O prazer como experienciamos se alimenta sempre de uma tensão entre presença e ausência do que é desejado, em uma dinâmica de complementaridade dessas sensações. Conseguir ter realizado o que desejamos nem sempre vai nos dar o prazer esperado porque a germinação do gozo está atrelada a essa agonia que sua ausência anterior nos concede como forma de sentir pesar o vazio da ausência – sentimento siamês ao desejo de presença – de modo que sem uma consolidação equilibrada desse sentimento de ausência o prazer da presença se atrofia. Essa premissa da vida já foi observada muitas vezes em diferentes culturas, se insere na filosofia Ocidental por Aristóteles formulando uma tese ainda mais essencial com a ideia de ‘potência’ (no grego: dynamis) como bem indica Agamben em seu texto “O que é o ato de criação?”:
Quem possui – ou tem o hábito de – uma potência pode coloca-la em ato ou não. A potência – esta é a tese genial de Aristóteles, mesmo que aparentemente óbvia – é definida essencialmente pela possibilidade do seu não exercício. O arquiteto é potente, porquanto pode não construir; a potência é uma suspensão do ato. (…) É assim que, na Metafísica, Aristóteles responde à tese dos megáricos, que afirmavam – aliás, não sem boas razões – que a potência só existe no ato. (Agamben, 2018, p. 63)
Agamben tece no breve ensaio de que modo a potência, que contém em si uma não-potência (potência-de-não), ocasiona o criar artístico. O que é interessante aqui é transferir essa lógica ao prazer, entendendo o prazer enquanto potência que tensiona o desejo e a realização do desejo, com a diferença clara de que o conceito aristotélico se reforça nas faculdades individuais do ser, enquanto o prazer, nesse caso, difundido enquanto uma realização de um desejo de algo que pode muitas vezes ser externo ao controle individual, pode estar condicionado a uma confluência de fatores do mundo. Peguemos alguns exemplos comuns de aplicação dessas forças: geralmente quando um indivíduo é rico, apesar do conforto que a posição dele lhe traz, ele geralmente precisa buscar prazer em coisas específicas que não são tão comuns a sua própria realidade. Apesar de ser fácil para esse indivíduo comprar aquele objeto óbvio de interesse geral, o desejo é afogado pela possibilidade de realização do desejo, que é praticamente automática, sem agonia. Há, portanto, um desequilíbrio entre eles, porque é tão fácil para ele conseguir aquilo que deseja que o prazer não se forma. Ele precisa ir atrás de algo que alimente seu desejo de modo que não seja tão fácil realizá-lo sempre.
De mesmo modo, podemos recorrer aos clichês do romantismo poético do século XIX, em que se encarna com veemência a figura do homem apaixonado e melancólico que se afunda no platonismo de uma paixão impossível (desejaria ele justamente por ser impossível?), para ver o desequilíbrio contrário. Nesse caso o desejo é muito maior que sua possibilidade de realização, muitas vezes nula. O desejo inclusive se alimenta dessa impossibilidade – quanto mais distante de realizá-lo mais se perde na paixão esse tipo de eu-lírico. Há exemplos reais, de quem, perdidamente apaixonado, ao conseguir de maneira surpreendente consolidar uma relação com o ser amado, logo se desiludiu com a experiência por conta do confronto entre seus sonhos, em que idealizava o outro em sua mente, com a realização daquela relação com o outro agora presente e fora do seu controle mental. Por essas razões a literatura romântica se afundou cada vez mais na agonia da distância, porque na busca das próprias idealizações sobre o mundo ou mulheres, somente a imagem pura e distante sobra como autoilusão de que aquela idealidade é possível.
A frustração teria por figura a Presença (vejo o outro todo dia, mas isso não me satisfaz: o objeto está lá, na realidade, mas continua a fazer-me falta imaginariamente). Quando à castração, teria por figura a Intermitência (aceito deixar um pouco o outro “sem chorar”, assumo o luto da relação, sei esquecer). A Ausência é a figura da privação; desejo e preciso ao mesmo tempo. O desejo se abate sobre a carência: aí está o fato obsedante do sentimento amoroso.
