Dois poemas de Adrienne Rich traduzidos

 

Venho humildemente compartilhar minhas traduções de dois poemas da grande Adrienne Rich (1929-2012), publicados pela primeira vez em seu livro Snapshots of a Daughter-in-Law, de 1963.  Humildemente não só por Rich ser uma das vozes mais importantes da poesia estadunidense, mas por se tratar de uma primeira tentativa de abordar e verter (como também sorver) a poesia da autora. Quem me sugeriu traduzir esses poemas foi a professora Olga Kempinska, por volta de 2020 ou 2021. Foi o que fiz, com algumas sugestões dela e de  Alan Cardoso da Silva, a fim de estudar a poesia de Rich e como ela trabalha a alteridade em seus poemas. Como sempre, traduzir aguça nossa leitura e apreciação das qualidades do texto fonte. Daí, a humildade, tão cristã, ao traduzir uma poeta judia: me aproximei dos dois poemas e sei o quão bons eles são.

Enfim, de lá para cá, resolvi remexer um pouco nas duas traduções, revê-las com novos olhos, mudar o que fosse. Talvez eu tenha pecado, especialmente na tradução de “Prospective immigrants please note”, ao me ater, na medida do possível, à métrica dos versos, sacrificando o tom por vezes prosaico, apesar de rígido, do poema. Ainda assim, replicar as qualidades sintéticas do inglês, assim como a brevidade dos versos, é um quebra-cabeça que sempre me atrai. Daí, na potencial traição, me mantive fiel a meu eu de alguns anos e ao que o fascinou na poesia de Rich, sempre atenta às alteridades, como também a visão de si enquanto outro, estrangeiro.

Quanto a “The Roofwalker”, literalmente “o caminhante/andarilho de telhados”, vale notar que o termo parece ter sido inventado por Rich. Seria, portanto, justo reinventar o termo em português, algo como “vaga-telhas”, “telherrante” ou “telhandarilho”. Contudo, o trocadilho me parece soar mais marcado em português do que a invenção de Rich em inglês, idioma que aceita mais facilmente a  composição de palavras novas por meio da justaposição de termos. Cheguei a considerar “flâneur de telhas”, realçando, assim, as possíveis associações entre o ofício dos poetas e o dos construtores que andam sobre telhados. Por fim, cogitei não traduzir como um substantivo, mas como verbo que descreva a ação dos gigantes no verso “Giants, the roofwalkers”: “Gigantes, cruzando telhas”. “Cruzar” foi escolhido por remeter à ideia de “cruzar a rua”, ao mesmo tempo ainda pode suscitar a imagem de trabalhores telhando uma casa. Sinto, contudo, que perdi um tom quase fantástico do poema, no qual “roofwalkers” parece designar um tipo de criatura ou uma espécie de classe.

Como com qualquer tradução, há outras tantas questões e decisões que podem ser debatidas ad infinitum. É bom lembrar que estas não são necessariamente traduções definitivas, mas abordagens de um primeiro encontro com o outro, a poeta, seu(s) poema(s):

 

The Roofwalker

—for Denise Levertov

Over the half-finished houses
night comes. The builders
stand on the roof. It is
quiet after the hammers,
the pulleys hang slack.
Giants, the roofwalkers,
on a listing deck, the wave
of darkness about to break
on their heads. The sky
is a torn sail where figures
pass magnified, shadows
on a burning deck.

I feel like them up there:
exposed, larger than life,
and due to break my neck.
Was it worth while to lay—
with infinite exertion—
a roof I can’t live under?
—All those blueprints,
closings of gaps,
measurings, calculations?
A life I didn’t choose
chose me: even
my tools are the wrong ones
for what I have to do.
I’m naked, ignorant,
a naked man fleeing
across the roofs
who could with a shade of difference
be sitting in the lamplight
against the cream wallpaper
reading—not with indifference—
about a naked man
fleeing across the roofs.

 

Pelos telhados

—para Denise Levertov

Sobre as casas mal acabadas
anoitece. Construtores
de pé no telhado. Está
quieto sem os martelos,
as roldanas pendidas.
Gigantes, cruzando telhas,
num convés oblíquo, a onda
de trevas prestes a quebrar
sobre eles. O céu
como vela rota onde vultos
vão ampliados, sombras
num convés em chamas.

Me sinto como eles:
exposto, descomunal,
a quebrar o pescoço.
Valeu erguer um teto—
com esforço infinito—
onde não posso viver?
—Todas as plantas,
buracos tapados,
medições, cálculos?
Uma vida que eu não quis
me quis: nem
minhas ferramentas
servem ao meu propósito.
Estou nu, ignorante,
um homem nu fugindo
pelos telhados
que podia em sombra diferente
estar à luz do abajur
contra a parede creme
lendo—não indiferente—
sobre um homem nu
fugindo pelos telhados.

(tradução: Pedro Ávila)

 

***

 

“Prospective Immigrants Please Note”

Either you will
go through this door
or you will not go through.

If you go through
there is always the risk
of remembering your name.

Things look at you doubly
and you must look back
and let them happen.

If you do not go through
it is possible
to live worthily

to maintain your attitudes
to hold your position
to die bravely

but much will blind you,
much will evade you,
at what cost who knows?

The door itself makes no promises.
It is only a door.

 

“Potenciais imigrantes, atenção”

Você pode
atravessar
ou não esta porta.

Se atravessar
existe sempre o risco
de recordar o seu nome.

Coisas te olham duplas,
você deve olhar
para trás, ceder.

Se não atravessar
é possível ter
uma vida digna

preservar suas posturas
manter sua posição
morrer valente

mas muito vai te
cegar e evadir,
quem sabe a que custo?

A porta em si nada promete.
é somente uma porta.

(tradução: Pedro Ávila)

NAVIO NEGREIRO, de Amiri Baraka (tr. Alan Cardoso da Silva)

 

NAVIO NEGREIRO

um espetáculo histórico


ELENCO

PARTES FALANTES

ESCRAVOS AFRICANOS – VOZES DE ESCRAVOS AFRICANOS

1º Homem (o que reza – esposo de Dademi)

2º Homem (o que xinga)

3º Homem (o que luta)

1ª Mulher (a que reza)

2ª Mulher (a que grita – atacada)

3ª Mulher (grávida)

Dançarinos

Músicos

Crianças

Vozes e corpos no navio negreiro

o escravo Velho Tom

novo Tom (Pastor)

HOMENS BRANCOS – VOZES DE HOMENS BRANCOS

Capitão

Marinheiro

Dono da fazenda – “Eterno Opressor”

ADEREÇOS

Efeitos olfativos: incenso…cheiro de terra/de sujeira/de corpos

Correntes pesadas

Tambores (Tambores bata africanos, e atabaque e bateria)

Chocalhos e tamborins

Música de banjo para atmosfera de fazenda

Sons de navio

Sinetas de navio

Oscilação e sons de água do mar

Armas e cartuchos

Chicotes/sons de chicote

Todo o teatro escurecido. Preto. Por muito tempo. Só preto. Um som ocasional, como navio rangendo, chiando, balançando. Cheiros do mar. Na escuridão. Deixar as pessoas no escuro, e gradualmente os odores do mar, e os sons do mar, e os sons do navio, da tripulação. Queimar incenso, mas fazer subir um cheiro notável, quase sufocante. Mijo. Merda. Morte. Processos da vida que acontecem de qualquer jeito. Comer. Esses cheiros e gemidos, os golpes e as lacerações de chicote, numa total sensosfera, alcançada de algum jeito.

Tambores africanos como os do culto de Orixá. Obatala. Chocalhos Mbwanga dos sacerdores. BamBamBamBamBum BumBum BamBam.

Balançar do navio negreiro, na escuridão, sem som. Mas com cheiros. Então um barulho. Agora, devagar, para fora da escuridão, com cheiros e tambores em staccato, os gritos medonhos. Todas as mulheres juntas, gritam. AAAAAIIIIEEEEEEEEEEEE. Tambores voltam, oscilando, oscilando; trevas pretas do navio negreiro. Cheiros. Tambores bem alto. Param. Grito. AAAAAIIIIEEEEEEEEEEE. Tambores. Trevas pretas com cheiros.

Correntes, o chicote, e pessoas gemendo. Ouve-se o som que sai dos atores. Sons de serem jogados para dentro do porão. AAAAIIIEEEEEEEEE. De gente, lançada nas trevas, amedrontadas, com raiva, espremidas juntas num terror compartilhado. As sinetas do navio. Vozes de Homens Brancos, do topo, prontos para zarpar.

VOZ 1: Vamos embora! Mas que carga boa de ouro negro, vamos! Vamos para o Oeste! Para o Oeste. (Risada longa) Ouro negro no Oeste. Temos uma bela carga.

VOZ 2: Sim, sim, Capitão. Seguimos nosso rumo. América! (Risos)

VOZ 1: Sim, ricos, seremos ricos! Seguimos nosso rumo. América! (Risos)

(Há apenas uma luz baça no topo do palco, para indicar onde as vozes estão…)

(Tambores africanos. Com o som de rapidez de dança, mas correndo em direção ao pesar que as trevas impõem. Os tambores desaceleram. O som vence a treva. “Onde estamos, Deus?”. Os murmúrios de resmungo ressoam abaixo. O zumbido de terror. As vozes começam a batucar contra as trevas.)

MULHER 1: Ooooooooooooooo, Obatalá!

MULHER 2: Xangô!

MULHER 1: Ooooooooooooooo, Obatalá…

(Choro de crianças no porão, e as mulheres tentando confortá-las. Tentando manter suas sanidades também)

MULHER 3: Moshake, chile, calma, foco. Moshake chile. Ah calma, Orixás, nos salvem!

MULHER 2: AAAIIIEEEEEEE

HOMEM 1: Quieta, mulher! Quieta! Guarda tua força pra tua cria.

MULHER 2: AAAIIIIEEEEEEE

HOMEM 1: Quieta, mulher estúpida! Calada!

MULHER 3: Moshake, amor, chile, calma, calma, isso vai te, ooooooooo

HOMEM 1: Xangô, Obatalá, façam sua luz, forjem o espírito brilhante com caminhos para o seu povo. Forjem, forjem, forjem.

(Tambores soam, mas eles são batidas nas paredes e no chão. Correntes chacoalham. Arrastar de correntes.)

(Temos a sensação de muitas pessoas amontoadas, homens, mulheres, crianças, sofrendo nas trevas. As correntes. Os chicotes, aumentar correntes e chicotes. Serem arrastados juntos. A dor. O terror. As mulheres começam a gemer e entoar canções, “Canção africana da tristeza”, com o roçar do chão e correntes como acompanhamento)

HOMEM 2: Fukwididila! Fukwididila! Fukwididila! Fodam-se, Orixás! Deus! Onde você está? Onde você está, Deus Preto? Me ajude. Eu ser um guerreiro forte, não mulher. E eu resisto a estas correntes! Mas você devem me ajudar, Orixás. Obatalá!

HOMEM 3: Quieto, imbecil, você assusta as mulheres!

(As mulheres continuam cantando, gemendo. Crianças choram agora. Mães tentam confortá-las. Sensação de pessoas se movendo, tropeçando umas sobre as outras. Gritando enquanto tentam achar um “lugar” no fundo do navio, e então o longo fluxo de vontades diferentes, articuladas como gritos, grunhidos, choros, canções et cetera)

HOMEM 3: Puxe-as, puxe, quebre-as…puxe

MULHER 1: Ah, Obatalá!

MULHER 3: Oh, chile…minha chile, por favor, escape…você destrói…eu

HOMEM 3: Quebre-as…quebre

TODOS: Uhh, Uhhhh, Uhhh, Uhhh, OOOOOOOOOOOOOOOOOOO.

MULHERES: AAAAAIIIIIIIEEEEEEEE.

TODOS: Uhhh, Uhhhh, Uhhh, Uhhh, OOOOOOOOOOOOOOOOOOO.

MULHERES: AAAAAIIIIIIIEEEEEEEE.

(Tambores baixos, como um tamborilar, tornam-se batidas no chão, nas paredes, chacoalhar, e arrastar de correntes, sons de percussão que as pessoas fazem no porão de um navio. Os gemidos e a agonia de estarem amontoados. Crianças chorando incessantemente. As mães tentando confortá-las. Mais de uma criança. Meninas com medo de serem violadas. Homens tentando se libertar, ou se tornando crianças amedrontadas. Famílias separadas pela primeira vez)

MULHER 2: Ifanami, Ifanami…cadê você?? Cadê você? Ifanami.

(Chora)

Por favor, ah, Deus!

HOMEM 1: Obata…

(Tambores suaves…começam a cantarolar…hummmmmmmmmmm, hummmmmmmmmm, como mulheres pretas velhas cantarolando por três séculos na miséria vagarosa da escravidão…hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm, hummmmmmmmmmmmmmm)

(As luzes lampejam nos homens brancos em roupas de marinheiros curtindo seus vícios…vozes baixas…hummmmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmm. As luzes para iluminar as pessoas brancas são repentinas, muito brilhantes e ofuscantes. Os homens brancos começam a rir e apontar, como se apontassem para a sujeira e para a miséria, e para a degradação das pessoas pretas. Eles riem. HAAAAAAAAHAAAAAHAAAHAAHAAAHAAHAAHAA. Quando são mostrados de novo eles estão rolando de felicidade. Apontando, dançando, pulando para cima e para baixo, HAHAHA hahaha Haaa…)

(O riso é abafado pelos tambores. E então a canção-gemido das mulheres…depois silêncio. Voltam os tambores, mais suaves, então o cantarolar, sem parar, numa enlouquecedora, crescente paciência-morte, rompida pelos gritos, e os bebês e os peidos, e os bebês chorando por luz, e jovens esposas chorando por homens. Gente velha clamando a Deus. Guerreiros clamando liberdade. Alguns praguejando contra os homens brancos.

HOMEM 3: Demônios! Demônios! Demônios! Monstros brancas! Filhos da puta! Monstros!

(Eles batem contra as paredes, e tentam romper as correntes presas nas paredes)

Brancos filhos da puta.

MULHER 3: Aiiiiieeeeeeeeeeeee.

HOMEM 1: Deus, ela se matou e matou a criança! Deus! Deus!

(Gemidos. Gemidos. Tambores leves, e o constante, quase enlouquecedor cantarolar…hummmmmmmmmmmmm, hummmmmmmmmmmmmmmm…como velhas pretas cantarolando para sempre numa paciência mortífera…hummmmmmmmmm hummmmmm hummmmmm)

MULHER 1: Ela se enforcou com a corrente. Sufocou a criança. Ah, Xangô! Nos ajude, Senhor. Ó, por favor.

MULHER 2: Por que nos deixou, Senhor?

HOMEM 1: Dademi, Dademi…ela morta, ela morta…Dademi…

(Ouve-se um homem destroçado com gemidos de morte, gritos)

Dademi, Dademi!

(Hummmmmmmmmmmmmmmmmm, Huuuuuuuuuuuuuuuuuuuum, Hummmmmmmmm, Hummmmmmmmmmmmmmmmmmm. Tambores baixos, e gemidos…as correntes, e pessoas pretas sendo empurradas umas contra as outras, lutando por ar e espaço para sobreviver. Os homens pretos choram por suas mulheres. As mulheres pretas choram por seus homens juntas nas trevas, algumas chamam por Deus)

MULHER 2: Por favor, não me toque…Por favor…

(Agitada)

Ifanami, cadê você?

(Grita contra alguém que a toca na escuridão, apalpando-a, tentando arrastá-la para as trevas, empurrando-a contra o chão)

Akiyele…por favor…por favor…não, não me toque…por favor, Ifanami, cadê você? Por favor, me ajude…De…

HOMEM 1: O que você está fazendo? Sai de perto desta mulher. Ela não é sua mulher. Você vira um monstro também.

(Briga de dois homens nas trevas tentando matar um ao outro. Luzes mostram homens brancos sorrindo silenciosamente, os chicotes pendendo, em pantomima, ainda apontando)

HOMEM 3: Demônios. Demônios. Seus merdas sem alma.

(Todos os sons grotescos juntos.)

(O cantarolar recomeça. Sinetas do navio. Silêncio, e gemidos, e cantarolar, e movimentação de pessoas na escuridão. Indo para frente e para trás. Tentando sobreviver, e agora, sobre isso tudo, o som constante da risada dos marinheiros)

MARINHEIROS: AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAAAAAHHAHHHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH

HOMEM 3: Eu mato vocês, demônios. Eu quebro essas correntes.

(Som de homens sofrendo com correntes pesadas)

Eu rasgo a sua cara. Esmago seu pescoço. Demônio. Demônios.

MULHER 1: Ah, ah, Deus, ela morta…e a criança.

(SILÊNCIO/Som do mar…se dissipa)

TODOS: (Cantatolando) HMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMMMMMM HMMMMMMMMMMMMMMMMM

(As luzes se acendem repentinamente, mostram um “Negro” se arrastando. Luzes apagadas…tambores de guerreiros africanos antigos tocam…guerreiros heróis. As luzes piscam e acendem, mostram o homem preto se arrastando, chapéu na mão, coçando a cabeça. Luzes apagadas. Tambores de novo. O homem dançando no escuro, com sinos, como se estivesse livre, dançando velhas selvagens danças. Dançando nas trevas…dança iorubá. Luzes piscam brevemente, neste exato momento a dança para. Apagam. Acendem, para mostrar o Escravo, bunda esfarrapenta, chapéu esfarrapado na mão, se arrastando em direção ao público, se arrastando, coçando a cabeça e a bunda. Balançando a cabeça para cima e para baixo, concordando, concordando e concordando, enquanto os chicotes estalam. Luzes apagadas, piscam, e os marinheiros, com chapéus trocados para mostrá-los como donos de fazenda, ainda estão rindo; sem som, mas rindo e apontando, segurando seus flancos, e eles riem e apontam)

ESCRAVO: (Nas trevas)

Sim, sinhô, sim Seu Tim, sim, sinhô.

(As luzes acendem)

Tô feliz como um macaquinho, sim, sinhô, sim, Seu Tim, sim, Seu Booboo, tô tão feliz que num sei o que fazê. Sim, sinhô, o sinhô é tão lindo e tão bom, e charmoso também, sim, tô tão feliz que fico à toa coçando minha bunda escurinha.

(As luzes acendem no Escravo dançando para o senhor; quando ele para de dançar, faz uma reverência e se coça.)

