTOR: Por favor, sinhô, esses pretos endoideceram; por favor, sinhô, lança sua luz sobre eles, Jesus branquinho, deus branquinho, eles endoideceram! Socorro!

VOZ: (Tossindo, como se estivesse engasgando, tentando rir do pastor…ainda consegue rir do pastor) Tolinho. Tolinho

PASTOR: Por favor, sinhô, por favor…eu faço qualquer coisa…cê sabe, sinhô…Por favor…Por favor…

(Todos se misturam e matam-no. Então viram em direção à voz. Dançando. Cantando, de frente para a voz que agora suplica)

VOZ: HaaHaaHaaHaa

(A risada engasgada na sua garganta)

Hã..o quê?…vocês haha não podem tocar em mim…vocês têm medo de mim, pretos. Eu sou Deus. Vocês não podem matar Deus Jesus branco. Eu tenho um cabelo loiro escorrido. Eu nem uso peruca. Vocês me amam assim. Vocês querem ser como eu sou. Vocês me amam. Vocês me querem. Por favor. Eu sou bom. Sou gentil. Eu dou tudo o que quiserem. Eu sou o Jesus branco, seu Salvador, o único deus, te dou dinheiro, seu preto, eu sou bom, deus bom, por favor…por favor, não…

(Luzes começam a enfraquecer…os tambores e as vozes dos velhos escravos do navio retornam)

TODOS: Uhh. Ohh. Uhh. Ohh. Uhh. Ohh. Uhh. Ohh.

(Então aquele cantarolar terrível, se transformando num OMMMMMMMMMMMMMmmmmmmmm, que é interrompido, pelo grito da voz branca sendo morta)

VOZ: AAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

(Todos os atores iluminados parcialmente, neste ato. Então as luzes apagam. Tudo preto)

(As luzes acendem abruptamente, e as pessoas no palco começam a dançar, o mesmo Boogalooiorubá, estalo de dedo, skate, macaco, cachorro…Entra o público; chamar pessoas do público para dançar. A mesma música “Rise Up”. Realmente vira uma festa. Quando a festa ficar bastante improvisada, et cetera, e a audiência relaxar, alguém joga a cabeça do pastor no meio do palco, isto é, quando a dança começar de verdade. Então tudo preto.)


Nota do tradutor: Depois de conversar com um querido amigo sobre esta peça, decidi traduzi-la para que ele pudesse ler, mais confortavelmente, em nossa língua. Traduzir nunca é tarefa fácil e, em se tratando da linguagem de Baraka, a tarefa de traduzir NAVIO NEGREIRO foi um grande desafio. Algumas liberdades foram tomadas em partes especialmente complexas do texto de Baraka, nas quais somente a invenção seria resposta adequada ao empenho tradutório. Além disso, como se trata de uma tradução concebida para a leitura, talvez não soe adequada para a encenação, necessitando ajustes vindouros que minha falta de conhecimento de teatro me impedem de realizar mas que deixo nas mãos de quem quiser se enveredar por essas sendas.

O Tao do Pernalonga, por Fred Camper (tradução de Pedro Ávila)

Esse texto foi publicado originalmente em inglês, no dia 1 de março de 2001, pela revista Chicago Reader e pode ser lido aqui. Escrevendo a propósito de uma exibição de curtas de animação de Chuck Jones, estrelando os famosos Looney Tunes, o artista plástico e crítico norte-americano Fred Camper reflete sobre o estilo autoral de Jones e seus desenhos animados produzidos e lançados pela Warner Brothers por volta dos anos 1940 e 1950. O próprio Camper disponibilizou algumas de suas obras e outros textos sobre cinema, arte, dentre outros assuntos em seu site.

Assim como as notas, as imagens não estão presentes no texto original, foram escolhidas pelo tradutor para melhor ilustrar as sequências comentadas por Camper.

 

Charles Martin “Chuck” Jones

 

O Tao do Pernalonga

Um dia de semana à tarde, em 1972, visitei um colega aficionado por filmes em seu lar em Los Angeles. Diversas outras pessoas interessadas em cinema também estavam lá. De repente, às 3 da tarde, todos se juntaram ao redor de uma velha televisão preto & branco. Autorista [auteurist]1 de longa data, imaginei que clássico obscuro comandava suas atenções. Acabou que era uma exibição diária de desenhos animados de Hollywood dos anos 40 e 50 – todos tentavam adivinhar os diretores. Lembro de pensar: “Isso é levar autorismo longe demais”.