RUSBROCK: (“O desejo aí está, ardente, eterno: mas Deus está acima dele, e os braços erguidos do Desejo não atingem nunca a plenitude adorada.” O discurso da Ausência é um texto de dois ideogramas: há os braços erguidos do Desejo, e há os braços estendidos da Carência. Oscilo, vacilo entre a imagem pálida dos braços erguidos e a imagem acolhedora e infantil dos braços estendidos.) (Barthes, 2018, pp. 62-63)
O artista romântico, o homem romântico, precisa iludir-se e acaba por tornar seu prazer, contraditoriamente, a própria ilusão carregada de dor, eliminando totalmente a possibilidade de um prazer real. E quando adentra numa relação com a mulher desejada se torna um neurótico, por imaginar excessivamente o desfalecimento daquela relação vindo de fatores externos quando ele mesmo o causa justamente por sua idealidade e possessão, como Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Swann no segundo livro de Em Busca do Tempo Perdido, obra monumental de Marcel Proust.
Os reflexos mais modernos dessa dinâmica são a criação dos ídolos, artistas consolidados pela difusão do seu trabalho pela indústria e pela aclamação do seu talento por parte do grande público, que têm sua vida particular tornada produto pela imprensa que vende a criação de uma imagem pessoal que deve corresponder às idealizações fomentadas no público. A imagem eternizada de Marylin Monroe é acompanhada de um sorriso mesmo que seja de conhecimento geral que sua vida tenha tido momentos muito difíceis, e que a própria necessidade criada de alimentar essa imagem corroborasse para tal, assim como a vida de inúmeras outras estrelas. No século XXI isso se torna ainda mais complicado com a tarefa da exposição saindo do monopólio da imprensa e sendo função atribuída aos próprios famosos que, através de seus smartphones, literalmente vendem a exposição de sua vida em redes sociais pelo dinheiro de patrocinadores (aqueles que não são famosos também reproduzem essa lógica por valores diferentes do monetário). Quando tal atriz ou ator famoso não corresponde aos desejos do público sobre sua vida pessoal, as críticas acontecem em tom de cobrança e desapontamento.
Weltschmerz é o termo alemão criado pelo escritor Jean Paul Richter para designar o sentimento experimentado por alguém que entende que a realidade física nunca poderá satisfazer as exigências da mente . Esse conceito aparentemente universal está condicionado por um contexto filosófico do Ocidente europeu que assume que o sujeito sempre terá naturalmente exigências a serem satisfeitas, podendo ser uma ideia obsoleta por perspectivas estranhas a essa condição. Faz parte do caminho taoísta justamente renunciar a essas exigências impossibilitadas pelo mundo, isso não significa somente abnegar ao desejo por sua não concretização, mas automaticamente igualar o desejoso e o realizado em tudo aquilo que faz parte do “fluxo natural” da própria vida, chegando ao ponto máximo enquanto unidade indistinta do Mundo, o Caminho Constante (Dào):
O que gera e cria,
Gera sem se apossar,
Age sem querer para si,
Cultiva sem dominar.
Chama-se Misteriosa Virtude.
(Tse, 2011, p. 70)
Há então, fora dos domínios do nosso pensamento cultural tendenciosamente destrutivo, possibilidades de prazer, por assim dizer, aquém do desejo. Se isso não é totalmente possível na nossa sociedade, existem exemplos de manifestação de desejo passivo, que buscam prazer fora do seu realizar, pela sua mera existência e pelo individuo se ver na possibilidade de contemplar aquele desejo. É um prazer raro que se encerra no observar e não gera (sempre) frustração por isso. Isso está manifestado por Jorge Ben na música “Oba, Lá Vem Ela”, cuja letra simples acaba seguindo uma linha de pensamento muito diferente das centenas de milhares de canções de amor e desejo produzidas ao longo do último século, inclusive pelo próprio Ben. “Oba, Lá Vem Ela” é um celebrar da observação, da possibilidade de estar na presença de alguém ou algo que se deseja e isso já ser suficientemente bom para ativar uma sensação de vida vivida, de que naquele momento o Eu realiza-se no mundo por vislumbrar caminhos belos e não por precisar tentar trilhá-los.