(Luzes apagadas…aquele mesmo hummmmmmmmmm soa…com tambores baixos, mas o hum fica alto e abafa os tambores…hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm  hummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm. O riso sobressai ao cantarolar, aquela mesma risada fria e medonha, ficando mais alta)

MULHER 3: (Murmurando depois da morte)

Moshake…Moshake…Moshake chile, calma, amor.

(A mulher cede e chora um pouco, sem nenhum outro som que distraia, só o seu gemido e choro tristonho, pelo seu bebê. Correntes. Correntes. Arrastar de correntes. O cantarolar. Hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm)

MULHER 2: AIEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE

Todos: Uhh, Uhhh, Uhhh, Uhhh, Oooooooooooooooooooo.

(Silêncio)

(No começo, bem leve, mas aumentando o som. De banjos da plantação)

ESCRAVO 1: Reverendo, o que vamo fazê quano sinhô chegá?

(Ele parece amedrontado)

ESCRAVO 2: Nós vamo cortá o pescoço desse desgraçado!

(Banjos)

(Cantarolar…Hummmmmmmmmmmmmmmmmmmm)

ESCRAVO 1: Reverendo, o que vamo fazê quando o homem branco chegá?

ESCRAVO 2: Nós vamo cortá o pescoço desse desgraçado!

ESCRAVO 3: Demônio. Monstro. Assassino de mulheres e crianças. Filho da puta sem alma!

ESCRAVO 1: Reverendo Turner, sinhô, o que vamo fazê quando o sinhôzinho chegá?

ESCRAVO 2: Cortá o pescoço daquele desgramado.

(As luzes acendem no mesmo escravo tipo “Tom”, ainda coçando a cabeça, mas aparentemente falando com um homem branco)

ESCRAVO: Hã, tá bem, Seu Tim…eles vão voltá

VOZ BRANCA: É o quê? Votar? Endoideceu?

ESCRAVO: Não, sinhô…Eu disse voltá…hã…tipo revoltá

(Risos…surgindo por de trás do diálogo)

VOZ BRANCA: Quando, rapaz?

ESCRAVO: Ahhh, essa noite, sinhô…eles dize que vão…cê me perdoe o palavreado…cortá o seu..hã…pescoço…

VOZ BRANCA: (Ri)

E quem está liderando essa “volta”

ESCRAVO: Hã…Reverendo Turner…sinhô

VOZ BRANCA: É o quê?

ESCRAVO: Hã…é isso…Reverendo Turner…sinhô…Agora posso ganhar aquele punhadinho a mais que o sinhô prometeu?

(Gritos, assim que as luzes apagam. AIEEEEEEEEIEIEIEIEIEIE. Armas de fogo, uma combinação de navio negreiro com início da revolta. Vozes dos senhores e escravos em combate)

VOZ BRANCA: Eu mato vocês, seus pretos. Pretos selvagens.

VOZ PRETA: Monstros brancos. Demônios infernais.

(Uma voz, cantarolando, cantarolando devagar, uma paciência mortífera hum HUMMMMMMMMMMMMMMM)

(Tambores de África, e os gritos de pretos e brancos em combate.)

(As luzes acendem em Tom, chorando como se estivesse se escondendo do combate, mastigando charque. Vozes de homens brancos celebrando a vitória. Outro pedaço de charque sai da escuridão. Tom agarra e enfia tudo na boca, rindo e se arrastando de um jeito esquisito, cantarolando enquanto come)

MULHER 3: (Voz morta sussurrando)

Moshake, Moshake…chile…calma, calma…vai ficar tudo bem,…Moshake, se acalma…

HOMEM 1: Monstros brancos!

Todos: Uhh. Ohhh. Uhhh, Uhhh

(Como se empurrassem algo muito pesado)

Uhh. Ohhh. Uhhh. Uhhh. Uhhh.

MULHER 1: Ifanami…

HOMEM 1: Dademi…Dademi.

MULHER 2: Akiyele…Akiyele…Senhor, marido, cadê vocês?…me ajudem…

HOMEM:…segura minha mão…mulher…

MULHER 2: Ifanami!

MULHER 3: Moshake!

(Agora as mesmas vozes, mas como se transportadas no tempo para fazendas de escravos, chamam nomes, nomes de escravos em inglês)

Todos: (Alternadamente, homem e mulher perdendo o parceiro para a morte, ou para o comércio de escravos, ou a aura de um constante medo da separação…)

HOMEM: Sarah.

MULHER: John.

MULHER 2: Everett. Meu deus, mataram ele.

TODOS: Mamãe, mamãe…vó, vovó. Willie. Ahhh, Senhor…morreram todos.

TODOS: Uhh. Uhhh. Uhh. Obatalá. Obatalá. Nos salve. Senhor. Xangô. Senhor das florestas. Devolva as nossas forças.

(Correntes. Correntes. Pessoas grunhindo e sendo arrastadas, espremidas umas contras as outras)

(Ouve-se um “Ó, Senhor, me leve, Senhor” e agora gritos de “JESUS, SENHOR, JESUS…NOS AJUDE, JESUS…”)

HOMEM 1: Ogum. Me dê armas. Me dê ferro. Minha lança. Meu osso e músculo, faça eles firmes com tensão para lutar. Ogum, me dê fogo e morte para que enfrente os monstros. Saravá! Saravá! Ogum!

(Tambores de fogo e sangue, brevemente altos e rompendo contra as trevas, mas depois se acalmam, se dissipam, até que se ouça apenas os gemidos, e o mesmo cantarolar paciente…de mulheres, agora nenhum homem, só mulheres…versos de “The Old Rugged Cross”…e apenas as mulheres e o cantarolar…o tempo passando na escuridão, um choro fraco, fraco, lastimoso, “Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…Jesus…”)

(As luzes acendem, e o pastor de terno em pé com um chapéu na mão. Ele é o mesmo Tom de antes. Ele fala com sua congregação: “Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus”. E então, com um sorriso malicioso, tagarelando de forma pseudo-inteligente, como fala com seu senhor. Ele tenta ser, na verdade, crê que é, digno, tenta manter uma postura elevada, mas só consegue ficar reto de um jeito esquisito, como um poste)

PASTOR: Sim, nós entendemos…o problema. E, pessoalmente, eu acho que algum acordo pode ser alcançado. Nós não vamos ser violentos…no mínimo…porque entendemos a dignidade de Labaxúrias e do Espírito Sebento. Claro, que um trago não é um estrago mas um trato. Os pinguins fariam o mesmo. E eu tenho um bisonho que os merdas-cheirosas não vão integrar. Cabeça no presente. Eu tenho um bisonho…um tonho, nas colinas, com a sua mulher.

MULHER 3: (Voz de uma mulher gritando em busca de sua criança)

Moshake! Moshake! Moshake! beeba…beeba…Wafwa ko wafwa ko fukwididila

(Gritos…gemidos…tambores…um tom de luto…O pastor observa, cabeça virada só um pouquinho, como se estivesse com vergonha, ainda tentando conversar com os homens brancos. Então, um dos homens pretos, sai da escuridão e senta diante do Tom, com um embrulho que é o corpo ensanguentado de um bebê queimado, como se tivessem retirado-no de uma igreja que explodiu, deixa o corpo na frente do pastor. Ele para. Olha para a “pessoa”, ele age como o Tom de antes, com o é tenta esconder o corpo do bebê atrás de si, sorrindo, fazendo graça, o tempo todo mostrando os dentes e sendo “digno”)

PATOR: Éeeeeee…como eu dizia…Sinh..hã..Senhor Tastyslop…Nós escurinhos tamos prontos pra integrar…eu subi no monte, aleluia, um ministério. Sim. Sim. Sim!

(No fundo, enquanto o pastor está parado na sua postura de bobo, o som estridente de um saxofone acompanhado de bateria. O saxofone rompe a escuridão. Com o saxofone, outros instrumentos e bateria bem altos, começam as vozes gritando…)

HOMEM: Monstros! Monstros! Monstros! Ogum. Me dê lança e ferro. Me deixe matar…

(O cantarolar de antes…demorado…incrivelmente paciente, como se fosse durar para sempre, mas torna-se um OMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM: todos entoam e o criam um clímax)

 

(As luzes apagam. O som de Ommmmm misturado com os sons do navio negreiro, do saxofone e da bateria. Som das pessoas sendo jogadas umas contra as outras, mas agora é como se tentassem todos se levantar, se recompor. O som das pessoas se recompondo. Como mortos se reerguendo. E, junto disso, os mesmos sons do navio negreiro. Riso dos brancos sobre tudo isso. Riso de branco. A canção abaixo começa acompanhada de saxofone e bateria. Primeiro cantada)

 

TODOS:

Levanta, Levanta,

Corta as amarras, Preto, levanta

Seremos o que somos…

(Todos cantando “When We Gonna Rise”)

Quando vamos levantar, irmão

Quando vamos ultrapassar o sol

Quando vamos levantar nossas cabeças e vozes

Quando vamos mostrar ao mundo quem somos

Quando vamos levantar, irmão

Quando vamos tomar nosso lugar, irmão

Como se o mundo começasse agora

Quando vamos levantar nossas cabeças e vozes

Mostrar ao mundo quem somos

Deuses-guerreiros, apaixonados, os Primeiros Homens a pisar nessa astro

Sim, sim, os primeiros a pisar nesse astro

Quanto tempo vai levar

Quando o mundo vai ser meu e seu

Quando vamos levantar, irmão

Quando vamos ultrapassar o sol

Quando vamos tomar nosso lugar, irmão

Como se o mundo começasse agora?

(Arranjo de bateria, sax e canto)

(Corpos sendo arrastados, na escuridão)

(Luzes acendem no pastor em outra parte do palco. Ele fica de pé, tagarelando coisas sem sentido com um homem branco. E o riso do homem branco pode ser ouvido tentando se sobressair à música, mas a música fica mais alta)

(Pastor vira para olhar para a escuridão e para as pessoas sendo arrastadas atrás de si, com vergonha, mas então começa a ficar assustado. A risada assume um tom menos arrogante.)

MULHER 3: Moshake. Moshake.

HOMEM: Ogum, me dê o aço.

TODOS: Uhh. Uhh. Ohh. Uhh. Uhhh

(O cantarolar fica mais alto também, no fundo. Ainda cantam “When We Gonna Rise”. O pastor se contorce, se vira para olhar, e repentinamente seus olhos se abrem muito, as luzes ficam mais claras, muito, muito lentamente, quase que imperceptivelmente. Pode-se ouvir uma cantoria, misturada com tambores africanos, e vozes, gritos, resmungos, do navio negreiro. O pastor fica inquieto, como se não quisesse estar onde está. Ele olha para o senhor procurando ajuda. Sua voz trêmula, enquanto as luzes acendem e todos vemos as pessoas no navio negreiro dançando “Miracles/Temptations’”. Alguns fazem danças africanas. Outros fazendo um novo Boogaloo, mas todos indo em direção ao pastor e em direção à voz. É uma nova dança ancestral, boogalooiorubá, mulheres, crianças, todos se movendo, estalando os dedos, cantando, e os bateristas, tocando o novo e o velho, se movendo, todos se movendo. Por fim, o pastor fica envergonhado e clama pela ajuda da voz branca.)

PASTOR: Por favor, sinhô, esses pretos endoideceram; por favor, sinhô, lança sua luz sobre eles, Jesus branquinho, deus branquinho, eles endoideceram! Socorro!

VOZ: (Tossindo, como se estivesse engasgando, tentando rir do pastor…ainda consegue rir do pastor) Tolinho. Tolinho

PASTOR: Por favor, sinhô, por favor…eu faço qualquer coisa…cê sabe, sinhô…Por favor…Por favor…

(Todos se misturam e matam-no. Então viram em direção à voz. Dançando. Cantando, de frente para a voz que agora suplica)

VOZ: HaaHaaHaaHaa

(A risada engasgada na sua garganta)

Hã..o quê?…vocês haha não podem tocar em mim…vocês têm medo de mim, pretos. Eu sou Deus. Vocês não podem matar Deus Jesus branco. Eu tenho um cabelo loiro escorrido. Eu nem uso peruca. Vocês me amam assim. Vocês querem ser como eu sou. Vocês me amam. Vocês me querem. Por favor. Eu sou bom. Sou gentil. Eu dou tudo o que quiserem. Eu sou o Jesus branco, seu Salvador, o único deus, te dou dinheiro, seu preto, eu sou bom, deus bom, por favor…por favor, não…

(Luzes começam a enfraquecer…os tambores e as vozes dos velhos escravos do navio retornam)

TODOS: Uhh. Ohh. Uhh. Ohh. Uhh. Ohh. Uhh. Ohh.

(Então aquele cantarolar terrível, se transformando num OMMMMMMMMMMMMMmmmmmmmm, que é interrompido, pelo grito da voz branca sendo morta)

VOZ: AAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

(Todos os atores iluminados parcialmente, neste ato. Então as luzes apagam. Tudo preto)

(As luzes acendem abruptamente, e as pessoas no palco começam a dançar, o mesmo Boogalooiorubá, estalo de dedo, skate, macaco, cachorro…Entra o público; chamar pessoas do público para dançar. A mesma música “Rise Up”. Realmente vira uma festa. Quando a festa ficar bastante improvisada, et cetera, e a audiência relaxar, alguém joga a cabeça do pastor no meio do palco, isto é, quando a dança começar de verdade. Então tudo preto.)


Nota do tradutor: Depois de conversar com um querido amigo sobre esta peça, decidi traduzi-la para que ele pudesse ler, mais confortavelmente, em nossa língua. Traduzir nunca é tarefa fácil e, em se tratando da linguagem de Baraka, a tarefa de traduzir NAVIO NEGREIRO foi um grande desafio. Algumas liberdades foram tomadas em partes especialmente complexas do texto de Baraka, nas quais somente a invenção seria resposta adequada ao empenho tradutório. Além disso, como se trata de uma tradução concebida para a leitura, talvez não soe adequada para a encenação, necessitando ajustes vindouros que minha falta de conhecimento de teatro me impedem de realizar mas que deixo nas mãos de quem quiser se enveredar por essas sendas.

O Tao do Pernalonga, por Fred Camper (tradução de Pedro Ávila)

Esse texto foi publicado originalmente em inglês, no dia 1 de março de 2001, pela revista Chicago Reader e pode ser lido aqui. Escrevendo a propósito de uma exibição de curtas de animação de Chuck Jones, estrelando os famosos Looney Tunes, o artista plástico e crítico norte-americano Fred Camper reflete sobre o estilo autoral de Jones e seus desenhos animados produzidos e lançados pela Warner Brothers por volta dos anos 1940 e 1950. O próprio Camper disponibilizou algumas de suas obras e outros textos sobre cinema, arte, dentre outros assuntos em seu site.

Assim como as notas, as imagens não estão presentes no texto original, foram escolhidas pelo tradutor para melhor ilustrar as sequências comentadas por Camper.

 

Charles Martin “Chuck” Jones

 

O Tao do Pernalonga

Um dia de semana à tarde, em 1972, visitei um colega aficionado por filmes em seu lar em Los Angeles. Diversas outras pessoas interessadas em cinema também estavam lá. De repente, às 3 da tarde, todos se juntaram ao redor de uma velha televisão preto & branco. Autorista [auteurist]1 de longa data, imaginei que clássico obscuro comandava suas atenções. Acabou que era uma exibição diária de desenhos animados de Hollywood dos anos 40 e 50 – todos tentavam adivinhar os diretores. Lembro de pensar: “Isso é levar autorismo longe demais”.

Mas no ano seguinte fui convertido por uma das pessoas presentes, Greg Ford, que fez a curadoria de uma série de desenhos animados no já extinto New York Cultural Center, com programações inteiras dedicadas a desenhos dirigidos por Chuck Jones, Tex Avery, Frank Tashlin, dentre outros. Desde então, essa série entrou para os livros de História da animação como a primeira apresentação auterista de desenhos animados, e agora Marty Rubin – que patrocinou a série original de Ford e é atualmente diretor associado do Gene Siskel Film Center – novamente colaborou com Ford para apresentar oito programas de desenhos animados de Chuck Jones ao longo de oito dias, começando dia 2 de março. A maioria são cópias de estúdios ou colecionadores raramente exibidas, então essa pode ser a chance única de poder assistir num cinema a boas cópias dessas alegres, por vezes hilárias, joias cinematográficas, da maneira como foram feitas para serem vistas. Apesar de Jones ser mais conhecido por criar Papa-Léguas e por ajudar a definir Pernalonga, Patolino, e outros personagens, seus desenhos com criaturas menos conhecidas (muitos dos quais estão incluídos na programação) são tão gloriosos quanto.

Em tempos recentes, a Warner Brothers passou a capitalizar sobre o trabalho criado por Jones e outros, vendendo acetatos de animação2 e outros produtos, além de licenciar o uso dos personagens para comerciais. Jones, ainda firme e forte aos 88 anos 3, faz o mesmo em www.chuckjones.com, que também possui uma filmografia completa. Os desenhos podem ser vistos na televisão, mas muito se perde assim. A arte de Jones depende de estabelecer e depois perturbar tempo e ritmo – você deve ser comovido pelo poder ilusionístico da situação dada. Quando as geringonças do Coiote desabam sobre ele, o impacto do acontecimento depende do estabelecimento de sua presença física, uma ilusão prejudicada pelo vídeo. E é possível argumentar que as linhas do vídeo alteram mais as cores sólidas e saturadas dos desenhos animados do que as texturas da face humana.

O grande tema de Jones é controle: as pelejas de seus personagens uns contra os outros, contra o ambiente ao seu redor, e contra si mesmos. Seus desenhos animados são comoventes em parte porque ele cria personalidades reais; Jones reune mais complexidade psicológica em seis minutos do que muitos diretores de hoje transmitem em duas horas de explosões. Seus personagens experienciam dor, duvidam de si mesmos e possuem sonhos. Às vezes eles enlouquecem ou são levados ao suicídio. Criando expressões faciais radicalmente diferentes em rápida sucessão, Jones não apenas mostra um personagem perdendo o controle das circunstâncias como sugere uma vida interior dividida.