Mas no ano seguinte fui convertido por uma das pessoas presentes, Greg Ford, que fez a curadoria de uma série de desenhos animados no já extinto New York Cultural Center, com programações inteiras dedicadas a desenhos dirigidos por Chuck Jones, Tex Avery, Frank Tashlin, dentre outros. Desde então, essa série entrou para os livros de História da animação como a primeira apresentação auterista de desenhos animados, e agora Marty Rubin – que patrocinou a série original de Ford e é atualmente diretor associado do Gene Siskel Film Center – novamente colaborou com Ford para apresentar oito programas de desenhos animados de Chuck Jones ao longo de oito dias, começando dia 2 de março. A maioria são cópias de estúdios ou colecionadores raramente exibidas, então essa pode ser a chance única de poder assistir num cinema a boas cópias dessas alegres, por vezes hilárias, joias cinematográficas, da maneira como foram feitas para serem vistas. Apesar de Jones ser mais conhecido por criar Papa-Léguas e por ajudar a definir Pernalonga, Patolino, e outros personagens, seus desenhos com criaturas menos conhecidas (muitos dos quais estão incluídos na programação) são tão gloriosos quanto.

Em tempos recentes, a Warner Brothers passou a capitalizar sobre o trabalho criado por Jones e outros, vendendo acetatos de animação2 e outros produtos, além de licenciar o uso dos personagens para comerciais. Jones, ainda firme e forte aos 88 anos 3, faz o mesmo em www.chuckjones.com, que também possui uma filmografia completa. Os desenhos podem ser vistos na televisão, mas muito se perde assim. A arte de Jones depende de estabelecer e depois perturbar tempo e ritmo – você deve ser comovido pelo poder ilusionístico da situação dada. Quando as geringonças do Coiote desabam sobre ele, o impacto do acontecimento depende do estabelecimento de sua presença física, uma ilusão prejudicada pelo vídeo. E é possível argumentar que as linhas do vídeo alteram mais as cores sólidas e saturadas dos desenhos animados do que as texturas da face humana.

O grande tema de Jones é controle: as pelejas de seus personagens uns contra os outros, contra o ambiente ao seu redor, e contra si mesmos. Seus desenhos animados são comoventes em parte porque ele cria personalidades reais; Jones reune mais complexidade psicológica em seis minutos do que muitos diretores de hoje transmitem em duas horas de explosões. Seus personagens experienciam dor, duvidam de si mesmos e possuem sonhos. Às vezes eles enlouquecem ou são levados ao suicídio. Criando expressões faciais radicalmente diferentes em rápida sucessão, Jones não apenas mostra um personagem perdendo o controle das circunstâncias como sugere uma vida interior dividida.

Nascido em Spokane, Jones iniciou a carreira nos anos 1930, ajudando a criar acetatos de animação. Seus primeiros desenhos enquanto diretor, começando em 1938, mostravam uma influência de Disney, mas logo divergiram dessa estética; de fato, muito do que a Warner Brothers produziu parece intencionalmente oposto aos desenhos suaves, açucarados e sanitizados da Disney, nos quais a norma são personagens bonitinhos e fofos. O desenhos de Jones são cheios de quebras intensas, transições abruptas, contradições desconcertantes; sua aparência, sensação e espaço são tão irregulares e esfarrapados quanto os pelos do coiote logo depois de ter sido chamuscado por uma de suas próprias explosões. No mundo pertubado de Jones, personagens são menos passíveis de ter seus conflitos resolvidos do que terminar num “Hospital Psicopático”.

A maioria dos defensores de Jones argumentam que esses desenhos animados se adequam aos sofisticados gostos dos adultos, mas creio que algo se perde ao não levar em conta o público-alvo original: crianças. Aqueles momentos que desafiam a gravidade, quando um personagem se lança para fora de um penhasco, percebe que está no ar e se espatifa no chão, podem ser associado às tentativas de uma criança de reconciliar as fantasias de voar com a descoberta dos limites físicos. A forma com que os personagens se esforçam para dominar seus arredores, com suas táticas que frequentemente saem pela culatra, reflete os primeiros tropeços de uma criança; controle e sua perda espelham as tentativas de uma criança de afirmar sua autonomia em face a pais aparentemente onipotentes.