Oba lá vem ela, estou de olho nela
Oba lá vem ela, estou de olho nela
Não me importo que ela não me olhe
Não diga nada e nem saiba que eu existo
Quem eu sou pois eu sei muito bem quem é ela
E fico contente só em ver ela passar
(…)
Não me importo que falem que pensem
Pois sem saber ela é minha alegria
Ela tem um perfume de uma flor que eu não sei o nome
Mas ela deve ter um nome bonito igual a ela
Oba lá vem ela estou de olho nela
Oba lá vem ela estou de olho nela
(Ben, 1970, grifos meus.)
Diferentemente da linha do romantismo, a economia das forças do desejo é saudável nesse caso porque, mesmo à distância, o prazer se fixa no olhar não possessivo e não no tato ou na visão ciosa com o qual normalmente se associa pela materialidade do sensível. A lógica do prazer na própria arte em sua forma de exibição é a mesma, não se pode possuir uma peça ou um espetáculo de dança, um show ou uma música, e, embora se tente cada vez mais durante esses eventos captar essa materialidade com filmagens oficiais ou gravações de celulares, aquele registro é somente um simulacro, uma cópia imperfeita da experiência original, que só é capaz de apresentar vestígios do corpo da obra, que pode sim dar deleite mas que não tem a mesma dimensão do espetáculo a qual se refere, até mesmo num sentido espacial – o filme é 2D (no máximo uma ilusão de 3D). Perdemos também o cheiro, a qualidade da imagem e outras qualidades que são inerentes à participação do observador no próprio ambiente da experiência, perdemos a ambiência. Um quadro se pode possuir materialmente e assim controlar o acesso ao objeto, porém também corre risco de perder força a dimensão empirista de ritual se banalizado o encontro, como um quadro que se vê todo dia na sala de casa cotidianamente, o espectador gradativamente pode abrandar o páthos pela ausência de cerimônia do encontro (o que aqui não quer dizer formalidade ou qualquer código social burguês de eventos artísticos).
Quando se trata da fruição tátil, encontramos o mesmo jogo de vontade alimentada e consumação. No sexo, o prazer não nasce de uma ininterrupta satisfação do desejo, mas de um jogo, por sua essência um jogo provocativo, em que se alimenta e cessa a satisfação do desejo a todo momento – micro-intervalos de prazer – para que ele aumente e assim o prazer seja maior quando gerado. O prazer é dado na medida em que se pode aumentar o desejo sobre ele e para isso ele precisa ser negado antes de ser concedido em maior potência. Repare isso no poema “Pote” da escritora fluminense Simone Brantes (grifos meus):
Você acha que sexo é isso:
três
ou quatro
posições
e executá-las?
Você quer
muito
muito mesmo
que eu goze?
Então vamos por partes –
não se vai com tanta sede ao pote –
Primeiro: fabricar a sede
Segundo: fabricar o pote
Terceiro: deixar que a água jorre
O corpo sente a potência no toque porque antes sente sua ausência e depois dele sente tem gravada sua memória quando este se dissipa, o desejo por ele aumenta assim, se ele é bom, então se o toque ocorre de novo ele pode gerar mais prazer ainda. O estímulo é, portanto, um fluxo de movimento alternado, uma dinâmica de dispersão do prazer pelo corpo ou por uma área específica dele que funciona por essa premissa. Isso vale não somente para o sexo em si, mas para uma massagem ou um cafuné, qualquer experiencia física afetiva. Além disso, em todos esses atos, quando se assume a posição de pessoa que toca, se indica de algum modo o desejo de ser tocado.
Assim, o tocar é, a princípio e para sempre, esse embalo, essa ondulação e esse atrito que a sucção repete, relançando e retomando o desejo de se sentir tocado e tocante, o desejo de se experimentar em contato com o fora. E até mesmo mais do que “em contato”, mas ele próprio o contato. Ou seja, também aberto ao exterior, aberto por todos os seus orifícios, minhas orelhas, meus olhos, minha boca, minhas narinas – e, claro, tanto esses canais de ingestão e digestão, quanto os de meus humores, de meus suores e de meus líquidos sexuais. Mas a pele, no entanto, esforça-se em estender em torno dessas aberturas, dessas entradas-e-saídas, um revestimento que ao mesmo tempo que os situa e os determina, desenvolve para si a capacidade de ser afetada e de desejar sê-lo. (Nancy, 2014, p. 20).