Nascido em Spokane, Jones iniciou a carreira nos anos 1930, ajudando a criar acetatos de animação. Seus primeiros desenhos enquanto diretor, começando em 1938, mostravam uma influência de Disney, mas logo divergiram dessa estética; de fato, muito do que a Warner Brothers produziu parece intencionalmente oposto aos desenhos suaves, açucarados e sanitizados da Disney, nos quais a norma são personagens bonitinhos e fofos. O desenhos de Jones são cheios de quebras intensas, transições abruptas, contradições desconcertantes; sua aparência, sensação e espaço são tão irregulares e esfarrapados quanto os pelos do coiote logo depois de ter sido chamuscado por uma de suas próprias explosões. No mundo pertubado de Jones, personagens são menos passíveis de ter seus conflitos resolvidos do que terminar num “Hospital Psicopático”.

A maioria dos defensores de Jones argumentam que esses desenhos animados se adequam aos sofisticados gostos dos adultos, mas creio que algo se perde ao não levar em conta o público-alvo original: crianças. Aqueles momentos que desafiam a gravidade, quando um personagem se lança para fora de um penhasco, percebe que está no ar e se espatifa no chão, podem ser associado às tentativas de uma criança de reconciliar as fantasias de voar com a descoberta dos limites físicos. A forma com que os personagens se esforçam para dominar seus arredores, com suas táticas que frequentemente saem pela culatra, reflete os primeiros tropeços de uma criança; controle e sua perda espelham as tentativas de uma criança de afirmar sua autonomia em face a pais aparentemente onipotentes.

Assistir a uma obra-prima de Jones simultaneamente evoca a experiência infantil da risada incontrolável (dado o ritmo acelerado das piadas) e põe em xeque a solidez e estabilidade do mundo, uma vez que o chão parece literalmente se deslocar sob você. Em geral, Jones brinca com a ilusão, fazendo referências à produção cinematográfica, que podem variar do mundano em Beanstalk Bunny (1955), Patolino diz para o pé de feijão: “É melhor eu deixar de moleza e escalar esse troço senão não teremos filme algum” até o inventório virtual de técnicas de animação em Duck Amuck (1953).

Jones às vezes expressa o tema do controle na linguagem de seus desenhos animados. Em Rabbit Seasoning (1952), Pernalonga confunde as tentativas de Patolino de convencer o caçador Hortelino Troca-Letras de que na verdade é temporada de caça ao coelho, até Patolino acabar gritando “Atire em mim!”, uma exortação que Patolino mais tarde diagnostica como “problemas pronominais”. Mas o mais frequente é Jones realizar o tema do controle através de rupturas espaciais, ritmos dessincronizados ou super-sincronizados, e alterações no sistema representacional do desenho animado, dispositivos frequentemente presentes numa mesma obra, apesar de um ou outro poder ser dominante. Todos dependem de um tempismo preciso [precise timing]4 para nos surpreender: as explosões de Jones sempre parecem surgir um pouco cedo ou um pouco tarde. Na primeira queda do Coiote em Fast and Furry-ous (1949), ele cai fora do quadro enquanto olhamos o céu azul estático. Na segunda, Jones corta de maneira ainda mais perturbadora de uma tomada ao nível dos olhos do Coiote, em seus skis motorizados por um refrigerador, para uma visão de cima para baixo de um canyon espetacularmente profundo.

Fotograma de Rabbit Seasoning (1952), Patolino depois de levar um tiro de Hortelino.
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)
Fotograma de Fast and Furry-ous (1949)

Mouse Wreckers (1949) é um grande exemplo de alterações no espaço. Dois camundongos procurando um novo lar decidem levar o gato residente, o qual ganhou um punhado de troféus de “Melhor Caça-Ratos”, à loucura. Depois de arrastar o gato por um cano de escoamento, a última travessura deles é pregar toda a mobília no teto enquanto o gato dorme, exceto uma lâmpada de teto, que pregam no chão. O gato acorda e, aterrorizado com esse mundo às avessas, tenta se agarrar ao tapete no teto. Primeiro, nós o vemos de cabeça para baixo, mas em seguida o enquadramento rotaciona e nós o vemos de cabeça para cima – o que torna o corte para uma tomada de cabeça para cima no quarto ao lado, onde a mobília está no teto, ainda mais desorientador. Incapaz de processar a mudança, o gato agarra a lâmpada de teto, daí olha por uma janela e vê que a paisagem está ao avesso; um corte revela que os camundongos colocaram uma foto invertida lá. Através de outra janela, a paisagem está de lado, e a visão de uma terceira faz parecer que a casa está submersa. O gato foge aterrorizado de sua casa e é visto pela última vez encolhido e de olhos esbugalhados no topo de uma árvore.

Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)
Fotograma de Mouse Wreckers (1949)

Long-Haired Hare (1949) é uma das várias excelentes animações musicais de Jones, nas quais a sincronização entre música e ação é bizarramente exagerada, ao contrário da pretensa imperceptibilidade da Disney. Pernalonga começa a cantar alegremente, acompanhando a si mesmo no banjo, “What do they do on a rainy night in Rio?”. Ele é ouvido de uma casa próxima por um cantor de ópera que ensaia, Giovanni Jones, o qual se irrita ao ver a si mesmo por acaso cantando “What do they do in Mississippi/ When skies are drippy?”. Ele sai de casa e quebra o banjo na cabeça de Pernalonga.

Pernalonga é mais tarde visto no topo da concha acústica onde Giovanni Jones está cantando. Acertando o telhado com uma marreta, Pernalonga causa reverberações que fazem Giovanni ricochetear através do palco. Na sequência final, Pernalonga aparece com uma peruca branca e vestindo um traje para concertos, sendo reconhecido pelos músicos como “Leopold”. Quebrando em dois o bastão de maestro, Pernalonga passa a controlar completamente tanto orquestra quanto cantor com suas mãos, cujas posições e movimentos se correlacionam exatamente com o tom e ritmo da música: o condutor como ditador e diretor de cinema (tal qual os camundongos em Mouse Wreckers). Pernalonga quase mata seu cantor: tirando sua mão da luva, ele a põe para o alto no ar e sai andando enquanto Giovanni muda de cores variadas ao tentar manter a nota aguda, eventualmente levando a concha acústica ao chão.

Giovanni Jones, em Long-Haired Hare (1949) sendo ricocheteado pelas vibrações causadas pelas marretadas de Pernalonga na concha acústica.

 

Pernalonga sendo reconhecido como “Leopold” pela orquestra em Long-Haired Hare (1949)
A luva de “Leopold” permanece no ar, Long-Haired Hare (1949)
Giovanni Jones chega a mudar de cor e perder as roupas tentando manter a nota aguda enquanto a concha acústica desaba. Long-Haired Hare (1949)

Os melhores desenhos animados de Jones são auto-referenciais, rompendo com seus próprios sistemas representacionais e lembrando seu espectador dos artifícios da animação novamente ao contrário de Disney. É frequente que isso ocorra em prol de um tema social, coisa que poucos críticos além de Ford já mencionaram. A velocidade impossivelmente rápida de Papa-Léguas sugere o borrão de um automóvel passando por um pedestre seu “bip” até soa como a buzina de um carro o que dá matizes ecológicos aos fracassos sísifos do Coiote. E em uma de suas séries menos conhecidas, um lobo e um cão pastor que estão para lutar até a morte batem cartão. (Os chefes da Warner Brothers eram notórios por não apreciar os esforços de seus animadores; é dito que Jack Warner pensava que a companhia produzia desenhos do Mickey Mouse.)

Duck Amuck não é apenas a obra-prima de Jones mas uma das obras-primas definitivas da arte do cinema, explorando o processo de animação com uma profundidade digna das meditações sobre a produção cinematográfica em O Homem com a Câmera (1929), de Dziga Vertov, e em Blue Moses (1963), de Stan Brakhage. No começo, Patolino aparece vestindo um elaborado figurino de filme de época com um castelo ao fundo, pronto para um duelo de espadas. Mas enquanto a câmera o segue se movimentando para a esquerda, a cor desaparece do plano de fundo, deixando apenas as linhas do desenho, depois apenas o branco. Ao ver isso, Patolino passa a ralhar com um diretor que não vemos um monólogo que constitui a maior parte da conversa. Providenciado com o plano de fundo de uma fazenda, Patolino precisa trocar de figurino, quando o plano de fundo se torna de gelo, precisa trocar novamente. Apagado completamente, ele exige ser redesenhado. Redesenhado com um violão, ele não tem som. Exigindo som, ele toca o violão que acaba soando como uma metralhadora o primeiro de vários sons “errados” tão impressionantemente contraditórios quantos os do filme de vanguarda Unsere Afrikareise (1966), de Peter Kubelka. Os primeiros dois terços de Duck Amuck possuem a aparência de uma tomada única, servindo de pano de fundo para Jones realizar tomadas longas, close-ups e linhas de enquadramento errantes. Enfim, o exasperado Patolino exige ver o diretor ponto em que a câmera se afasta de um caderno de desenhos para revelar o eterno antagonista de Patolino.

Fotograma de Duck Amuck: Patolino vestido de fazendeiro reclama da falta de consistência do diretor/animador que não para de trocar o cenário do desenho animado.

 

Fotograma de Duck Amuck: Patolino, depois de ser apagado e redesenhado, tem seu som tirado pelo diretor.

Fotograma de Duck Amuck
Fotograma de Duck Amuck

Filmes cujas narrativas são possíveis metáforas para o fazer cinematográfico, como Napoleão (1927), de Gance, e Um Corpo que Cai (1958), de Hitchcock, tratam sobre os esforços de artistas em controlar o mundo. Identificando o sadismo do cineasta em Duck Amuck, Jones explicita algo implícito em muitas outras de suas animações: que há genuíno prazer nessas fantasias infantis de dominação e submissão. Apesar de seus desenhos terem sido criticados por sua violência – que é claramente proibida para menores nos parâmetros de hoje -, essa crítica me parece absurda. Qualquer criança consegue ver Jones desmascarando ilusões e sabe que suas criaturas maleáveis estão encenando fantasias de onipotência, não realizando-as.

NOTAS:
  1. À sugestão de Lucas Almeida, segui o exemplo da tradução de Fernando Mascarello de Introdução à teoria do cinema, de Robert Stam. Como diz Mascarello numa nota do capítulo “Culto ao autor”, do livro de Stam: “Adotamos ‘autorismo’, um neologismo de uso infrequente em português, e não ‘política dos autores’ ou ‘teoria do autor’, porque o sentido com que Robert Stam [como Fred Camper] utiliza o termo auteurism no original em inglês abarca tanto essas duas noções (a primeira crítica, a segunda teórica […]), como o aspecto cinefílico do culto ao autor nos anos 50 e 60 [e 70].”) (Campinas, SP: Papirus, 2003) ^
  2. Cell animation ou animação sobre acetatos: também conhecida como animação manual. Processo essencial para animação do período clássico – localizável desde a segunda metade da década de 1930 e ao longo da década de 1940 -, desenvolvido por Earl Hurd e John Bray em 1915. Define-se através do suporte utilizado: acetatos, celuloides ou cells, lâminas de plástico transparente em cima dos quais se desenha ou se situam as figuras que se deseja animar. Uma cena pode conter várias camadas de acetatos superpostas. […] Seu êxito reside no fato de permitir que uma parte de cada composição seja repetida quadro a quadro, com o que se economiza tempo e mão de obra, encurtando o período de produção, ou seja, possibilita não ter que desenhar toda a cena, incluindo os elementos imóveis (como fundos ou personagens estáticos) cada vez que se cria um novo quadro.” (REYES, Dean Luis. A forma realizada: o cinema de animação (tradutor Sávio Leite), BH: Pimenta Filmes e Edições, 2020) ^
  3. O texto de Camper é de 2001, um ano antes do falecimento de Jones, aos 89 anos.^
  4. Timing“, segundo Dean Luis Reyes (traduzido por Sávio Leite), “Refere-se à velocidade com que se executa uma ação na animação e a particular economia de ritmo e de pausa na execução do movimento. Trata-se de um dos aspectos decisivos do caráter final da peça de animação, pois supõe não somente a administração da dinâmica física, da percepção da massa, o peso e a escultura de um objeto, mas também a dosagem da manifestação do universo afetivo e emocional do personagem animado. Isso define, por exemplo, a quantidade de quadros necessários entre ações” (REYES, 2020). Dada a dificuldade de traduzir “timing“, cogitei criar um neologismo, como “momentagem”, mas acabei optando por “tempismo”, termo italiano que se aproxima do original, ao mesmo tempo que soa familiar a ouvidos acostumados ao português, na prática funcionando como um neologismo, mesmo.^

Cascando, de Samuel Beckett (tr. Alan Cardoso da Silva, comentário de S. Lawlor e J. Pilling)

 

Cascando

1

por que não só o desespero de

ocasião de

palavricídio

não é melhor abortar do que ser infértil?

as horas depois que você partiu são tão inertes

sempre vão se arrastando cedo demais

as garras arranham cegas a cama do desejo

trazendo à tona os ossos os outros amores

órbitas outrora cheias com olhos como os seus

sempre é melhor cedo demais do que nunca

o turvo desejo salpicando as suas faces

digo outra vez nove dias nunca içaram os amados

nem nove meses

nem nove vidas

2

digo outra vez

se você não me ensinar eu não vou aprender

digo outra vez há um último

até o último dos momentos

últimos momentos para implorar

últimos momentos para amar

para saber não saber fingir

até um último dos últimos momentos de dizer

se você não me amar eu não serei amado

se eu não amar você eu não amarei

o coágulo de palavras talha no peito outra vez

amor amor amor batidas do velho percutor

lascando o imutável

jugo de palavras

uma vez mais o medo

de não amar

de amar e não você

de ser amado e não por você

de saber não saber fingir

fingir

eu e todos os outros que vão amar você

se amarem você

3

a não ser que amem você


A “ocasião” que sugere o poema foi o encontro de Samuel Beckett, e a crença de ter se apaixonado, com uma amiga estadunidense de Mary Manning Howe, Betty Stockton Farley, que não era recíproca aos sentimentos de Beckett, logo esse “palavricídio” parece ter sucedido os sentimentos. […]

O termo “cascando” é (raramente) usado na música para distinguir um diminuendo no volume e/ou no tempo. Samuel Beckett usa a palavra “cascando” com referência a Esperando Godot em uma carta a Peter Hall de 14/12/55, e entitula sua peça de rádio de 1961 (originalmente escrita em francês), que não é tão obviamente sobre amor e muito mais preocupada com a escrita, Cascando (também o título em inglês), com música de Marcel Mihailovici. […]

N.T.: Traduzido a partir da edição crítica The Collected Poems of Samuel Beckett (2012), da qual também retirei e traduzi trechos dos comentários dos editores, precisamente das páginas 352-353.

Emily Dickinson – traduções por Rodrigo Goulart

Emily Dickinson (1830 – 1886)
Trad. Rodrigo Goulart /@ex_nihil

Esses provaram o Horizonte —
(886)

Esses provaram o Horizonte —
Então desapareceram
Como Aves antes de obter
A Latitude.

Nossa Recordação Deles
Um prazer consumado,
Mas a nossa Previsão
Uma Dúvida — um Dado —


These tested Our Horizon —

(886)

These tested Our Horizon —
Then disappeared
As Birds before achieving
A Latitude.

Our Retrospection of Them
A fixed Delight,
But our Anticipation
A Dice — a Doubt —

 

Conte toda a Verdade — mas oblíqua —
(1263)

Conte toda a Verdade — mas oblíqua —
No Rodeio reside o êxito
Brilha ao nosso enfermo Delírio
Seu Vero supremo efeito

Como o Raio à Criança se explica
Docemente pro seu sossego
A Verdade deve alumbrar aos poucos
Ou o homem ficará cego —


Tell all the truth but tell it slant —

(1223)

Tell all the truth but tell it slant —
Success in Circuit lies
Too bright for our infirm Delight
The Truth’s superb surprise

As Lightning to the Children eased
With explanation kind
The Truth must dazzle gradually
Or every man be blind —

 

A Dor — vestígio Vazio —
(650)

A Dor — vestígio Vazio —
Lembrar-se não pudera
Quando começou — ou se houve
Um tempo em que não era —

Sem Futuro — além de si —
Seu Infinito interior —
Passado — sábio percebe
Novos Períodos — de Dor.


Pain — has an Element of Blank —

(650)

Pain — has an Element of Blank —
It cannot recollect
When it began — or if there were
A time when it was not —

It has no Future — but itself —
Its Infinite contain
Its Past — enlightened to perceive
New Periods — of Pain.

 

Referências
Dickinson, Emily. The Complete Poems of Emily Dickinson. 2 nd Ed. by
Johnson, T. H., & Little, Brown and Company (1960).

Tiro certeiro: “Incidente” de Amiri Baraka, por Alan Cardoso da Silva e Pedro Ávila

Amiri Baraka (1934–2014) foi escritor americano, poeta, dramaturgo e ensaísta, além de ter trabalhado como crítico musical. Nascido LeRoi Jones, em Newark, Nova Jérsei, trocou seu nome para Amiri Baraka em 1965, após o assassinato de Malcolm X, figura central no movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Assim como Malcolm X, Baraka foi uma personagem polêmica, mas de extrema relevância política, tendo sido um grande movimentador das lutas afro-americanas em busca de afirmação identitária e maior presença na política, participando de grupos como o Black Arts Movement.

A controvérsia dos textos de Baraka deriva de sua escrita inquieta e confrontacional. Sempre politicamente engajado, seus escritos possuíam um teor ácido, altamente crítico ao racismo e às instituições norte-americanas. Essa sua crítica ferrenha, que intencionava incomodar as sensibilidades e ideologias do status quo, acoplada à constante mudança de sua trajetória política, que o fez adotar diferentes opiniões ao longo de sua carreira — passando de ideias pacifistas ao apoio e incentivo à violência na ação política, ou de movimentos como o Nacionalismo negro para os de liberação do terceiro-mundo —, contribuiu para que sua obra, apesar de influente, não fosse elevada ao cânone nem tão estudada.

Contudo, a poética de Amiri Baraka não se vale apenas de provocações controversas. Ele é considerado por muitos um dos escritores mais respeitados e publicados do século XX, além de ter sido um grande promovedor da poesia nos Estados Unidos, tendo fundado revistas como Kulchur e Floating Bear (1961–1969) — essa última junto de Diane di Prima. Ao longo de sua carreira, manteve contato com grandes nomes e movimentos da literatura norte-americana de vanguarda, poetas como: Allen Ginsberg, da Geração Beat; Charles Olson, do grupo Black Mountain; Langston Hughes, do Harlem Renaissance; Frank O’Hara, da New York School; e Ishmael Reed e Lorenzo Thomas, que, como o próprio Baraka, foram ligados ao Nacionalismo Negro.