Assistir a uma obra-prima de Jones simultaneamente evoca a experiência infantil da risada incontrolável (dado o ritmo acelerado das piadas) e põe em xeque a solidez e estabilidade do mundo, uma vez que o chão parece literalmente se deslocar sob você. Em geral, Jones brinca com a ilusão, fazendo referências à produção cinematográfica, que podem variar do mundano em Beanstalk Bunny (1955), Patolino diz para o pé de feijão: “É melhor eu deixar de moleza e escalar esse troço senão não teremos filme algum” até o inventório virtual de técnicas de animação em Duck Amuck (1953).

Jones às vezes expressa o tema do controle na linguagem de seus desenhos animados. Em Rabbit Seasoning (1952), Pernalonga confunde as tentativas de Patolino de convencer o caçador Hortelino Troca-Letras de que na verdade é temporada de caça ao coelho, até Patolino acabar gritando “Atire em mim!”, uma exortação que Patolino mais tarde diagnostica como “problemas pronominais”. Mas o mais frequente é Jones realizar o tema do controle através de rupturas espaciais, ritmos dessincronizados ou super-sincronizados, e alterações no sistema representacional do desenho animado, dispositivos frequentemente presentes numa mesma obra, apesar de um ou outro poder ser dominante. Todos dependem de um tempismo preciso [precise timing]4 para nos surpreender: as explosões de Jones sempre parecem surgir um pouco cedo ou um pouco tarde. Na primeira queda do Coiote em Fast and Furry-ous (1949), ele cai fora do quadro enquanto olhamos o céu azul estático. Na segunda, Jones corta de maneira ainda mais perturbadora de uma tomada ao nível dos olhos do Coiote, em seus skis motorizados por um refrigerador, para uma visão de cima para baixo de um canyon espetacularmente profundo.

Fotograma de Rabbit Seasoning (1952), Patolino depois de levar um tiro de Hortelino.
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)

Mouse Wreckers (1949) é um grande exemplo de alterações no espaço. Dois camundongos procurando um novo lar decidem levar o gato residente, o qual ganhou um punhado de troféus de “Melhor Caça-Ratos”, à loucura. Depois de arrastar o gato por um cano de escoamento, a última travessura deles é pregar toda a mobília no teto enquanto o gato dorme, exceto uma lâmpada de teto, que pregam no chão. O gato acorda e, aterrorizado com esse mundo às avessas, tenta se agarrar ao tapete no teto. Primeiro, nós o vemos de cabeça para baixo, mas em seguida o enquadramento rotaciona e nós o vemos de cabeça para cima – o que torna o corte para uma tomada de cabeça para cima no quarto ao lado, onde a mobília está no teto, ainda mais desorientador. Incapaz de processar a mudança, o gato agarra a lâmpada de teto, daí olha por uma janela e vê que a paisagem está ao avesso; um corte revela que os camundongos colocaram uma foto invertida lá. Através de outra janela, a paisagem está de lado, e a visão de uma terceira faz parecer que a casa está submersa. O gato foge aterrorizado de sua casa e é visto pela última vez encolhido e de olhos esbugalhados no topo de uma árvore.

Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)

Long-Haired Hare (1949) é uma das várias excelentes animações musicais de Jones, nas quais a sincronização entre música e ação é bizarramente exagerada, ao contrário da pretensa imperceptibilidade da Disney. Pernalonga começa a cantar alegremente, acompanhando a si mesmo no banjo, “What do they do on a rainy night in Rio?”. Ele é ouvido de uma casa próxima por um cantor de ópera que ensaia, Giovanni Jones, o qual se irrita ao ver a si mesmo por acaso cantando “What do they do in Mississippi/ When skies are drippy?”. Ele sai de casa e quebra o banjo na cabeça de Pernalonga.

Pernalonga é mais tarde visto no topo da concha acústica onde Giovanni Jones está cantando. Acertando o telhado com uma marreta, Pernalonga causa reverberações que fazem Giovanni ricochetear através do palco. Na sequência final, Pernalonga aparece com uma peruca branca e vestindo um traje para concertos, sendo reconhecido pelos músicos como “Leopold”. Quebrando em dois o bastão de maestro, Pernalonga passa a controlar completamente tanto orquestra quanto cantor com suas mãos, cujas posições e movimentos se correlacionam exatamente com o tom e ritmo da música: o condutor como ditador e diretor de cinema (tal qual os camundongos em Mouse Wreckers). Pernalonga quase mata seu cantor: tirando sua mão da luva, ele a põe para o alto no ar e sai andando enquanto Giovanni muda de cores variadas ao tentar manter a nota aguda, eventualmente levando a concha acústica ao chão.