No contexto atual, da pandemia que começou em 2020 e se arrasta pelo ano de 2021, muitas pessoas acabaram tendo cortadas uma parte considerável das possibilidades de afeto vigentes em sua vida. Isso tudo aflorou uma carência desses afetos, uma sensibilidade imaginativa que substitui essa falta, uma perda de critérios emocionais para com as relações e também acentuou os contatos com (e não pela) a internet, como uma medida paliativa e sabidamente frustrante de contornar isso. O modo como as redes sociais são articuladas é feito para prender ali os usuários. O entretenimento nas redes é realizado em velocidades espantosas e se apresenta nas telas de maneira ininterrupta, fazendo com que, por mais que quem acessa essas redes muitas vezes se sinta preso a elas e continue ali, não se sinta saciado pelo conteúdo que consome, porque esse, para além de projetar um mundo idealizado (algo que provavelmente é explicado mais a fundo em algum texto de Byung-Chul Han) não dá margem para respiro. Não permite o silêncio. A mente corre o risco de entrar em uma rotina de insaciabilidade que se estende para além das redes, mas para a vida de um modo geral, a cabeça assume um modus operandi que lida com o mundo através dos pressupostos dessa virtualidade ensurdecedora e não o contrário. A relação com o prazer se dá de uma forma cada vez mais pornográfica a essa altura do capitalismo tardio, a necessidade de alimenta-lo só aumenta de maneira desesperadora na medida em que ele é frustrado por uma hiperexposição ao que se deseja. Talvez nem a isso, porque essa saturação dos discursos, textos e imagens, das tendências e dos sentidos em geral pode até mesmo nublar de si mesmo aquilo que se deseja. O impulso mais primordial, que é buscar algo fora de si, se torna algo já não tão mais claro, se esvazia a ânsia e o individuo se torna refratário de si.
É claro que esse processo não é totalizante. Muitas pessoas estão chegando a um nível de desgaste com as redes sociais e não só isso: com as relações do mundo pautadas pelas dinâmicas dessa virtualidade, que acabam se afastando ou buscando outras formas de lidar com isso de um jeito mais pacato, o que a princípio parece ser também uma renúncia a um aspecto da vida pública (e nisso política), que se mostra cada vez mais incontornável, mas qualquer escolha que se faça exige abrir mão de algo. Nesse caso, se afastando desse mundo, o ganho que se pretende é uma outra temporalidade, o que aqui não significa somente um descanso no meio da era da informação, mas uma mudança quase ontológica de como estar no mundo, abrindo margem para que seus próprios desejos caminhem, não necessariamente para a uma angustiante realização anulativa em si mesma, mas para algo mais primordial: a possibilidade de se desenvolverem enquanto desejo antes de afluir (ou não) em um prazer. Para isso é preciso portanto, sem nunca negar como se sente, mesmo entendendo a influência das dinâmicas do mundo da qual fazemos parte nesse sentir, repensar o nosso desejo cotidiano em relação ao que chamamos de “conquistas”, aos outros que amamos e nos apaixonamos, ao que se quer acrescentar esteticamente e em amadurecimento para si mesmo, estando atentos aos princípios de que fomentam o modo como isso se desenvolve, ou seja, a tangibilidade dos nossos prazeres, verter nossas práticas cotidianas em espaços em que o silêncio e a absorção dos fatos da vida volte a se tornar possível.
BIBLIOGRAFIA
Alguma coisa do Byung-Chul Han que eu ainda não li, Byung-Chul Han, 20XX.
A Revolução Sexual, Wilhelm Reich, 1936.
Arquivida, Jean-Luc Nancy, 2014.
Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes, 1977.
“Oba, lá vem ela”, Jorge Ben, 1970.
O Fogo e o Relato – Ensaios sobre criação, escrita, arte e livros, Giorgio Agamben, 2014.
Quase todas as noites, Simone Brantes, 2016.
Tao Te Ching, Lao Zi entre 250 e 350 A. E. C.
- Nota do editor: acho que é o mesmo cara que escreveu o texto sobre o Maradona, mas pode ser só impressão minha.^