Com sua então esposa, Hettie Cohen, também fundou a editora Totem Press nos anos 1950, que, além de seus livros, publicou muitos dos autores já citados. Assim como grande parte desses poetas, a música é essencial à poética de Amiri Baraka que, além de crítico de música, publicou livros como Blues people (1963), um estudo da música afro-americana, passando do blues ao jazz, cujos ritmos, improvisos e ligação com a cultura popular das ruas, tanto influenciaram a escrita norte-americana na segunda metade do século XX. Vale notar que, no universo do jazz, Baraka esteve próximo a músicos de vanguarda, como os gigantes Ornette Coleman e Albert Ayler, com quem colaborou em discos e leituras ao vivo de poemas. Na verdade, é possível ver como o verso livre do poeta se relaciona com o o fraseado livre desses jazzistas, seu próprio uso de repetições (como será demonstrado em “Incidente”) aponta para uma escrita musical, de um ritmo não fixo mas nem por isso menos presente. Não à toa em 2017 o álbum Far from Over do sexteto do pianista Vijay Iyer contou com uma faixa em sua homenagem, “For Amiri Baraka”.

Estando clara a relevância das contribuições de Amiri Baraka no cenário da arte norte-americana, surge a questão: o poeta já foi traduzido para o português? Não há no presente momento nenhuma tradução integral de seus livros nem edições antológicas, sendo possível encontrar traduções de apenas alguns poemas espalhados por blogs e revistas online de poesia, como a Modo de Usar & Co., que em janeiro de 2014, no dia de seu falecimento, publicou uma tradução de “In memory of radio”, feita pelo poeta brasileiro Dirceu Villa.

Buscando somar nossas vozes às de outros tradutores de Baraka no Brasil, traduzimos em 2019 o poema “Incident” 1, que pode ser conferido a seguir, contando com comentários sobre o processo tradutório:

 

Incident

He came back and shot. He shot him. When he came
back, he shot, and he fell, stumbling, past the
shadow wood, down, shot, dying, dead, to full halt.

At the bottom, bleeding, shot dead. He died then, there
after the fall, the speeding bullet, tore his face
and blood sprayed fine over the killer and the grey light.

Pictures of the dead man, are everywhere. And his spirit
sucks up the light. But he died in darkness darker than
his soul and everything tumbled blindly with him dying

down the stairs.

We have no word

on the killer, except he came back, from somewhere
to do what he did. And shot only once into his victim’s
stare, and left him quickly when the blood ran out. We know

the killer was skillful, quick, and silent, and that the victim
probably knew him. Other than that, aside from the caked sourness
of the dead man’s expression, and the cool surprise in the fixture

of his hands and fingers, we know nothing.

 

Incidente

Na volta ele atirou. Atirou nele. Quando
voltou, atirou, e caiu, trôpego, mata
adentro, duro, furo, corpo, morto, estourado.

Na sarjeta, sangrando, estirado. Ele morreu, ali
depois de cair, a bala a zunir, estourou seu rosto e
sangue jorrou fino na luz cinza e no assassino.

Fotos do morto, por todo lado. Seu espírito
suga luz. Mas ele morreu no escuro mais escuro
que sua alma e tudo oscilou com a morte dele

escada abaixo.

Nada se sabe

sobre o assassino, tirando que ele voltou, de algum lugar
e fez o que fez. E atirou só uma vez no mirar dele e
deixou ele correndo quando o sangue escorreu. Sabe-se

que o assassino é hábil, ágil, silencioso e quiçá conhecido
da vítima. Além disso, tirando o duro azedume no olhar
fixo do morto, e a surpresa na falta de reflexo

das suas mãos e dedos, nada sabemos.

*

Palavras como “shot”, “dead”, “killer” e “blood” ajudam a compor o tom de violência no texto. Ainda assim, alguns versos pareciam não se encaixar totalmente ao tema; e a partir dessa dissonância começamos a perceber a recorrência de palavras que apontavam para o campo semântico da fotografia, como “pictures”, “light” e até mesmo “shot” (que pode se referir tanto a um projétil ou ao ato de atirar quanto a uma fotografia ou ao ato de fotografar). Dessa maneira, além dos aspectos mais formais como ritmo, aliterações, assonâncias etc. demos prioridade também à ambiguidade da palavra “shot”, à tensão entre os temas assassinato/fotografia. E, apesar de nosso trabalho ser na verdade uma retradução, já que a poeta e professora universitária Luci Collin já traduziu esse mesmo poema, cremos que nenhuma outra tradução para o português do Brasil, disponível até a escrita deste artigo, fazia tal associação temática.

Em nossa tradução, portanto, privilegiamos manter a ambiguidade tanto do uso de pronomes quanto das palavras que simultaneamente criam a imagem de um corpo morto e de um retrato fotográfico. Além de tentar reproduzir um ritmo equivalente ao do orginal, adaptando o verso livre de Baraka por um verso livre em português, atentando-nos também para outras questões relativas ao ritmo, como as aliterações e as assonâncias. Assim, a palavra “shot” foi um desafio, como também as referências a luz (“shadow”, “light”, “darkness”, “fixture”), e à fixidez (“to full halt”, “fixture”) que tecem a relação entre a luz da câmera fotográfica e da arma de fogo, assim como à fixidez do homem morto e a de seu retrato inerte nos jornais. Sem uma palavra ambígua como “shot” em português optamos por usar flexões do verbo “atirar”, assim como palavras que remetem em sua forma ao verbo, como “estirado” e “tirando”, utilizando também o verbo “mirar” no lugar de sinônimos como “olhar”, uma vez que pode remeter à mira de uma arma de fogo. Quando os signos que remetem à luz não puderam ser recriados em posição equivalente, tentamos colocá-los em outras partes do poema: sem conseguir traduzir termos como “blindly”, fizemos escolhas como, por exemplo, utilizar a palavra “estourado”, no lugar de “to full halt”, que restaurava também uma ambiguidade entre o estourar do som do tiro, do corpo da vítima e da fotografia. A ambiguidade de “fixture”, que pode remeter tanto a fixidez, inércia, quanto a um candeeiro (portanto, outra imagem relacionada ao campo semântico da luz), não pôde ser recriada, fazendo-nos optar pela palavra “reflexo”, que pode remeter à espelhos, portanto, algo que remete ao olhar (que necessita de iluminação) e à reprodução, como a fotografia, mas também a uma reação involuntária, um espasmo.

 

A interpretação do conteúdo político e carregado da poesia de Amiri Baraka fica a cargo dos leitores. Quem é esse corpo morto, preso num jogo de luz e sombras? Quem o matou? Quem fixou essa morte numa fotografia e com que propósito? Mas esperamos contribuir para que o poeta seja um pouquinho mais acessível para leitores do português, apresentando também, através dos comentários, o quão hábil Baraka era com as palavras, como as moldava criativamente para atirar em cheio nas feridas abertas da sociedade estadunidense, que tanto gostamos de imitar por aqui.

NOTAS:
  1. O poema pode ser encontrado na antologia de 1969 Black Magic: Sabotage, Target Study, Black Art; Collected Poetry, 1961-1967, publicado pela Bobbs-Merrill Co..^

Análise de Ts’ai Chi’h, de Ezra Pound – por Alan Cardoso da Silva

Análise de Ts’ai Chi’h, de Ezra Pound – por Alan Cardoso da Silva

Esta é uma análise sobre o poema “Ts’ai Chi’h” de Ezra Pound que figura no livro Lustra (1916), que em 2011 ganhou edição brasileira com tradução excelentíssima do poeta Dirceu Villa. Já que se reconhece o mau crítico quando começa a falar do poeta e não do poema, abstenho-me de informar-lhes da biografia do autor. Limito-me apenas a dizer seu nome, nascimento e morte: Ezra Pound (1885-1972).

O poema em questão é curto, três versos apenas, e tive contato com ele através da edição bilíngue de Lustra publicada pelo Selo Demônio Negro. A análise, porém, será concentrada em um aspecto que figura no original, mas que não está na tradução. Advirto, porém, antes que critiquem Dirceu Villa ou os tradutores todos por perder a “alma”, a “essência” do original, poupem-nos. Este não é um textículo sobre tradução, mas, se quiser saber argumentos a favor da possibilidade da tradução poética, recomendo que leia este um livro ao menos em que um dos capítulos elucida a abordagem jakobsoniana (e o desenvolvimento que Haroldo de Campos fez da teoria de Jakobson), a saber: Poética da Tradução (2003), de Mário Laranjeira. Poemas são compostos de linguagem, deixemos os transcendentalismos aos médiuns, tradutores não operam com almas, essências ou espíritos.

TS’AI CHI’H

The petals fall in the fountain,

the orange-coloured rose-leaves,

Their ochre clings to the stone.

TS’AI CHI’H

As pétalas caem na fonte,

folhas de rosa cor-de-laranja,

Seu ocre apega-se à pedra.

(Trad. Dirceu Villa)

O poema curto é um ótimo exemplo do pensamento de Pound acerca da poesia: condensação. Como elucida através de uma equação em seu ABC da Literatura (2013) – descoberta em um dicionário alemão-italiano por Basil Bunting: dichten = condensare, poesia é, portanto, “a mais condensada forma de expressão verbal”. Além disso, podemos lê-lo a partir do esquema fanopeia, melopeia, logopeia, proposto pelo próprio Pound, aos quais correspondem, respectivamente, as definições:

  1. Projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginação visual.
  2. Produzir correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala.
  3. Produzir ambos os efeitos estimulando as associações (intelectuais ou emocionais) que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou grupos de palavras efetivamente empregados.

(Ezra Pound, ABC da Literatura, 2013, p. 69)

Claramente o poema de Pound definir-se-ia aqui como uma refinada logopeia. Temos imagem projetada na imaginação visual perfeitamente, à semelhança de poemas contemplativos como os haiku; e temos o primor que é o ritmo desse poema, a título de curiosidade a escansão:

Percebamos atentamente como Pound nos encanta com seu ritmo jâmbico e insere algumas variações para impedir a monotonia. Desconsiderando os significantes das palavras, mas apenas o valor do acento da sílaba, temos verdadeira música:

No primeiro verso: da-DUM, da-DUM, da-da, DUM-da (dois jambos, um pirríquio e um troqueu).

No segundo verso: da-DUM, da-DUM, da-DUM-DUM (dois jambos e um báquio) ou, podemos ler também da-DUM, da-DUM, da-DUM, DUM-[da] (três jambos e um troqueu cuja sílaba breve foi suprimida).

No terceiro verso: da-DUM, da-DUM, da-da-DUM (dois jambos e um anapesto).

Experimente ler em voz alta esse esquema de acentuação. O ritmo do poema salta aos ouvidos, mas isso é só um detalhe. O que quero tratar especificamente é a finesse do segundo verso do poema “the orange-coloured rose-leaves”, numa tradução mais literal “as folhas alaranjadas das rosas”. Contudo, uma tradução literal jamais deu conta de traduzir um poema. Isso é paráfrase. Mais uma vez saliento que isso não é uma crítica à tradução de Villa por alguma eventual incapacidade (eu mesmo não tenho nenhuma solução melhor para a tradução, até agora, a de Villa é a melhor que li). A tradução dele é muitíssimo satisfatória e bonita, diga-se de passagem: tem imagem e ritmo correspondentes ao original.

O que abordo aqui é uma especificidade do sistema linguístico do inglês: a palavra “leaves” pode ser tanto o substantivo “folhas” quanto a conjugação da 3ª pessoa do singular do verbo “to leave”, “deixar”. O que me chama a atenção nesse verso é a sobreposição de três possibilidades de leitura, a saber:

the orange-coloured rose-leaves
“as folhas alaranjadas de rosa”

the orange coloured rose leaves
“a rosa alaranjada deixa (o ramo, em direção à fonte)”

the [color] orange leaves [the] rose coloured
“(a cor) laranja deixa a rosa tingida”

E é isso. Não pretendo chegar a nenhuma conclusão além da mera observação. Creio que frente a um poema tão bem composto a única alternativa é a apreciação. Se minha leitura desse verso em particular puder somar à apreciação de alguém, dou-me por satisfeito. Ezra Pound carrega nas costas a alcunha de um dos maiores poetas do séc. XX, e não creio que seja por acaso. Sou um assecla de Pound e, talvez, minha opinião seja um pouco parcial demais e devesse ser desconsiderada. Mas presto aqui meu elogio à síntese de il miglior fabbro. Que cesse a língua falha dos homens, falemos a língua sábia da poesia: afiada e objetiva.

*

Imagem: “Errática Cabeça Hierática de Ezra Pound”, fotomontagem de Alan Cardoso.


REFERÊNCIAS

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

___. Lustra. Trad. Dirceu Villa. 1ª ed. São Paulo: Selo Demônio Negro, 2011.

Phil Solomon – entrevista por Scott MacDonald (tradução)

Imagem: The Snowman, Phil Solomon 1995.

Entrevista publicada originalmente em A Critical Cinema 5: Interviews with Independent Filmmakers, 2006, de Scott Macdonald.

Como tantos outros cineastas de sua geração (assim como Alan Berliner, ele estudou cinema na Universidade Estadual de Nova York em Binghamton no início dos anos 1970), Phil Solomon tem mais interesse em reciclar filmes feitos por outros, transformando-os em novos trabalhos que são distintamente seus. Enquanto muitos cineastas usam o cinema reciclado como um meio de satirizar dimensões da cultura norte-americana ou da vida moderna em geral, a abordagem de Solomon foi, desde o início, simultaneamente lírica e elegíaca. Como aluno da SUNY-Binghamton, ele estudou com Ken Jacobs, cujo Tom, Tom, the Piper’s Son (1969, revisado em 1971), que usa a refotografia para reciclar o curta homônimo da Biograph de 1905 em um complexo e notável longa-metragem, tornou-se uma inspiração. Geralmente os filmes de Solomon são evocações de perda – do amor, do tempo, da segurança e da vida – que cantam a beleza daquilo que se foi por meio de evocações rítmicas e textuais mais próximas da música e da poesia do que da maioria dos filmes. 

Desde que deixou a Faculdade de Arte de Massachusetts em 1980, com um MFA, Solomon explorou a substância literal da imagem fílmica através da impressora óptica1, aprendendo a provocar ressonância emocional quadro a quadro a partir de materiais encontrados, sobre os quais trabalha lançando mão de uma ampla variedade de recursos ópticos e manipulações químicas. Os filmes resultantes podem ser facilmente lidos como elegias para as vidas originalmente inscritas no celulóide, e também para o próprio cinema. Remains to Be Seen (versão Super-8mm, 1989; versão 16mm, 1994) e The Exquisite Hour (versão Super-8mm, 1989; versão 16mm, 1994) são exemplos particularmente bons. Ambos os filmes apresentam uma série de sequências visualmente ambíguas, mas com texturas surpreendentes nas quais as imagens são pouco inteligíveis. Frequentemente, sabemos basicamente o que estamos vendo – uma pessoa andando de bicicleta, uma paisagem, um carrossel -, mas não conseguimos mais identificar seu contexto original. Através de som e edição sugestivos, no entanto, Solomon confere a essas imagens díspares uma tonalidade emocional específica.

Em Remains To Be Seen, a metáfora que mais sobressai é a de uma pessoa em uma sala de cirurgia: as imagens e os sons da sala são motivos que sugerem a vulnerabilidade da pessoa que está sendo operada e, por implicação, da imagem do filme e do Cinema em si: “resta ver” por quanto tempo “o paciente” sobreviverá. Em The Exquisite Hour, a declaração na banda sonora de um idoso lutando para aceitar a perda de sua parceira (“nunca vou superar isso, nunca”) serve como o coração (partido) do filme, que evoca uma variedade de formas de cinema – primeiro cinema, filmes caseiros, representações da natureza – todas, como o próprio meio, parecem estar desaparecendo, apesar do que a perda significa para nós. 

Os filmes de Solomon são excepcionalmente abertos à interpretação; eles são menos sobre criar significados específicos do que proporcionar experiências evocativas que recompensam os olhos e convidam ao envolvimento emocional. Eles se dirigem não tanto à audiência, mas ao espectador na plateia que pode sentir o compromisso do cineasta com o processo lento e solitário que produz esses filmes. Por vezes, Solomon colaborou com outros cineastas – com Stan Brakhage em Elementary Phrases (1994), Concrescence (1996), Alternating Currents (1999) e Seasons (2002); com Ken Jacobs em Bi-temporal Vision: The Sea (1995) – mas seus filmes mais impressionantes e memoráveis ​​são empreendimentos solitários, especialmente The Secret Garden (1988), Remains to be Seen, The Exquisite Hour, Clepsydra (1992) e a série de “Twilight Psalms” que ele faz desde 1999: Walking Distance (1999), Night of the Meek (2002) e The Lateness of the Hour (2003). 

Conversei com Solomon por telefone durante o outono de 2000. Adicionamos um pequeno adendo em maio de 2003.

MacDonald: Vamos começar com a sua experiência como estudante na Universidade Estadual de Nova York em Binghamton. No início dos anos 70, Larry Gottheim e Ken Jacobs montaram um programa acadêmico de cinema com energia notável.

Solomon: Sim, eu estava lá em um momento fortuito, de 1971 a 1975, bem no final da primeira grande subvenção para a SUNY durante a administração Rockefeller – então havia muita coisa acontecendo.

Além de Larry e Ken, muitos cineastas estavam lá enquanto eu era estudante: Ernie Gehr (como você sabe, Serene Velocity foi feito em um corredor da SUNY-Binghamton) e Klaus Wyborny, Tony Conrad, Taka Iimura, Alfons Schilling, Saul Levine, Dan Barnett (uma figura-chave para muitos de nós: Mark McElhatten, Mark LaPore, Dan Eisenberg) e Peter Kubelka (estudei o trabalho de Kubelka por um semestre inteiro, com o próprio Kubelka, o que foi muito importante para mim, especialmente para aprender a pensar sobre economia formal). Larry, Ken, Saul e Dan estavam no corpo docente; Kubelka e o resto eram artistas residentes. Foi um momento muito potente.