Giovanni Jones, em Long-Haired Hare (1949) sendo ricocheteado pelas vibrações causadas pelas marretadas de Pernalonga na concha acústica.

 

Pernalonga sendo reconhecido como “Leopold” pela orquestra em Long-Haired Hare (1949)
A luva de “Leopold” permanece no ar, Long-Haired Hare (1949)
Giovanni Jones chega a mudar de cor e perder as roupas tentando manter a nota aguda enquanto a concha acústica desaba. Long-Haired Hare (1949)

Os melhores desenhos animados de Jones são auto-referenciais, rompendo com seus próprios sistemas representacionais e lembrando seu espectador dos artifícios da animação novamente ao contrário de Disney. É frequente que isso ocorra em prol de um tema social, coisa que poucos críticos além de Ford já mencionaram. A velocidade impossivelmente rápida de Papa-Léguas sugere o borrão de um automóvel passando por um pedestre seu “bip” até soa como a buzina de um carro o que dá matizes ecológicos aos fracassos sísifos do Coiote. E em uma de suas séries menos conhecidas, um lobo e um cão pastor que estão para lutar até a morte batem cartão. (Os chefes da Warner Brothers eram notórios por não apreciar os esforços de seus animadores; é dito que Jack Warner pensava que a companhia produzia desenhos do Mickey Mouse.)

Duck Amuck não é apenas a obra-prima de Jones mas uma das obras-primas definitivas da arte do cinema, explorando o processo de animação com uma profundidade digna das meditações sobre a produção cinematográfica em O Homem com a Câmera (1929), de Dziga Vertov, e em Blue Moses (1963), de Stan Brakhage. No começo, Patolino aparece vestindo um elaborado figurino de filme de época com um castelo ao fundo, pronto para um duelo de espadas. Mas enquanto a câmera o segue se movimentando para a esquerda, a cor desaparece do plano de fundo, deixando apenas as linhas do desenho, depois apenas o branco. Ao ver isso, Patolino passa a ralhar com um diretor que não vemos um monólogo que constitui a maior parte da conversa. Providenciado com o plano de fundo de uma fazenda, Patolino precisa trocar de figurino, quando o plano de fundo se torna de gelo, precisa trocar novamente. Apagado completamente, ele exige ser redesenhado. Redesenhado com um violão, ele não tem som. Exigindo som, ele toca o violão que acaba soando como uma metralhadora o primeiro de vários sons “errados” tão impressionantemente contraditórios quantos os do filme de vanguarda Unsere Afrikareise (1966), de Peter Kubelka. Os primeiros dois terços de Duck Amuck possuem a aparência de uma tomada única, servindo de pano de fundo para Jones realizar tomadas longas, close-ups e linhas de enquadramento errantes. Enfim, o exasperado Patolino exige ver o diretor ponto em que a câmera se afasta de um caderno de desenhos para revelar o eterno antagonista de Patolino.

Fotograma de Duck Amuck: Patolino vestido de fazendeiro reclama da falta de consistência do diretor/animador que não para de trocar o cenário do desenho animado.

 

Fotograma de Duck Amuck: Patolino, depois de ser apagado e redesenhado, tem seu som tirado pelo diretor.

Fotograma de Duck Amuck
Fotograma de Duck Amuck

Filmes cujas narrativas são possíveis metáforas para o fazer cinematográfico, como Napoleão (1927), de Gance, e Um Corpo que Cai (1958), de Hitchcock, tratam sobre os esforços de artistas em controlar o mundo. Identificando o sadismo do cineasta em Duck Amuck, Jones explicita algo implícito em muitas outras de suas animações: que há genuíno prazer nessas fantasias infantis de dominação e submissão. Apesar de seus desenhos terem sido criticados por sua violência – que é claramente proibida para menores nos parâmetros de hoje -, essa crítica me parece absurda. Qualquer criança consegue ver Jones desmascarando ilusões e sabe que suas criaturas maleáveis estão encenando fantasias de onipotência, não realizando-as.