Binghamton é uma das principais histórias das últimas décadas do cinema experimental, tanto em termos de seu legado de professores (Dan Barnett, Saul Levine e Mark LaPore na Faculdade de Arte de Massachusetts, Dan Eisenberg na Escola do Instituto de Arte de Chicago, Steve Anker e Ernie Gehr, no San Francisco Art Institute); de programadores de filmes (Anker, Richard Herskowitz e Mark McElhatten); e de locais de exibição e oficinas: o Collective for Living Cinema, o Cornell Cinema, a Boston Film and Video Foundation, Views from Avant-Garde no New York Film Festival e a San Francisco Cinematheque.

Mas em primeiro lugar devo dizer como cheguei a Binghamton. Eu cresci em Monsey, Nova York, do outro lado da ponte Tappan Zee, no Condado de Rockland. Em parte porque sou judeu de Nova York, meu pai tinha a comum expectativa de que eu me tornasse médico. Eu nunca pensei que poderia ser médico, mas sempre gostei de animais, então pensei que talvez me tornasse veterinário. Mas eu também amava cinema. No meu anuário do ensino médio, as pessoas escreveram: “Boa sorte em dirigir filmes de animais, ou Lassie“.

Quando chegou a hora de olhar uma faculdade, eu estava procurando um lugar com um Premed2 e um curso de cinema – estava cobrindo minhas apostas – e, naquela época, Harpur, como SUNY-Binghamton era chamada, era, até onde eu sabia, a única escola SUNY que oferecia ambos (as faculdades estaduais eram as únicas que meus pais podiam bancar). Expressei interesse no departamento de cinema em minha inscrição e recebi uma resposta de Ken e Larry explicando que o departamento deles abordava “cinema como arte”. Pensei: “Certo, Bergman, Fellini, cinema de arte europeu”. Eu era um secundarista meio hipster de subúrbio; costumava ir a Nova York para o Thalia, o Bleecker e o Paris – os cinemas que exibiam filmes de arte europeus. Eu também estava interessado nos “filmes de arte” americanos do final dos anos sessenta e início dos setenta – Altman, Rafelson, George Roy Hill, Cassavetes. Então pensei: “cinema de arte” – isso me parece bom.

No meu primeiro semestre fiz cálculo, química – e introdução ao cinema com Ken Jacobs. No primeiro dia de aula – acho que Ken não estava lá – eles desligaram as luzes nesta grande sala de palestras e mostraram The Flicker [1966], de Tony Conrad. Até então eu não tinha formação na estética da arte moderna – eu tinha crescido principalmente com a cultura pop e o rock and roll – e quando as luzes voltaram, pensei: “Que diabos foi isso!” Fiquei muito desconfiado. Pensei que só podiam estar de sacanagem. Mais tarde, quando comecei a dar aula, descobri que muitos de meus alunos se sentiam da mesma forma, embora a cultura pop tenha claramente absorvido muito do que para nós foi o choque modernista do novo.

Continuei meio desconfiado e chateado e, cerca de duas semanas depois, eu dei nos nervos – provavelmente havia cem ou cento e cinquenta pessoas nesta classe – ergui minha mão e perguntei ao Ken: “Quando vamos ver alguns filmes importantes neste curso?” Longo silêncio. Ken levou a pergunta a sério, sem se ofender, e explicou calmamente a natureza do que estava tentando fazer; de fato, durante esse semestre, ele mostrou vários “filmes importantes” e trouxe perspectivas fantásticas sobre.

No final do primeiro semestre, eu estava me abrindo para o jazz de vanguarda, e comecei a descobrir os usos educacionais da maconha e do ácido – e então vi o Blue Moses [1962] do Brakhage e tive o que senti como sendo uma revelação: eu comecei a entender a noção simples, mas importante, da reflexividade modernista, de que, sim, esse filme é sobre Cinema, e o cinema narrativo era essa frente falsa, onde “atrás de cada câmera há um operador” e assim por diante. Na empolgação da minha descoberta, lembro-me de ir até Ken e dizer algo como: “Você acha que alguém pode realmente aprender esse tipo de cinema?” E, com uma sobrancelha levantada, ele disse: “Bem, o que você acha que estou fazendo aqui?”

Pouco a pouco, enquanto eu me desencantava com a pré-medicina, descobri que estava – para grande desgosto de meus pais – me comprometendo completamente com essa excitante e estranha pequena cena do cinema poético, principalmente por causa da paixão e da inteligência dos professores com quem tive a sorte de estudar. Eu definitivamente sou um cineasta por causa da academia, não apesar dela.

MacDonald: Eu costumava ir a Binghamton com alguma frequência para ver apresentações dos cineastas residentes. A primeira vez que fui foi transformadora para mim: um simpósio de fim de semana, em que em uma única exibição de sábado à tarde estrearam The Act of Seeing with One’s Own Eyes [1971] do Brakhage, Barn Rushes [1971] do Larry Gottheim e Serene Velocity [1970] de Gehr. Eu acho que Ken também mostrou Soft Rain [1968], apesar de não ter sido uma estreia. 

Se bem me lembro, outra parte do mesmo simpósio foi um filme do Nicholas Ray feito com os alunos.

Solomon: Que grande período! O filme de Nick Ray a que você está se referindo foi inicialmente chamado de The Gun under My Pillow e, mais tarde, You Can’t Go Home Again [1973] – um filme de várias imagens, usando todo tipo de bitola diferente. Às vezes, Nick sonhava que ainda estava em Hollywood, e às vezes pensava que estava em Woodstock. Você pode descobrir um pouco sobre esse período assistindo Lightning over Water [1980], do Wim Wenders, que trata das aventuras de Nick em Binghamton. Se você perguntar a Ken, descobrirá que Nick quase levou o departamento à falência. Ele estava muito acostumado a ser mimado. Sua estadia em Binghamton não deu certo – vamos colocar dessa maneira -, mas para muitas pessoas, como Richard Bock, que mais tarde foi para Hollywood, e Steve Anker, esse foi um projeto muito memorável. Não sei o que aconteceu com o filme, mas na época foi uma bagunça.

MacDonald: Conte-me sobre você se tornar um cineasta.

Solomon: Recentemente, eu estava lendo um artigo sobre o Robert Wilson e a ideia de Grande Obra [Major Work]. Eu acho que minha geração se afastou dessa ideia, por muitas razões. “Towards a Minor Cinema“, de Tom Gunning, está exatamente correto ao delinear as mudanças de atitude e estética que ocorreram para nós. Olhando para cinco cineastas – eu, Nina Fonoroff, Peter Herwitz, Louis Klahr e Mark LaPore – Gunning fala sobre a diferença entre nossa geração de cineastas e a geração antes de nós, em termos de nossas aspirações cinematográficas. Nossa geração não pensou em trabalhar em grande escala como pioneiros estéticos; nosso cinema parecia mais hermético e pessoal, em termos de assunto e estratégia de exibição (acho que não é coincidência que quatro desses cineastas estudaram com Saul Levine). Não nos sentíamos à vontade com toda a tradição do artista macho de Cedar Bar que alguns dos cineastas experimentais americanos da época ainda pareciam estar dando continuidade.

Eu me sentia afastado de toda aquela cena de cineastas-vanguardeiros estrelas-de-rock-na-estrada, e fiquei desconcertado com o comportamento que vi nas exibições públicas. Eu pensei que muitos cineastas pareciam agressivamente defensivos, hostis e, em alguns casos, pretensiosos, grosseiros ou simplesmente loucos. Na época, Frampton e Sharits, entre muitos outros, tinham reputações bastante notórias, pelo menos no meio estudantil. Todo mundo tinha histórias de Jack Smith, Bruce Conner e Kenneth Anger. Até Stan [Brakhage] podia estar na defensiva e um tanto arrogante naquela época, esperando – e muitas vezes recebendo – perguntas hostis da plateia.

Claro, eu sabia que Ken Jacobs poderia, ocasionalmente, ficar bastante indignado e até ofensivo, mas eu era aluno dele e respeitava sua integridade e paixão.

MacDonald: Uma coisa que ouvi sobre Binghamton naqueles anos é que os alunos tiveram que fazer uma escolha entre Jacobs e Gottheim que, depois de um certo ponto, não se davam bem.

Solomon: Bem, isso não era realmente um problema quando eu estava lá, porque havia muitos professores para escolher e você podia navegar por essas águas com bastante facilidade. Eu acho que isso se tornou um problema quando mais tarde o departamento voltou a ser constituído basicamente por seus fundadores originais (Larry, Ken e Ralph Hocking). Estudei análise crítica com Ken, e seus cursos e programas eram imaginativos e inspiradores. Ele se revelou um grande modelo para o meu ensino. Suas aulas eram intensas; ele não fazia palestras mastigadas. Ele pensou e reagiu de pé. Ele legitimou esses filmes difíceis para mim através de seu entusiasmo e paixão e de sua peculiar e desconcertante inteligência não acadêmica .

Larry era um pensador muito sensível – acho que aprendi bastante com Larry apenas observando-o pensar e resolver problemas estéticos. Ele tinha o que eu chamaria de sensibilidade interna de câmara – penso nele tocando o quinteto de clarinete de Brahms para mim.

De certa forma tive o melhor de Larry e Ken, mas estudei cinema principalmente com Saul Levine, uma sensibilidade completamente diferente – muito mais um doidão. Saul acabara de chegar quando peguei produção. O que aprendi com Saul, especialmente como cineasta iniciante, foi apreciar o mundano. Saul estava envolvido em um certo tipo de cinema torto, cru, em 8mm, não-glorioso, feito de alma. Quando penso em Saul, penso no tipo de toca-discos que você tinha quando criança, tocando um blues distorcido e arranhado do Champion Jack Dupree – que é parte da trilha sonora de sua maior obra, Notes of an Early Fall [1976].

Quando eu estava começando, trazia coisas soltas e improvisadas, e Saul tinha a capacidade, rara em um professor, de encontrar coisas boas para dizer sobre quase tudo. Como muitos outros, eu estava passando pela minha fase Brakhage e mostrei a Saul um rolo fora de foco que eu tinha filmado da minha namorada, um close-up extremo. Saul disse que o lembrava Loving [1957] de Brakhage – só que melhor [Risos]. Não sei se isso foi uma provocação ou como ele realmente se sentiu, mas saí da aula pensando: “Eu posso fazer isso!”. Penso que Saul tinha uma gama mais ampla de apreciação e tolerância, do ponto de vista de um cinema iniciante, do que alguns outros professores, e ele foi muito bom para mim naquele momento de desenvolvimento.

MacDonald: Não sei se The Passage of the Bride [1978] é uma homenagem a Jacobs, mas certamente lembra o Tom, Tom, The Piper’s Son.

Solomon: Ah, com certeza. Quando reconheci a assimilação de Tom, Tom em meu filme, Ken respondeu que meu filme era claramente uma obra sua, mas mais como um Chippendale, muito bem trabalhado. E há a diferença de que Tom, Tom é um daqueles Grandes Filmes, um trabalho sinfônico – que influenciou enormemente a estética do cinema-, enquanto o meu é um filme muito obsessivo, pessoal e “menor”, com um escopo muito limitado de eventos e ambições. Mas as semelhanças também são óbvias. Tom, Tom abriu as portas para a estética de impressão óptica e refotografia que seguiria sua trilha e que se tornou uma vertente importante do filme experimental desde os anos sessenta.

MacDonald: The Passage of the Bride é de 1978; Suponho que existem filmes anteriores.

Solomon: Eu tenho alguns filmes Super-8 antigos e alguns de 16 mm, de 1975 a 1980, que não exibo por vários motivos. Eles eram imaturos na forma e derivados, particularmente, de Brakhage. O primeiro filme de fato bem acabado que fiz foi minha tese de graduação, Night Light [1975].

Você sabe, eu sou um daqueles cineastas que não tem problemas com o termo “cinema experimental”, porque isso realmente descreve parte do meu processo, parte dele, ou seja, que eu experimento, e muitas vezes filmes surgirão de uma técnica específica com a qual estou experimentando. Isso era verdade mesmo no início.

A primeira vez que tive contato com uma Bolex, eu disse: “O que é esse pequeno entalhe com um T?” Era para o tempo de exposição. Eu tinha um rolo de filme, e mantive o obturador aberto por alguns segundos em alguns quadros, e quando revelei a filmagem fiquei tão emocionado com esses dois segundos que fazer exposições longas se tornou uma obsessão por anos. Night Light era basicamente uma investigação de tempos de exposição, influenciadas pelo Fire of Waters [1965] de Brakhage. Não tenho certeza se Brakhage fez experimentos com o tempo de exposição nesse filme, mas descobri afinidades entre o efeito de tempo de exposição em que comecei a trabalhar, a dinâmica das tempestades de raios no filme e os ritmos de algumas cenas noturnas de guerra que eu acho que vi no Prelude to War [1942] de Frank Capra. Tudo isso acabou levando a Nocturne [1980, revisado em 1989].

Antes que as impressoras ópticas JK se tornassem amplamente disponíveis, a refotografia era um processo importante. É claro que Tom, Tom estabeleceu esse método e uma sensibilidade que instruiu muitos trabalhos realizados em Binghamton, inclusive o meu. Comecei a refotografar coisas na parede, usando um projetor Bolex que podia reduzir a velocidade do filme para cinco quadros por segundo – uma proto impressora óptica. Também refilmei visores de super-8 e outras coisas do gênero.

Todo mundo parecia amar Night Light, e eu saí de Binghamton com honras. De fato, depois que saí da escola, esse filme foi minha primeira locação – de Ken. Eu ainda tenho a fatura.

Na verdade, durante muito tempo não distribuí meus filmes. Muitos de nós éramos muito reservados em relação à nossa produção. Foi só quando terminei a pós-graduação, em 1980, que comecei a sentir a necessidade de distribuir meu trabalho. Passei meus anos de pós-graduação trabalhando principalmente em The Bride.

Depois que me formei em Binghamton, morei alguns anos em Rochester, Nova York, e continuei fazendo filmes, e depois escolhi o Massachusetts College of Art em Boston para a pós-graduação – porque Dan Barnett estava lá e mais tarde Saul. A primeira coisa que fiz foi grudar na nova impressora óptica JK do departamento – e nunca mais larguei! Todos os meus filmes foram feitos em impressora óptica.

Desde o início, eu sabia que não poderia fazer o que Stan [“Stan”, daqui em diante, refere-se a Stan Brakhage] fazia: eu não podia filmar minha vida e disponibilizá-la para distribuição. Eu era muito mais reservado e me senti envergonhado com o ato de filmar no mundo. Eu realmente não me sinto confortável filmando pessoas, ou mesmo filmando entre pessoas. Eu gravei muitos filmes caseiros Super-8 e de vídeo, mas sempre os mantive como filmes caseiros.

Para mim, a impressora óptica é uma maneira de rever o mundo bidimensionalmente, com outra camada de distância estética. Há algo sobre o processo de refotografia no nível do quadro que está em sintonia com a minha personalidade; tem a ver com uma espécie de introversão artística e com a ideia de trabalhar com uma secreta máquina mágica.

Quando criança, fui atraído pela ideia de criar pequenos mundos. Brinquei com modelos de super-heróis e criei pequenos cenários de filmes nas paisagens da minha cama. Além disso, em seu esforço para me fazer médico, meu pai me comprou microscópios e conjuntos de química. Eu acho que olhar através desses microscópios para o movimento de organismos minúsculos em slides, um após o outro, levou a – ou pelo menos alimentou – meu amor por espiar pelo “corredor” da impressora óptica e pela minha estética quadro a quadro.

MacDonald: Os conjuntos de química provavelmente alimentaram seu interesse em fazer transformações químicas de imagens.

Solomon: Isso mesmo! [Risos.] Em vez de fazer química orgânica para ajudar a humanidade, decidi usar uma estranha ciência para ajudar a mim mesmo.

Lembro-me de Saul Levine dizendo, meio de brincadeira: “A impressão óptica é para pessoas que não conseguiram fazer de primeira”. De certa forma, isso é absolutamente verdade para mim. Eu tenho uma fase primária em que filmo no mundo e uma fase secundária em que revejo e transformo aquilo que filmei.

Com Passage of the Bride, alguém me deu um único rolo de um filme caseiro de 16 mm feito nas décadas de 1920 ou 1930. Era um filme de casamento que aparentemente incluía imagens da lua de mel.

MacDonald: A doca e os nadadores?

Solomon: Isso mesmo. Fiquei totalmente fascinado com o momento em que a mulher corre pelo gramado e fiquei vendo e revendo aquele rolo, e finalmente o coloquei na impressora e comecei a trabalhar. Passei um ano gerando material a partir desse rolo de cem pés3 e acabei com algo como dois mil pés de material. Fiz tudo o que podia fazer: bipack4 com uma variedade de imagens elementares; diminuí a velocidade; apressei; ampliei; refotografei várias gerações como em Print Generation [1974] de J. J. Murphy – um filme que nunca vi.

MacDonald: Há vários momentos em seus filmes que me lembram de Print Generation

Solomon: Certo. Fico feliz por nunca ter visto o filme, porque ele continua vivendo na minha imaginação.

Agora, sempre que segui uma estratégia como a refotografia por gerações5, não estava perseguindo uma ideia formal ou estrutural; Eu estava tentando criar mais ressonância metafórica no material através da ideia de recorrência existencial e ciclos, tema e variação. Eu fui para a escola durante o auge das “Guerras do Cinema Estrutural” – meu filme (inédito) – uma piada interna – Rocket Boy vs. Brakhage [1980], é uma paródia da natureza acadêmica desse debate e das justas intelectuais que ocorreram: Brakhage versus Snow, e assim por diante. Lembro-me de ver todos esses filmes estruturais na faculdade e eu tinha cadernos cheios de ideias para filmes estruturais – mas fico feliz por nunca ter feito. Muito poucos filmes estruturais mantiveram sua ressonância para mim, mas alguns – Wavelength [1967] e Serene Velocity por exemplo – são surpreendentes e sobrevivem além do seu uso como modelos para os teóricos do cinema.

MacDonald: Na verdade Print Generation é tão incrível quanto qualquer um desses. 

Solomon: Eu preciso vê-lo.

De qualquer forma, depois da alegria puramente experimental de retorcer variações do material, fiquei obcecado com essa imagem do casamento enquanto suas possibilidades metafóricas se abriam lentamente. Na edição, gradualmente encontrei uma história oculta relacionada à minha própria vida. De certa forma, a narrativa é importante em todo o meu trabalho. Eu vim para o cinema experimental a partir de um verdadeiro amor pelos filmes narrativos de Hollywood. Eu estava e ainda estou emocionalmente envolvido com a experiência do filme narrativo. Mas acho que sua ressonância emocional geralmente não é muito profunda e rapidamente desaparece à medida que a hipnose da identificação se dissolve.

Eu também achei muito do cinema experimental meio cabeçudo demais, ou só cabeça; não chegava abaixo do pescoço. Eu queria fazer filmes que você pudesse levar para casa com você e que continuariam a ressoar enquanto eles estivessem vivos na memória; Eu queria algo da experiência emocional que todos nós temos com o filme narrativo, mas sem a vergonha e a decepção pós-hipnótica. É claro que os grandes filmes narrativos, como os de Ozu, Bresson ou Dreyer, criam lágrimas genuínas e conquistadas sem vergonha, porque são meditações na forma – e conteúdo – transcendental.

Nos filmes, sinto que frequentemente me perco no mecanismo de identificação, que é muito diferente da contemplação estética da forma que experimentamos com as outras artes. Não que isso não seja agradável – pode ser uma ótima experiência; mas é fundamentalmente diferente do que eu quero fazer. Há uma verdade dramática que resulta de ótimas atuações – na verdade, à medida que envelheci, fiquei mais interessado em boas atuações do que na técnica convencional de cinema. Eu pouco me importo com o movimento de câmera. Quando vejo uma grande  atuação nos filmes, geralmente fico muito emocionado. Mas sempre soube que não tinha interesse em dirigir atores e forjar narrativas – grande parte desse processo parece ser apenas sobre execução.

Meus filmes surgem do desejo por profundezas emocionais que vivencio nos grandes filmes narrativos, mas sintetizadas em uma forma econômica e poética, usando imagens alegóricas e metáforas audiovisuais. Então comecei a procurar materiais de arquivo para me ajudar a manter algum senso de narrativa – porque soube imediatamente que não podia dirigir pessoas, dizer a elas o que fazer e dizer e depois acreditar no material. Como cineasta, sempre me identifiquei muito mais com a experiência do artista solitário pintando ou escrevendo um poema ou compondo músicas a partir de alguma necessidade pessoal íntima, do que com a natureza colaborativa do processo de produção industrial de cinema.

Ken foi fundamental para mim em usar found footage, porque ele podia procurar material em latas de lixo e lojas de penhores, filmes de hospital: qualquer coisa era válida na sua busca por verdades misteriosas e frequentemente não intencionais. Isso se concretiza perfeitamente em seu Perfect Film[1985], em que tudo o que ele precisou fazer para revelar a verdadeira história por trás daquela narrativa foi colocar aquele pedaço de filme encontrado sob suas lentes Jacobsianas. Claro, o que diferencia Ken de muitos outros cineastas que trabalham com found footage é que ele realmente ama e respeita o material original e não o trata de forma irônica, com uma postura pós-moderna pretensiosa. 

Tento abordar o found footage de forma sincera, para descobrir verdades ocultas nas pessoas e eventos registrados na película. Verdades narrativas. Em The Passage of the Bride, eu estava olhando para o que aquela mulher estava fazendo e para todos aqueles homens com as mãos nos seus ombros, forçando-a para dentro do carro. Tornou-se meu Filme Zapruder.

Eu queria trabalhar biograficamente, mas de uma maneira “reprimida”. Tento submergir os significados e as referências pessoais latentes por meio de uma variedade de técnicas químicas e de impressão óptica, mas é absolutamente essencial para mim que meu trabalho parta da minha vida. Por exemplo, eu e minha namorada de colegial e de faculdade finalmente terminamos quando chegamos na questão de se casar ou não – e isso influenciou a realização de Passage of the Bride. No início e no final do filme, o nadador masculino está sozinho, nadando no grão do filme. Eu vi essa figura como eu mesmo, em uma espécie de montagem dialética com a narrativa do casamento da Noiva.

Por outro lado, embora esse tipo de narrativa autobiográfica oculta tenha sido extremamente importante para mim ao fazer o filme, não é necessária para a apreciação do filme. Pelo menos espero que não. A premissa de todo o meu trabalho é que existe um significado pessoal, mas também espero que haja verdade emocional suficiente para que o significado se expanda mesmo que você não conheça as informações biográficas específicas.

Finalmente, em The Passage of the Bride, há também uma subcorrente metafórica do “Grande Vidro” [La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Le Grand Verre, 1923]  de Duchamp  e de seus mitos da Noiva e do Solteiro, pelos quais eu estava muito interessado na época.

MacDonald: What’s Out Tonight Is Lost [1983] é uma combinação bizarra de imagens.

Solomon: O título vem de um verso de um poema de Edna St. Vincent Millay, mas o poeta John Ashbery – particularmente seu período intermediário: A Wave e Houseboat Days, ótimos livros – foi uma grande influência no estilo e no sentimento do filme. Ashbery tem esse tom calmo, sensível e prosaico, que parece tão cotidiano e “direto ao ponto”, mas ele continuamente faz essas curvas inesperadas, e você não tem certeza para onde ele está indo, por que ou como explicar aquelas estranhas justaposições. Mas ao final do poema elas parecem absolutamente certas. Era onde eu queria chegar.

Eu também tinha me interessado em deixar de usar a montagem no sentido tradicional. Os cortes secos pareciam brutais para mim. Quando eu estava na faculdade, fiquei bastante impressionado com a excitação cinética da montagem soviética, mas gradualmente senti que aquele tipo de montagem era um beco sem saída, especialmente dada a ironia do pesadelo de Eisenstein: que seu método marxista dialético se tornou a grande ferramenta do capitalismo tardio, particularmente em comerciais de televisão e videoclipes. A montagem radical, que fora um domínio exclusivo da vanguarda e uma fonte de grande invenção e riqueza, tornou-se clichê e brutal, algo próximo da guilhotina – cortando a cabeça de todos.

Eu queria suavizar as justaposições de imagens e fiquei muito intrigado com o uso de dissolves; quase todo o meu trabalho está envolvido na tentativa de encontrar novas maneiras de dispor uma imagem significativamente seguida a outra. Aprendi bastante com alguns momentos maravilhosos de filmes narrativos que usam dissolves muito poderosos, não apenas como indicativo de deslocamento espaço-temporal, mas como uma metáfora gráfica. A Place in the Sun [1951, George Stevens] e o Dr. Jekyll and Mr. Hyde[1932, Rouben Mamoulian], por exemplo, têm fantásticos dissolves metafóricos.

Então, quando eu estava fazendo What’s Out Tonight Is Lost, fiquei muito interessado em usar dissolves como forma de criar continuidade e em trabalhar com a textura em geral como uma espécie de atmosfera emocional, de modo que, conforme as texturas mudam, o sentimento também muda. Esse filme, como tantos outros, é sobre perdas iminentes.

MacDonald: Eu tive uma experiência mais longa com The Secret Garden do que com qualquer outro filme seu. Por um longo tempo, tudo o que pude ver no filme foram os resultados da técnica, que são impressionantes. Eu ficava sentado e pensava: “Uau, olhe essas imagens!” Mas quando cheguei à segunda metade do filme, eu já tinha tido o suficiente, e minha mente divagava, e eu decidi que o problema com o filme é que ele é pura técnica .

Continuei voltando ao The Secret Garden e me envolvi em dois outros níveis. Um envolvia os materiais originais com os quais você estava trabalhando: em um momento, vemos o título “O Mágico de Oz” e percebemos, mesmo que não saibamos quais são todas as fontes, que elas podem ser e provavelmente são filmes populares identificáveis. Então fiquei imaginando se deveria fazer essas identificações e como você poderia usá-las. O terceiro nível – e isso finalmente me atingiu – é que é uma narrativa de Queda do Éden. Claramente, há uma maçã sendo oferecida na metade do filme, após a qual você passa de um mundo de luz para um mundo de trevas. Olha o tempo que levei para chegar a essa narrativa mítica simples…!

Solomon: Mas essa revelação é o tipo de deleite e compreensão que advém do trabalho com ambiguidades criativas e expressivas, tanto na forma como no conteúdo. Felizmente, cada visualização revelará algo novo, no nível macro ou micro. O mesmo vale para a melhor poesia, pintura e música. Revelações e recompensas vêm com encontros repetidos e estudo mais profundo. Até a peça mais simples de Bach me parece totalmente complexa.

Eu vejo e revejo muito meus filmes, então tento construí-los para durar. Nós, cineastas experimentais, temos esse trabalho estranho em que damos uma volta com nossos filmes, mostramos e dizemos: “Alguma pergunta?” Imagine pintores fazendo isso! Na verdade, eu gosto muito dessa experiência – novamente, talvez ao contrário de uma geração anterior de cineastas que geralmente eram defensivos e desprezavam as perguntas do público. Claro, eu entendo o porquê: eles tiveram que travar uma boa luta e abrir espaço para esse tipo de filme. Eles prepararam o terreno. Mas minha geração teve uma concepção diferente da apresentação: não precisávamos nos ver como defensores da arte ou como missionários. De qualquer forma, eu sei que vou assistir meus filmes toda vez que viajar com eles, o que é muito, então eu os faço de uma maneira que possa me interessar a cada nova exibição.

Parece que há dois lados em ser artista: a responsabilidade pelo trabalho no ato de fazê-lo; e o aspecto social de mostrar e comentar o trabalho, que é secundário. Como todo mundo, eu quero ser amado, e quero ser entendido, e quero que meus filmes sejam amados e entendidos. Mas, ao mesmo tempo, o tipo de trabalho que sempre me atraiu é precisamente o tipo de trabalho que você não capta na primeira vez, mas que, apesar de não captar, você percebe autoria e intenção verdadeiras.

John Ashbery é o exemplo perfeito. Li e reli seus poemas – mas nunca sinto que posso fechar a porta de muitos deles. “The Road Not Taken”, de Robert Frost, é um poema adorável, de certa forma perfeito, mas acho que eu o captei – e eu realmente não preciso voltar nele novamente, exceto por uma visita ocasional a uma parte específica. Gosto da sensação de que, mesmo que não entenda o que a obra está tentando fazer, sinto que faz. Quando você assiste a um filme de Brakhage, você nota um senso de autoridade, uma vontade, a luz guia da intenção, e precisa confiar que ele sabe o que está fazendo mesmo que você não consiga decodificar o filme plano por plano ou mesmo chegar a um entendimento claro de sua forma geral. 

Assistir a filmes é como estar no banco de passageiro de um carro. Em um determinado momento durante o The Secret Garden, você decidiu sair do carro – mas se você sentiu que havia algo no filme que o faça voltar, e se isso levou lentamente a algumas revelações sobre o filme, estou satisfeito. 

A maioria dos filmes é feita para terminar após a primeira visualização. Fui projetista de cinema por quase dez anos – dirigi uma rede de cinemas em Boston para viver – e podia assistir qualquer coisa uma vez, mas muito raramente podia olhar pela janela da cabine de projeção naquele mesmo filme novamente. A maioria dos filmes que eu projetei evaporou após o consumo inicial.

MacDonald: Então, qual foi a técnica que guiou The Secret Garden? Você fez experimentos químicos no material?

Solomon: Não há nenhuma manipulação química das imagens.

Eu não tinha uma ideia preconcebida de que queria fazer algo sobre A Queda. Eu tinha uma lente peculiar; quando você ajustava o diafragma até uma abertura específica, um certo tipo de difusão “indesejada” acontecia. Eu experimentei essa lente em uma variedade de imagens e depois modifiquei a lente de várias maneiras. Todas essas imagens prismáticas no início do filme vem de manipular a luz com uma variedade de técnicas ópticas. Olhando através da Bolex, no corredor da impressora óptica, comecei a ver coisas interessantes acontecerem e, como um cientista, experimentava materiais diferentes. Descobri que certas composições de alto contraste funcionavam melhor para produzir efeitos que me interessavam.

E então eu descobri que um amigo meu tinha uma bela cópia em 16 mm de O Mágico de Oz [1939], e ele estava disposto a me emprestar. O Mágico de Oz foi um filme primordial para mim quando criança, como é para muitas pessoas. Me encheu de pesadelos, mas eu adorei. Todo ano eu assistia em preto e branco e fiquei impressionado quando finalmente o vi colorido.

Então comecei a brincar com essas imagens utilizando essa técnica, e as imagens voltaram com uma qualidade difusa e brilhante e, junto com algumas imagens de luz na água e luz através das árvores, me encontrei no Jardim do Éden; então comecei a pensar em O Mágico de Oz como uma versão clássica da expulsão do Paraíso e da busca por Deus.

O próximo passo foi que alguém me deu algumas sobras de preenchimento de som – material usado para fazer o corte do som, geralmente imagens que as pessoas jogam fora – de uma das versões comerciais de The Secret Garden (embora tivesse legendas em inglês, acho que é a versão de 1949 com Dean Stockwell e Margaret O’Brien). Comecei a experimentar com isso e criei minha própria versão do que se tratava (nunca li o livro e nunca vi o filme contemporâneo). No meu filme, a maioria dessas imagens de Secret Garden é vista durante a segunda metade – e também logo no início: as legendas “once upon a time” e “tell me a story”.

No final da parte paradisíaca do meu filme, você vê Jack e Jill correndo ladeira abaixo – imagens tiradas dos filmes caseiros de meu pai em algum lugar do interior de Nova York. Meu pai fazia filmes caseiros, e ele produzir e projetá-los sempre me pareceu algo mágico. Não era como hoje, quando as crianças podem colocar fitas de vídeo no videocassete. Meu pai teve que montar todo um aparato; foi um evento raro e emocionante. Ah, o cheiro almiscarado daquele projetor Bell & Howell de 8 mm! Uma experiência particularmente formativa foi quando ele mostrou imagens do meu cachorrinho cagando no gramado e depois correu para trás. Minha irmã e eu achamos aquilo infinitamente maravilhoso. Em certo sentido, a impressão óptica é apenas a minha versão do meu pai executando o projetor ao contrário e fazendo com que a merda voltasse para o traseiro do meu cão.

Então a história começou a vir para mim depois que o material voltou. Quando eu estava fazendo The Secret Garden, minha mãe estava muito doente e há um tema inteiro sobre a mãe ausente no filme. Quando meu filme chega à seção do Secret Garden – em que começa a bruxulear [flicker]- em todo o material foi feito bipack com variações de água, outra alusão bíblica: primeiro, o Jardim, depois a Queda e, no final, o Dilúvio. O que se parece com cidades em chamas no final é apenas um pequeno riacho no norte de Nova York que filmei e depois ampliei com minha técnica até parecer o fim do mundo.

Você tocou em algo que é um problema em potencial no meu trabalho. Muitas vezes, quando faço uma exibição, a primeira pergunta é geralmente: “Então, como você fez isso?” Eu sempre espero que minha técnica tenha um propósito expressivo e não seja apenas uma maneira de dizer: “Olha, mamãe, sem as mãos!” Os cineastas na platéia (e, ao que parece, a maioria do meu público são cineastas) costumam se distrair com a técnica. Eu acho que isso desaparece depois de visto repetidas vezes.

MacDonald: Não sei se isso desapareceu completamente. Muitas vezes, seus efeitos são tão incomuns que o espectador não pode deixar de se perguntar como eles são feitos.

Solomon: As pessoas me pedem fórmulas químicas e coisas do tipo, mas prefiro não enfatizar a técnica quando se trata do significado e da importância do meu trabalho. Certa vez meu amigo Mark LaPore me disse, depois de ver uma imagem minha: “Nunca me diga como você fez isso!” Eu acho que prefiro esse tipo de resposta. Mas, basicamente, eu apenas experimento com diferentes fórmulas e diferentes variações químicas. Eu tenho um método de fazer várias cópias do material em que trabalho, para tentar algo e, se não funcionar, poder tentar outra coisa. Eu amo a parte experimental de gerar imagens. Às vezes chego em algo completamente inesperado e, com base no que aconteceu, tentarei outra variação – deixo secar de outra forma ou jogo outra coisa na mistura.

MacDonald: A impressora óptica permite refilmar parte de um quadro ou um quadro inteiro?

Solomon: Isso. Aliás, quando estou filmando no mundo, muitas vezes penso em como vou reenquadrar a imagem quando imprimi-la. 

A impressora óptica tem sido a forma que encontrei de me desvencilhar de Brakhage. Outra noite eu estava conversando com Nick Dorsky sobre o conceito de angústia da influência, de Harold Bloom. Quando eu estava começando, Brakhage (e muitos outros do cânone, como é) parecia ter explorado muitos territórios. A impressão óptica proporcionava um caminho que parecia em aberto.

Muitos cineastas usam a impressão óptica para fazer análise: eles reenquadram algo, diminuem a velocidade e congelam o quadro – evidenciam-o opticamente. Estou usando a impressora óptica principalmente como um meio de transformar ou amplificar a luz, controlar cores e reformular a realidade. A sequência da ampliação da fotografia em Blow-Up [1966] de Antonioni foi uma cena primordial para mim: continuo explorando imagens na esperança de encontrar o corpo!

MacDonald: Essa é uma metáfora particularmente boa para o seu trabalho, porque em Blow-Up a questão é que não sabemos exatamente o que estamos vendo.

Solomon: É exatamente isso.

MacDonald: Em um nível, The Secret Garden sugere uma história mítica de perda da inocência, mas você também está descobrindo, em artefatos decadentes da cultura, essa nova experiência – então em um certo sentido, o filme está reacessando um tipo de Jardim dentro da “Queda” da ruína. Nesse nível o filme é uma parábola modernista sobre criatividade ser a resposta: você reacessa o Céu através do cinema, uma vez que caiu e sabe que há um Céu de onde cair.

Solomon: É uma colocação muito bonita e me lembra os parágrafos iniciais de Metaphors on Vision do Brakhage. Sim, acho que meu filme expressa um anseio por êxtase. Em The Secret Garden, imaginei que Deus (e há uma representação de Deus, pelo menos para mim: o homem de sobretudo que vai embora no final) seria realmente bonito demais, luminoso demais, para ser visto . Eu queria criar um filme em que a luz fosse tão forte que saísse da tela, ao longo do eixo z, para dentro da sala e então de volta para o projetor. Isso reflete meu profundo anseio de ter e criar uma experiência espiritual e extática com o cinema. Para mim, o cinema é um substituto para a experiência religiosa. Tenho opiniões embasadas sobre questões sociais, mas não tenho muito interesse em lidar com elas nos meus filmes; mas o anseio por uma experiência transcendental, por Mistério, está absolutamente no coração do cinema para mim. E digo isso na grande tradição da América-Nova Inglaterra, por mais absolutamente fora de moda que possa ser, nestes nossos tempos pós-modernos.