NOTAS:
  1. À sugestão de Lucas Almeida, segui o exemplo da tradução de Fernando Mascarello de Introdução à teoria do cinema, de Robert Stam. Como diz Mascarello numa nota do capítulo “Culto ao autor”, do livro de Stam: “Adotamos ‘autorismo’, um neologismo de uso infrequente em português, e não ‘política dos autores’ ou ‘teoria do autor’, porque o sentido com que Robert Stam [como Fred Camper] utiliza o termo auteurism no original em inglês abarca tanto essas duas noções (a primeira crítica, a segunda teórica […]), como o aspecto cinefílico do culto ao autor nos anos 50 e 60 [e 70].”) (Campinas, SP: Papirus, 2003) ^
  2. Cell animation ou animação sobre acetatos: também conhecida como animação manual. Processo essencial para animação do período clássico – localizável desde a segunda metade da década de 1930 e ao longo da década de 1940 -, desenvolvido por Earl Hurd e John Bray em 1915. Define-se através do suporte utilizado: acetatos, celuloides ou cells, lâminas de plástico transparente em cima dos quais se desenha ou se situam as figuras que se deseja animar. Uma cena pode conter várias camadas de acetatos superpostas. […] Seu êxito reside no fato de permitir que uma parte de cada composição seja repetida quadro a quadro, com o que se economiza tempo e mão de obra, encurtando o período de produção, ou seja, possibilita não ter que desenhar toda a cena, incluindo os elementos imóveis (como fundos ou personagens estáticos) cada vez que se cria um novo quadro.” (REYES, Dean Luis. A forma realizada: o cinema de animação (tradutor Sávio Leite), BH: Pimenta Filmes e Edições, 2020) ^
  3. O texto de Camper é de 2001, um ano antes do falecimento de Jones, aos 89 anos.^
  4. Timing“, segundo Dean Luis Reyes (traduzido por Sávio Leite), “Refere-se à velocidade com que se executa uma ação na animação e a particular economia de ritmo e de pausa na execução do movimento. Trata-se de um dos aspectos decisivos do caráter final da peça de animação, pois supõe não somente a administração da dinâmica física, da percepção da massa, o peso e a escultura de um objeto, mas também a dosagem da manifestação do universo afetivo e emocional do personagem animado. Isso define, por exemplo, a quantidade de quadros necessários entre ações” (REYES, 2020). Dada a dificuldade de traduzir “timing“, cogitei criar um neologismo, como “momentagem”, mas acabei optando por “tempismo”, termo italiano que se aproxima do original, ao mesmo tempo que soa familiar a ouvidos acostumados ao português, na prática funcionando como um neologismo, mesmo.^

Cascando, de Samuel Beckett (tr. Alan Cardoso da Silva, comentário de S. Lawlor e J. Pilling)

 

Cascando

1

por que não só o desespero de

ocasião de

palavricídio

não é melhor abortar do que ser infértil?

as horas depois que você partiu são tão inertes

sempre vão se arrastando cedo demais

as garras arranham cegas a cama do desejo

trazendo à tona os ossos os outros amores

órbitas outrora cheias com olhos como os seus

sempre é melhor cedo demais do que nunca

o turvo desejo salpicando as suas faces

digo outra vez nove dias nunca içaram os amados

nem nove meses

nem nove vidas

2

digo outra vez

se você não me ensinar eu não vou aprender

digo outra vez há um último

até o último dos momentos

últimos momentos para implorar

últimos momentos para amar

para saber não saber fingir

até um último dos últimos momentos de dizer

se você não me amar eu não serei amado

se eu não amar você eu não amarei

o coágulo de palavras talha no peito outra vez

amor amor amor batidas do velho percutor

lascando o imutável

jugo de palavras

uma vez mais o medo

de não amar

de amar e não você

de ser amado e não por você

de saber não saber fingir

fingir

eu e todos os outros que vão amar você

se amarem você

3

a não ser que amem você


A “ocasião” que sugere o poema foi o encontro de Samuel Beckett, e a crença de ter se apaixonado, com uma amiga estadunidense de Mary Manning Howe, Betty Stockton Farley, que não era recíproca aos sentimentos de Beckett, logo esse “palavricídio” parece ter sucedido os sentimentos. […]

O termo “cascando” é (raramente) usado na música para distinguir um diminuendo no volume e/ou no tempo. Samuel Beckett usa a palavra “cascando” com referência a Esperando Godot em uma carta a Peter Hall de 14/12/55, e entitula sua peça de rádio de 1961 (originalmente escrita em francês), que não é tão obviamente sobre amor e muito mais preocupada com a escrita, Cascando (também o título em inglês), com música de Marcel Mihailovici. […]

N.T.: Traduzido a partir da edição crítica The Collected Poems of Samuel Beckett (2012), da qual também retirei e traduzi trechos dos comentários dos editores, precisamente das páginas 352-353.