MacDonald: Remains to Be Seen e The Exquisite Hour parecem intimamente relacionados.

Solomon: Eles foram feitos quase ao mesmo tempo. Os Super-8s originais ainda estão em distribuição. São as versões de câmara desses dois filmes. As versões de 16mm fazem coisas interessantes, mas você perde um senso de detalhes e intimidade. E, claro, o som no Super-8 é magnético, que tem uma certa qualidade.

Fui convidado a mostrar o Super-8 original de The Exquisite Hour na noite de abertura da mostra Big As Life6 no MoMA. Acabou sendo a experiência clássica do Super-8. Havia uma casa cheia das pessoas mais importantes do cinema experimental em Nova York, incluindo todos os meus amigos e colegas cineastas – um dos melhores locais em que já exibi. Meu filme foi marcado como o último da tarde. Durante toda a tarde, tudo correu perfeitamente – mesmo com os projecionistas ajoelhados, executando os projetores de 8 mm – até The Exquisite Hour, quando, de repente, não havia som. Corri de volta para a cabine e lá estava Steve Anker, ensopado com o suor de milhares dessas projeções, tentando freneticamente resolver as conexões. Enquanto Steve pelejava, fui para o público e disse: “Toda vez que quero largar o Super-8, sou tragado de volta!”

Mas no final, o filme parecia incrível. O som da versão Super-8 foi mixado de forma muito grosseira durante uma maratona de mixagem com um amigo. Quando o filme foi ampliado para 16mm (essas cópias em 16mm foram as primeiras em que pude usar o som e a mixagem digital), decidi voltar ao que lembrava do som, sem realmente verificar a versão Super-8, e remixei-a do zero. Algumas coisas foram perdidas e outras ganhas.

MacDonald: Você via The Exquisite Hour e Remains to Be Seen como peças complementares? Os dois se concentram em uma figura que parece estar morrendo e, nos dois casos, há uma mistura do que parece ser flashback, fantasia e fluxo de consciência.

Solomon: Sim. Remains to Be Seen foi um processo longo e trabalhoso, devido a todos os tratamentos químicos e coisas do tipo. Então eu fiz The Exquisite Hour quase que como uma libertação – uma das experiências criativas mais mágicas da minha vida – em alguns dias (todos os dissolves foram feitos na câmera). Normalmente, meus filmes são muito trabalhados em termos de edição, mas esse foi muito intuitivo e quase completamente montado na câmera.

Ambos os filmes foram feitos em resposta ao falecimento de minha mãe após uma longa doença (cerca de cinco anos). Fui à Flórida várias vezes para vê-la e filmei um monte de material de tipo-documental: lente grande angular, foco nítido, preto e branco, sem interferência química. Eu me senti terrível filmando-a – ela odiava ser filmada – mas eu tinha essa necessidade primordial de preservá-la de alguma forma. Nunca consegui fazer nada com essa filmagem, o que é muito revelador. 

Penso no Remains como sendo marrom alaranjado e amarelo ocre, e no The Exquisite Hour como azul de Cornell , então eles eram complementares em termos de cor.

MacDonald: Então, nenhuma das imagens desses dois filmes é realmente dos seus pais?

Solomon: Toda vez que eu olhava as filmagens da Flórida, o referente ostensivo era tão forte – era muito a minha mãe e não filme – que eu não conseguia trabalhar com isso. A estética era irrelevante. Foi quando eu soube, de uma vez por todas, que não poderia filmar minha vida como Stan e outros fizeram.

Minha mãe morreu na mesa de operações, então muito do Remains to Be Seen é sobre ruir. Desde o início, você ouve o som da máquina de respirar, que “rima” com os limpadores de pára-brisa. Durante aquelas cenas de carro pelo Centro-Oeste, você vê palheiros, que me parecem caixões – de novo, eu realmente não tinha ideia do que pretendia com essas imagens quando fiz o filme, mas cheguei a ter todos os tipos de interpretações disso.

Remains to Be Seen começa com a imagem do ciclista: a câmera o segue pela paisagem – imagens de um camponês vietnamita tiradas de um documentário sobre o Vietnã com o qual eu estava muito impressionado. Essa se tornou a imagem central sobre a qual todo o resto girou em torno.

Como já deve estar claro, geralmente começo como uma espécie de caçador-coletor. Então eu vou para a impressora óptica. Meu avô era o clássico alfaiate judeu e trabalhou debruçado sobre uma máquina de costura a vida toda. Quando trabalho na impressora óptica (depois na moviola e, por fim, o som, no computador), sinto que invoco a antiga vocação judaica da costura!

Na verdade, minha mãe aparece em Remains to Be Seen, mas é muito obscuro. Em uma tomada dos filmes caseiros de meu pai, você vê pessoas atravessando uma passarela sobre a água – o Ausable Chasm, no norte de Nova York. Estou segurando a mão da minha mãe. Na minha opinião, a água é o Estige, uma ponte para o “Outro Lado”.

Eu sempre fico emocionado nessa parte quando vejo o filme.

MacDonald: Quando você está montando as várias partes de um filme, o que exatamente mantém o filme unido? É o clima?

Solomon: clima, atmosfera, ar, emoção – um sentimento. Intuição. Respondendo ao que as imagens estão me dizendo em um nível não-verbal. “No ideas but in things” [William Carlos Williams]. Embora eu me considere um intelectual e sou de certa forma entendido e sofisticado em termos de cinema, quando estou trabalhando tento fortemente não intelectualizar demais; Tento trabalhar com o coração e a alma e responder diretamente à imagem, e não atribuir muita informação a priori. Depois que o filme está pronto, começo a vê-lo como um todo e, como qualquer outra pessoa, começo a interpretá-lo e pensar no que significa.

MacDonald: Minha experiência original com seus filmes é musical. É como se você fosse um músico da textura.

Solomon: isso certamente faz parte do que estou tentando fazer. Quando você ouve uma música, o que surge primeiro geralmente vai diretamente para o corpo, e daí para o coração e alma. Pelo menos para um ouvinte amador como eu. Depois, você pode estudar mais a fundo ou ler a partitura, e pode perceber os temas e, eventualmente, acabar encontrando a forma geral, a estrutura profunda e a arquitetura tonal.

O cinema muitas vezes é simplesmente muito óbvio para mim, muito denotativo. Em um filme convencional, o primeiro plano sempre tem esse potencial fantástico, mas, no segundo, 50% desse potencial desaparece; no terceiro, 75%. E cinco minutos depois eu sei para onde a coisa toda está indo. Michael Snow acertou em Wavelength, em termos da forma redutora e dominante da narrativa e do tempo: aquele cone invertido à medida que avançamos em direção à parede e deixamos as coisas para trás. Eu quero continuar em movimento, rumo à branca luz da iluminação. Mesmo que as coisas nos meus filmes sejam ambíguas, visual e tematicamente, e você não consiga decodificar o que está acontecendo de um plano para outro, deve haver um sentimento, uma atmosfera, uma consciência dominante que parece inevitável e correta, de modo que, a longo prazo, você permaneça com ela. 

Eu senti isso profundamente com o Hart of London [1970] de Jack Chambers , que foi uma grande influência no meu trabalho, especialmente em Remains to Be Seen. Aliás, no final de Hart of London, você ouve a esposa de Jack Chambers dizer: “Você precisa ter muito cuidado”, que ele coloca em loop; e no meu filme você ouve, no limite da consciência, uma mulher dizer: “Vai dar tudo certo” – meu aceno a Hart of London.

MacDonald: tanto Remains to Be Seen quanto The Exquisite Hour usam muitos e intensos sons de maquinário-do-universo para que não haja dúvida de que as imagens que estamos vendo são, embora bonitas, também em algum nível agourentas.

Solomon: Sim, bonito e agourento. Isso parece resumir muito do meu trabalho. Eu diria que todos os sons são elementares. Fogo e água em Remains, vento em Exquisite Hour. Com Remains to Be Seen, a estrutura também é sazonal: começa no verão – você vê um nadador – e depois passa para esta seção do outono com as brilhantes folhas douradas e termina com as árvores desfolhadas no azul do inverno.

The Snowman [1995] realmente me surpreendeu. Eu pensei, quando comecei a trabalhar nele, que seria algo elegíaco como The Exquisite Hour, mas acabou sendo algo como A Tempestade. Enquanto eu trabalhava as imagens suscitavam uma espécie de “rage against the dying of the light” [Dylan Thomas], talvez uma raiva reprimida contra meu pai por me deixar órfão no meio da tormenta – daí a sequência em que você vê pai e filho em uma prancha de mergulho, e o garotinho pula no escuro e depois é visto sozinho no meio da tempestade. Muito do The Snowman é ​​sobre a inevitável separação dos pais.

MacDonald: Quanto do que vemos em Remains to Be Seen e The Snowman é deterioração do material original? Quanto disso é a sua manipulação química do material?

Solomon: Remains to Be Seen é todo manipulação minha do material original (as árvores, cachoeiras) e do found footage (filmes caseiros, cenas de documentários).

The Snowman veio dos filmes caseiros de um dos meus alunos; já havia deterioração, provavelmente de mofo, que amplifiquei na impressora. A maneira como as linhas cercam as figuras – eu simplesmente não podia acreditar no que estava vendo! Como um campo de eletricidade nos espaços negativos entre pessoas e paisagens. Eu gostaria de dizer a todos que arranhei todas as linhas individualmente, mas não é verdade. Claro, eu fiz algumas coisas para ajudar nisso [risos] – vou parar por aqui.

Uma coisa que talvez torne meu trabalho único, até onde eu sei, é a tentativa de uma integração homogênea entre o que é imagem original e o que é found footage, de modo que é muito difícil saber qual é qual. Costumo pensar no meu material “original” como encontrado e uso as imagens encontradas como se as tivesse fotografado. Não quero nenhuma diferença irônica entre eles. Na maioria dos filmes sirvo-me de uma deterioração proposital, intencional, mas parte disso é resultado de processos naturais – rolos que ficaram encharcados de água e assim por diante.

Você falou sobre poesia e música. Eu acho que a forma é semelhante à música, na medida em que tem lirismo, textura, cor e timbre, mas as imagens e ideias que são evocadas são como as imagens e ideias da poesia imagista: metáforas, mas espero que não óbvias e bobas.

MacDonald: A estrutura do motivo é muito musical. Tudo o que vemos ressurgirá mais tarde, em um novo contexto.

Solomon: Exatamente. Mas a repetição não é uma informação narrativa, e não é apenas para fins estruturais, mas para permitir que você vá de uma ponta a outra: os contextos mudam à medida que o filme se move ao longo do tempo. Walter Pater sugeriu que todas as artes aspiram à condição da música e, no meu caso, isso parece verdade, pois a música pode criar uma aparência de sentimento humano principalmente através de formas significativas, expressivas e análogas. E quase toda música produz sentido formal usando repetição, com tema e variação. É assim que vejo a repetição de motivos e imagens em todo o meu trabalho.

A propósito, precisamos mencionar Bruce Conner aqui. Muitas pessoas que trabalham com found footage tomaram como modelo os primeiros filmes de Conner, como A Movie [1958] e Report [1967], emulando suas ironias afiadas sobre a cultura moderna. Eu tomo como modelos os trabalhos posteriores, especialmente Take the 5:10 to Dreamland [1977] e Valse Triste [1979] – filmes muito pessoais que vêm da biografia de Conner, mas que estão cheios de inevitabilidades ambíguas: mesmo que você não saiba por que plano B vem após plano A, há uma inevitabilidade no fluxo que parece adequada, que tem uma cadência perfeita. Eu sinto que The Exquisite Hour também tem isso.

MacDonald: é um trabalho extraordinário…

Solomon: É o meu único filme que me parece absolutamente certo do começo ao fim.

The Exquisite Hour tem um prólogo inicial de filmes mudos dissolvendo uns nos outros, algo com o qual eu vinha experimentando anos antes. Originalmente, o experimento não tinha rima ou sentido; eu só estava interessado em costurar os pedaços, quase por acaso. Mais tarde, os resultados pareciam se encaixar perfeitamente no The Exquisite Hour, que é uma elegia para os moribundos e para o próprio cinema. A propósito, todas as imagens da morte devastadora são de vídeo – embora essa não fosse minha intenção quando gravei esse material.

MacDonald: Há uma imagem impressionante de um homem ou uma mulher olhando algo em chamas. . . o que é isso?

Solomon: é de um filme antigo de um mágico e sua assistente em chamas. Nem vi o filme original de onde tirei essa imagem. Eu estava olhando o material e pensei: “Oh, é uma ótima imagem”. O que isso significa? Muitas coisas, incluindo algo sobre alteridade, uma mulher em chamas e o cinema como um ato de conjuração e desaparecimento.

Na metade, o filme fica preto, e o som que ouvimos é uma gravação do meu avô deitado em uma cama de hospital – feito disfarçadamente com um dos primeiros walkmans. Ele tinha mais de noventa anos e acabara de perder a esposa. Ele falava por meio de aforismos: “É uma montanha alta e difícil de escalar”, “Eu nunca vou superar isso, nunca”, “Ela era um anjo”. Usar a voz dele dessa maneira me pareceu muito arriscado, mas eu queria que essas palavras fossem evocadas no filme e não suportava colocá-las sobre nenhuma das imagens.

MacDonald: a forma com que você lida com os filmes antigos parece nos levar de volta à transformação cultural que ocorreu na virada do século passado com a invenção do cinema. Depois, há uma seção de natureza que tem uma relação muito diferente com quem quer que seja a pessoa que está morrendo. Então, depois da passagem em que há apenas voz sobre tela preta, vamos aos filmes caseiros e, finalmente, voltamos à natureza novamente. Cada uma dessas seções é uma evocação de uma parte diferente do nosso desenvolvimento.

Filmes antigos – minha vida gira em torno de ver filmes, muitas vezes mais do que coisas que realmente estão acontecendo! Ver King Kong [1933] quando criança, sem meus pais, e não sair correndo do cinema quando fiquei assustado, foi uma experiência de amadurecimento absolutamente crucial para mim, e criou um desejo duradouro de ir aos cinemas e ver algo que me assusta, em um nível ou outro. A morte de minha mãe faz parte da textura da minha vida, mas, surpreendentemente, não olho para trás como um momento crucial. Em um grau surpreendente, nós somos nossas experiências com a mídia.

Em The Exquisite Hour, duas histórias fundamentais das quais todos fazem parte – nossa história inicial com as mídias e nossas interseções com o que chamamos de “natureza” – precedem o que normalmente consideramos nossa história mais importante: a história de nossa vida doméstica.

Solomon: Essa é uma maneira interessante de ver e muito apropriada ao meu trabalho.

MacDonald: Quem é aquele deitado na cama? Foi você que filmou?

Solomon: Filmei aquele homem com uma longa lente zoom através da janela de uma casa de repouso, a uma quadra da minha casa em Boston. Fico um pouco envergonhado em admitir que voltei todas as noites por não sei quanto tempo, mas me senti totalmente obrigado a fazê-lo e senti uma grande empatia pelo homem. Sinto que talvez eu tenha dado a ele um significativo lugar de descanso no meu filme.

MacDonald: Ironicamente, isso meio que reverte um gesto típico do cinema: normalmente estamos espiando romance ou violência; aqui estamos espiando o Inevitável.

Solomon: E ele está tão . No meio do filme, ele é alimentado por uma enfermeira (e o que você ouve na trilha sonora naquele momento é uma garotinha cantando, como se estivesse cantando do lado de fora da janela dele – na verdade, uma garota hassídica cantando do lado de fora da casa dos meus pais à noite, que gravei há muito tempo). Mais tarde, o homem levanta o braço, algo como Keir Dullea em 2001: A Space Odyssey [1968] apontando para o monólito, e você ouve, muito sutilmente, o som de um barco rangendo. Ele continuou levantando o braço, morrendo assim por trás das grades, sempre apontando. Uma noite voltei e o quarto estava vazio.

Outra coisa sobre found footage: os fabricantes de lentes, a Kodak, toda a indústria, trabalharam para tornar a reprodução cinematográfica da vida cada vez mais real, no sentido superficial. O som surround Dolby faz parte disso (embora, na verdade, o Dolby torne o filme inteiro mais plástico, menos realista para mim). Sou uma espécie de arqueólogo ao contrário: tento descobrir verdades nesses artefatos jogando a terra de volta neles. Eu enterro as coisas ao invés de escava-las. Para mim, found footage  têm sido uma maneira de desvendar verdades perdidas.

Em Clepsydra, grande parte do material veio de um filme educacional, How to Tell Time.

MacDonald: Eu imaginei! Haviam tantos relógios – até o carrossel se torna um relógio!

Solomon: Exatamente! Muito obrigado. E as maçanetas das portas. Quando olhei para o filme original, não conseguia acreditar em como era completamente estranho, especialmente em sua ideia de escala – a garota pequena e esse relógio grande. Então estou jogando com um baralho de cartas freudianas nesse filme. Para mim, o interior da casa está cheio de horrores, e quando ela sai de casa no final, é como sair da Casa de Usher. O que o filme sugere é um trauma de incesto; não é direto, mas está lá.

MacDonald: Há uma cachoeira em Clepsydra? Tenho dificuldade de identificar algumas das imagens.

Solomon: Sim. Boulder Falls. A maior parte das imagens desse filme é bipack com imagens de água de algum tipo. Fotograficamente, eu colocava a cachoeira sobre as imagens e depois as tratava.

MacDonald: Às vezes parece pintura a spray.

Solomon: Parte é. Sprays diferentes.

MacDonald: Você usou a mesma cachoeira em Remains to Be Seen?

Solomon: Não, lá é Yosemite Falls. Em Remains to Be Seen eu sempre vejo a cascata existindo entre o cirurgião e o paciente – um véu de lágrimas.

MacDonald: Há outra imagem em particular que não consigo entender. A primeira imagem é a menina dormindo, então a câmera sobe e tem essas mulheres andando; é a terceira imagem que não consigo identificar.

Solomon: A primeira imagem é na verdade um garoto dormindo – o garoto que entra no ônibus no final do filme. A imagem a que você está se referindo é pessoal; é a pessoa a quem o filme é dedicado. Na verdade, eu me perguntei se essa imagem poderia ter sido um erro artístico no trabalho. Também reaparece ao contrário como a penúltima imagem. A câmera amplia o zoom no início e diminui o zoom no final. Estamos olhando para alguém com quem tive um relacionamento na época, uma vítima de incesto. Ela está dormindo e há sombras de venezianas em seu rosto. De fato parece diferente do resto do material desse filme, e sempre pareceu um pouco fora do corpo principal do filme e também muito explicitamente referencial.

MacDonald: Walking Distance me parece uma espécie de filme de pesadelo, talvez até sobre o Holocausto, uma visualização do inferno.

Solomon: Totalmente, mas deixe-me voltar um pouco e falar sobre os “Twilight Psalms” em geral.

Primeiro de tudo, o tema apocalíptico parece perpassar todo o meu trabalho – desde o final de Nocturne até a última cena em Remains to Be Seen e a tempestade de poeira em The Exquisite Hour. Em Remains, há o clarão cósmico apagando os dois personagens na praia. The Secret Garden às vezes parece um dilúvio ou uma cidade em chamas – pensava nisso como o fim do mundo. Eu não sei exatamente de onde vem essa tendência em mim e no meu trabalho, exceto que eu costumava ter sonhos recorrentes de maremotos em que eu estaria na praia e veria a onda chegando e estaria fugindo dela.

MacDonald: Eu tive minha versão desse sonho.

Solomon: Até hoje não o vi realizado em filme, exceto, devo dizer, em The Perfect Storm [2000], que apresentava falhas, embora a onda digital tenha chegado muito perto da onda dos meus sonhos. Eu sei que o sonho vem de quando eu era criança em Asbury Park e uma criança da vizinhança me empurrou para o oceano de brincadeira. Eu pensei que iria me afogar.

Mas sempre fui atraído por visões apocalípticas em geral: as pinturas de Bosch, certos tipos de filmes de terror. Então, quando cheguei à impressão óptica, foi um impulso natural avançar para o fantástico, o horrífico. Quando meus pais adoeceram e morreram, num período de três anos, isso se tornou um assunto dominante no meu trabalho por um longo tempo. Eu acho que o cinema é particularmente hábil em invocar perdas. O cinema é como uma sessão espírita: você pode conjurar espíritos, despertar os mortos.

MacDonald: Walking Distance se assemelha um pouco ao Triunfo da Morte de Pieter Brueghel, o Velho [1562].

Solomon: Sim, e também Francis Bacon e Albert Pinkham Ryder. Edith Kramer [diretora do Pacific Film Archive em Berkeley] me aplicou em Ryder, e fiquei impressionado com quão evocativas eram suas pinturas e suas texturas eternamente derretidas e rachadas. Eu sempre estive intrigado pelo escuro, pela noite.

Cheguei a um certo ponto do meu cinema em que senti que precisava enfrentar questões maiores do que minha biografia reprimida. Além disso, eu queria trabalhar em um projeto maior, um projeto sobre o milênio, embora não quisesse lidar com o peso de um único filme longo, especialmente porque eu trabalho quadro a quadro. Com 1.440 quadros por minuto, cinco minutos é um filme longo!

Estava intrigado com como Stan e outros artistas faziam o uso de séries. Por isso, pensei em fazer uma série de filmes e criei um título geral, os “Twilight Psalms”. Normalmente trabalho da maneira oposta: começo o filme e o título aparece em algum momento do processo. The Twilight Zone [Além da imaginação] foi formativo para mim; quando criança, ficava assustado e emocionado com a série. E apreciava sua qualidade moral – todo episódio era sobre uma questão moral.

Comecei a coletar episódios de Twilight Zone em laser disc e a revê-los. Eu amei alguns dos títulos, então comecei com eles. Walking Distance vem de um episódio com Gig Young, uma pessoa de quase cinquenta anos, em traje de flanela cinza, no momento da crise da meia-idade. Seu carro quebra a uma curta distância de sua casa de infância, então ele vai visitá-la e volta no tempo – vê-se quando criança e encontra seu pai. Ele tenta falar consigo mesmo quando criança; ele quer avisar o garoto para aproveitar sua infância agora porque a vida fica muito difícil. O pai finalmente o confronta e diz que precisa sair: é a hora dele, não a sua. Achei isso muito comovente, e é o tema subjacente de Walking Distance. Há um ponto no filme em que meu pai aparece e sinto que estou nadando em direção a ele.

Você conhece o trabalho de Robert Wilson?

MacDonald: Um pouco, sim.

Solomon: Eu gosto da maneira como Wilson trabalha com personagens históricos: Einstein, Poe, quem quer que seja. A pessoa histórica é um ponto de partida para seus sonhos teatrais. Isso é basicamente o que eu tinha em mente. Eu pensei que Walking Distance seria o Twilight Psalm I e que seu foco seria Harry Houdini, como um emblema do século XX. Em 1999, muitas pessoas estavam refletindo sobre o século passado, e eu estava lendo sobre Houdini e lembrando do filme de Tony Curtis, que foi poderoso para mim quando eu era criança. No começo do meu filme, você vê o verdadeiro Houdini amarrado em uma cadeira, lutando para sair, e mais tarde ele está tirando uma camisa de força. Você também vê o Houdini de Tony Curtis.

Em algum momento do processo, fui diagnosticado com uma grave condição pulmonar, e o filme mudou do meu pensamento sobre o século XX para o problema pessoal em questão. Comecei a me identificar com as imagens de Houdini, ou seja, comecei a pensar mais seriamente em minha própria morte e em como eu poderia não escapar dessa doença. Uma história sobre Houdini que me intrigou – pode ser uma lenda – foi quando o jogaram, dentro de um cofre, em um buraco no gelo, e ele não conseguiu encontrar o caminho de volta à superfície. A história é que ele respirou através desses pequenos bolsões de ar sob o gelo e ouviu a voz de sua mãe, que o guiou de volta ao buraco – e sua mãe morreu naquela noite.

Agora, não me lembro de quanto de verdade havia nessa história, mas sei que mais tarde Houdini ficou obcecado com a vida após a morte e em desmascarar picaretas que alegavam falar com os mortos. Em Walking Distance, senti como se estivesse tentando entrar em contato com minha mãe e meu pai. De certa forma, o filme foi uma oração para eles, pedindo orientação e ajuda. Ambos estão lá, assim como eu enquanto criança. Então esse era o meu assunto, como o conteúdo latente de um sonho, que ninguém saberia apenas vendo o filme. Mas o sentimento está todo lá.

O filme começa com um personagem suspenso de cabeça para baixo em uma corda, como algum tipo de casulo, e a última imagem é de um equilibrista em algum tipo de jornada, como a ascensão de Orfeu. Assim, a corda se move da vertical para a horizontal no decorrer do filme, de um fio para um chão trêmulo. O que há entre as cordas é com você.

Tecnicamente, em Walking Distance eu estava, novamente, tentando fugir da tirania do corte. Imaginei a emulsão criando o filme enquanto você o assiste, como se estivesse solta, derretida e escorrendo pela tira de filme no projetor, e às vezes coagulando em imagens que depois se dissolvem de volta ao caldo. Como o oceano de memórias em Solaris [1972, Andrei Tarkovsky]. Eu acho que é assim que a consciência funciona.

MacDonald: Nos últimos anos, você trabalhou em vários filmes em parceria com Brakhage. Como você e ele começaram a colaborar?

Solomon: Em 1991 me candidatei para um emprego que abriu em Boulder. Eu nunca tinha realmente encontrado com Stan, apesar de obviamente tê-lo visto exibir filmes muitas vezes. Como parte da minha entrevista, havia um almoço. Eu estava muito nervoso. Não sabia o que esperar e principalmente não sabia o que esperar dele em relação ao meu trabalho. Acho que a surpresa mais bonita da minha vida artística foi a resposta de Stan quando o encontrei: ele estava com os braços bem abertos para um abraço.

Nossa colaboração começou como dois caras em uma cidade pequena, sem mais nada para fazer. Inicialmente, eu estava apenas tentando ajudá-lo com alguns problemas financeiros que ele estava tendo devido a todas as impressões ópticas que estava fazendo na Western Cine. Eu tinha uma impressora óptica em minha casa, então ele veio e trabalhou lá. Inicialmente, pensei que estava apenas ajudando-o a imprimir esse trabalho pintado à mão que ele estava fazendo, mas de repente estávamos trabalhando juntos como dois músicos. O que foi incrível foi quão sincronizados estávamos acerca de quais “frases” de tinta em movimento estavam articuladas e quais não. Stan normalmente trabalha no que ele chama de transe, e eu tenho minha própria versão disso – mas esse era um tipo social de criação, um dueto, e grande parte da alegria e energia criativa entre nós foi parar nesse trabalho. Elementary Phrases é uma espécie de cartilha de técnicas de impressão óptica e pintura sobre película.

Desde então, colaboramos várias vezes, sobretudo em The Seasons, que foi difícil para mim, mas interessante. O que aconteceu foi que Stan sofreu um câncer e passou a acreditar, com base nas informações médicas que obteve, que os corantes de alcatrão de carvão dos marcadores que ele estava usando poderiam ser uma causa. Ele parou de pintar com os marcadores e começou a gravar e arranhar, entalhar o filme, com ferramentas dentárias. Foi incrível vê-lo se voltar para essa forma tão primária com tanta invenção.

A certa altura, perguntei a Stan se eu poderia ter um pouco do material que ele estava arranhando, para ver se eu conseguia editá-lo. Típico de sua generosidade, ele me deu tudo, e eu fui trabalhar. Assim que havia começado, mostrei um rolo do filme no salão7de domingo à noite, e alguém disse que uma seção do rolo “parece outono” e pensei: sim, é o que é; é uma estação. Isso estimulou minha edição e um dia mencionei a Stan, “Preciso de um verão” e, em dois dias, apareceu um envelope na minha caixa de correio da escola, rotulado “Verão, para Phil”. Típico do Stan.

MacDonald: Deve ser muito estranho estar em Boulder sem Stan.

Solomon: É incrível como esse lugar é chato sem ele. Ele não teve uma boa morte, receio. Estava com dores quase até o fim.

MacDonald: Mas, surpreendentemente, ele estava conversando com pessoas e trabalhando, mesmo em seus últimos dias. Ele lutou contra a dor de maneira notável.

Solomon: Ele era heróico. Verdadeiramente heróico. E um amigo maravilhoso. Eu tenho um projeto inacabado que estava fazendo com Stan.

MacDonald: Qual é o projeto?

Solomon: Nós sempre quisemos fazer um musical; costumávamos chamá-lo de “Fred e Ginger”, porque um de nossos colegas, que odiava filmes experimentais, adorava musicais. Stan pensou que fazer um musical abstrato seria uma vingança digna. Acho que vou usar as sequências dele que ficaram fora do corte final de Elementary Phrases e terminar o filme, em memória.

Também temos os dois últimos filmes de Stan, Stan’s Window [2003], muito simples, muito livre – Mary Beth Reed o montou de acordo com as instruções de Stan – e The Chinese Series [2003], que Stan estava arranhando em filmes de 35 mm com as unhas durante seus últimos dias – são apenas alguns segundos, mas simbolicamente tem de estar no mundo.

MacDonald: Seu filme mais recente, Night of the Meek, me parece algo como um pesadelo apocalíptico pós 11 de setembro, embora suas alusões remontem ao passado: reconheço imagens de M [1931] e de The Golem [1920], e há imagens de tropas de assalto nazistas.

Solomon: Certo, The Golem e Frankenstein [1931] são as principais fontes.

MacDonald: Então, o filme, em sua mente, estava conectado a eventos recentes?

Solomon: Tenho certeza de que foi influenciado pelo 11 de setembro, mas lembre-se de que todo o projeto “Twilight Psalms” foi planejado como um projeto de fim de milênio, como um resumo de algumas ideias sobre o último século. Quando mapeei os vários Salmos [Psalms] em minha cabeça, sabia que The Night of The Meek seria sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. Eu não poderia abordar o século XX sem lidar com isso.

Anne Frank também foi uma grande parte desse projeto (o filme é dedicado a ela), e uma das coisas que o provocou foi assistir a um documentário maravilhoso, Anne Frank Remembered [1995, John Blair], que inclui no final a única imagem em movimento dela que existe. Foi encontrado em um filme caseiro de um casamento que ocorreu do lado de fora de seu prédio; a câmera se move do casamento para a janela onde ela morava, e lá está ela – isso é antes de ela estar escondida – com a cabeça para fora da janela; e ela se move. Vê-la se mover foi espantoso. Pensei que incluiria essa imagem, e cheguei a filmá-la, mas no final, não consegui trabalhar com ela – tive que deixar de fora.

Pensando sobre ela, e depois pesquisando sobre o golem – lendo diferentes variações dessa história – e relendo o Frankenstein de Mary Shelley, comecei a pensar em monstros e nessas garotinhas: Anne Frank; Elsie, a garotinha que é assassinada em M; e, é claro, a garotinha de Frankenstein que faz amizade com o monstro e depois é morta inadvertidamente. E no filme The Golem, uma garotinha salva todo mundo puxando a estrela do golem, e ele desaba. Na história do golem, esse rabino cria uma criatura de barro para salvar os judeus de um pogrom, mas sai pela culatra. Muitas pessoas têm visto o golem como uma metáfora da tecnologia que sai pela culatra; também é sobre a arrogância do rabino: sua suposição de que ele poderia ser um deus, que ele poderia controlar o mundo, que ele poderia criar vida a partir do nada. Portanto, essas referências estão todas lá, misturadas em um caldo histórico.

O filme começa com o mundo – a tomada inicial é a Terra – e, às vezes, parece que a Terra está se desfazendo durante o filme, e no final, depois que a garota puxa a estrela do golem e ele desaba, há uma tomada da Terra, ainda lá, tirada de imagens da NASA. Isso é o mais positivo que posso me permitir. O mundo continua girando; e as crianças ainda estão aqui.

Eu sabia realmente o que estava fazendo com este filme. É o primeiro dos meus filmes que não é sobre mim. Eu pensei que Walking Distance não seria sobre mim, mas depois fiquei doente, e acabou sendo sobre a minha doença. Mas Night of the Meek não tem nada a ver comigo diretamente. Como resultado, é o meu filme quanto ao qual me sinto mais confuso, mais incerto.

MacDonald: O que é o som? Há várias camadas de som, mas no início há esse rugido muito poderoso. . .

Solomon: estou tocando isso em um teclado; foi feito com ventos e variações de fluxo de lava. Essencialmente, é o ruído branco que estou modulando em um teclado. Ao fundo você pode às vezes ouvir uma canção de ninar, e também no final do filme você ouve uma pessoa cantando, um cantor de salmos da virada do século passado que eu tratei eletronicamente. É uma estratégia sonora semelhante à de Walking Distance: uma espécie de vento primitivo com fantasmas e ecos por de baixo. 

MacDonald: Como um fluxo de consciência com coisas brotando de baixo.

Solomon: Exatamente.

Eu estava muito nervoso com a peça. Após a exibição do Festival de Cinema de Nova York, vi Ken e Flo [Jacobs] deixando a discussão mais cedo, e me perguntei se eles tiveram uma reação ruim ao filme.

MacDonald: Eu não posso imaginar que eles não admirariam o filme.

Solomon: Bem, Ken e Stan não conversaram por dois anos por causa do 23rd Psalm Branch de Stan [1966/1978].

MacDonald: Eu não sabia disso.

Solomon: Ken disse-lhe: “O que você fez aos meus judeus!” Stan havia pintado as imagens do Holocausto, e eles tinham uma divergência real quanto a isso. Mas acontece que Ken e Flo gostam muito de Night of the Meek.

 

***

Traduzido por Pedro Ávila e Lucas Almeida.
*tradução não autorizada e não oficial feita para fins de divulgação e pesquisa.

 

 

NOTAS:
  1. A impressora óptica – mais ou menos semelhante à truca de animação – é um dispositivo que permite refilmar um filme. Basicamente, consiste em uma câmera com um sistema de lentes, um projetor com uma fonte de luz. O projetor e a câmera ficam voltados um para o outro. O filme exposto anteriormente avança através da janela do projetor, onde é iluminado pela fonte de luz e (re)fotografado pela câmera, quadro a quadro. A impressão óptica permite uma grande variedade de manipulação da imagem original durante o processo de refotografia. Pode-se controlar a velocidade das imagens, reenquadrá-las, iluminá-las e cromatizá-las alternadamente ou criar composições complexas servindo-se de mais de uma imagem no mesmo quadro. A impressora óptica foi muito utilizada pelos grandes estúdios de hollywood já a partir da década de 1920 tanto para fazer efeitos especiais quanto para copiar películas, e a partir da década de 1960 tornou-se instrumento fundamental para boa parte do cinema experimental estadunidense. [N.T] ^
  2. O “pré-médico” (premed) é um período de formação que os estudantes de graduação nos Estados Unidos e no Canadá precisam cursar antes de se tornarem estudantes de medicina. [N.T.] ^
  3. Cem pés equivale a aproximadamente 03 minutos de imagens em 16mm a 24 quadros por segundo; dois mil pés, aproximadamente 55 minutos. [N.T.] ^
  4. Bipacking, ou bipack, é o processo de colocar dois rolos de filme em uma câmera, para que ambos sejam expostos ao mesmo tempo. Enquanto na dupla exposição as áreas claras (transparentes) são somadas, no bipack as áreas de densidade (de “sombras”) serão somadas. [N.T.] ^
  5. Generational rephotography no original; algo como refotografar uma imagem sucessivamente, refotografando a imagem que foi gerada na refotografia anterior e assim por diante. Técnica usada no filme Print Generation de J.J. Murphy.  [N.T.] ^
  6. Em 1998, Steve Anker e Jytte Jensen fizeram a curadoria de Big as Life: An American History of 8mm Films, patrocinado pelo Museu de Arte Moderna e pela Cinemateca de São Francisco; o catálogo, Big as Life: An American History of 8mm Films, foi editado por Albert Kilchesty. ^
  7. Durante anos, Brakhage organizou um “salão” em Boulder nas noites de domingo, onde ele exibia filmes e os discutia com pequenos públicos. No início, esse evento formal era realizado de forma intermitente na casa de Brakhage, mas mais tarde Suranjan Ganguly, então presidente do departamento de estudos de cinema da Universidade do Colorado, sugeriu que o salão fosse realizado no campus. De 1993 até Brakhage deixar Boulder em 2002, o salão era um evento regular. O cineasta Phil Solomon esteve muito envolvido durante toda a existência do salão. ^